Numa segunda-feira em que o mundo voltava as suas atenções para Genebra, na Suíça, onde os presidentes russo Mikhail Gorbachev e o americano Ronald Reagan iriam se encontrar para uma histórica reunião de cúpula em busca da paz, uma outra grande história começava a ser escrita. Naquele 18 de novembro de 1985, leitores de alguns jornais se depararam pela primeira vez com um menino e um tigre chamados Calvin e Haroldo numa tirinha de quatro quadros publicada na seção de quadrinhos de seus periódicos. O mundo ficou melhor a partir daquele dia.
O nome do responsável: Bill Waterson, um jovem cartunista desconhecido tentando emplacar seu trabalho. Calvin and Hobbes, o nome original da dupla em inglês, seria a última grande revolução das tirinhas de jornais. Num mundo que ainda nem sonhava com a internet, Calvin e Haroldo foram conquistando leitores no mundo inteiro, com cada vez mais jornais publicando diariamente as adoráveis peripécias do garoto e seu amigo imaginário.
Dez anos depois, quando surpreendeu a todos comunicando que decidiu parar com os personagens em 31 de dezembro de 1995, Watterson explicou aquela primeira tirinha de 1985 em que Calvin fala ao seu pai que montou uma armadilha de tigres com sanduíche de atum como isca:
"Essa foi a primeira tira de Calvin e Haroldo, publicada em 18 de novembro de 1985. Na época, eu pensei que fosse importante estabelecer como Calvin e Haroldo se juntaram, mas agora eu acho que isso foi desnecessário. É claro, quando Calvin e Haroldo começou, ela apareceu em cerca de trinta e cinco jornais, então não muita gente viu a primeira tira de qualquer forma. O jornal da minha cidade não pegou a tira por vários meses, então eu não vi essa tira no jornal também. Este é um motivo de eu ser grato pelas coletâneas em livro", escreveu Watterson no livro "Os dez anos de Calvin e Haroldo".
Leitura indispensável, o livro não é uma mera coletânea das tirinhas. Nele, Watterson conta a história das histórias em quadrinhos, analisa a imprensa, explica a gênese de cada personagem das histórias de Calvin e Haroldo, seus perfis psicológicos, as influências, a justificativa contra o licenciamento de seus personagens para produtos comerciais, suas divergências com o sindicato que detinha os direitos das tiras e a evolução da técnica e de seu traço. Poucas vezes, em qualquer ramo da arte, um artista fez uma análise tão profunda de sua obra.
"Num jornal cheio de horrores surpreendentes, é um pequeno ritual reconfortante ver os seus personagens favoritos a cada manhã, por alguns segundos, enquanto toma café. Eles se tornam uma espécie de amigos. Nós nos preocupamos com eles quando estão com problemas, e contamos com eles para olharem para a vida com uma tirada ligeiramente divertida que pode até nos ajudar a fazer o mesmo. Eles estão lá para nós sete dias por semana, ano após ano." [Bill Watterson]
Calvin no Brasil - Aqui no Brasil, as tiras de Calvin e Haroldo chegariam no ano seguinte. O Estadão publicou Calvin e Haroldo pela primeira vez em 15 de agosto de 1986, com uma tirinha em que Calvin apresenta uma pesquisa de popularidade ao seu pai. O trabalho de Watterson era a última tira de uma página em que, entre outros quadrinhos, estavam os traços dos cartunistas brasileiros Laerte, Mauricio de Souza e Henfil.
A novidade foi anunciada com uma pequena chamada no cabeçalho na capa do Caderno 2 que trazia o cineasta Zé do Caixão como destaque e no texto "Infância recuperada" na página 9: "O autor da tira, Bill Watterson, define seu trabalho numa frase: "Calvin e Hobbes mostram que crianças serão sempre crianças, e assim podemos ser também". A série pode ser ainda resumida como uma busca permanente na infância e seus sonhos perdidos. Há quanto tempo não criamos um animal imaginário para conversar?"
Em 5 de abril de 1987, o Estadão publicava uma das raras entrevistas de Bill Watterson. Nela, o cartunista recluso conta para a repórter Eliane Gamal a sua surpresa com o sucesso de Calvin e Haroldo e fala como chegou ao personagem após algumas frustrações profissionais. Leia alguns trechos transcritos abaixo e acesse a íntegra de "Este é Bill, o pai de Calvin" na página original do Caderno 2.
"Esse é Bill, o pai de Calvin", por Eliane Gamal
Popularidade - "Foi com certa surpresa que o cartunista americano Bill Watterson, autor da história em quadrinhos Calvin and Hobbes, recebeu em sua casa um telefonema do Caderno 2, interessado em entrevistá-lo. Watterson sabia que seu personagem tinha virado mania nacional, e faz parte do dia-a-dia de jornais da Europa, Austrália, Japão e América do Sul. Mas não poderia jamais imaginar que a popularidade de Calvin fosse tanta entre os brasileiros - principalmente porque começaram a aparecer no Caderno 2 e em o Globo há apenas um ano."
Infância - "... Ele conta que seu interesse por cartuns começou quando ele era criança, embora não tenha usado suas memórias de infância para criar Calvin: Ele é praticamente ficção, pois não tenho filhos e não utilizei minhas experiências para elaborar seus trejeitos e manias. O que faço é apenas imaginar as piores características das crianças, e torná-las ainda piores".
Calvin irmão caçula - "... Depois dessa experiência frustrada [caricaturas políticas], passei vários anos trabalhando em publicidade, mas sempre à procura da idéia certa para uma história em quadrinhos. Um dos meus primeiros cartuns era sobre um grupo de recém-formados, em seus primeiros empregos. Calvin era irmão menor de um dos personagens, que sempre carregava um tigre de brinquedo com ele. Essas histórias eram rejeitadas, mas eu sentia cada vez mais interesse pelo Calvin."
Como um escritor - "... Aliás, Watterson acha que o trabalho de um cartunista é mais ou menos como o de um escritor, no que se refere ao desenvolvimento dos personagens. E acrescenta: "Como num bom romance, a história em quadrinhos tem de ajudar as pessoas a ver o mundo com novos olhos e, ao mesmo tempo, enriquecer as suas vidas."
Conselho aos cartunistas - "... Ele diz que "não existe outro trabalho no mundo que gostaria de fazer". E dá um conselho aos novos cartunistas: "É sempre muito importante conseguir passar para os leitores a integridade e o entusiasmo de seus personagens. Além disso, uma história em quadrinhos que não refletir a sensibilidade do artista, sempre acabará depreciando o cartum, que também deve ser tratado como uma forma de arte."
1995 - CARTA DO AUTOR AOS JORNAIS SOBRE O FIM DE CALVIN E HAROLDO
"Foi um privilégio e um prazer" Bill Watterson
"Eu estarei interrompendo Calvin e Hobbes no fim do ano. Essa não era uma decisão recente ou fácil e saio com alguma tristeza. Meus interesses mudaram, no entanto, e acredito ter feito tanto quanto posso dentro dos confinamentos dos prazos diários e dos pequenos quadros. Estou ávido em trabalhar em um ritmo mais pensado e com menos compromissos artísticos. Ainda não decidi sobre futuros projetos, mas minha relação com a Universal Press Syndicate continua. Que tantos jornais viessem a carregar Calvin e Haroldo é uma honra da qual serei orgulhoso por muito tempo e apreciei muitíssimo seu suporte e indulgência na última década. Desenhar essa tira foi um privilégio e um prazer e agradeço a vocês por me darem a oportunidade."
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