Em 25 de abril de 1920 o jornalista José Martins Pinheiro Júnior relatou um passeio feito com um visitante estrangeiro à cidade de São Paulo em sua coluna ‘Coisas da Cidade’. Além do conteúdo, muito revelador, diga-se de passagem, deve-se destacar o estilo usado no texto muito raro no jornalismo daquela época, demonstrando a originalidade de ‘P.’, como ele assinava.
Para começar, o texto relata um fato pitoresco e pessoal, pouco comum no jornalismo da época, onde as notícias publicadas passavam longe das experiências pessoais. Além disso, Pinheiro Júnior usa a conversa que teve com o interlocutor, como se fosse um diálogo de ficção. Visto atualmente parece uma coisa banal, mas para os jornais da época relatar um fato utilizando a experiência pessoal e elementos da literatura pode-se dizer se travava de uma audácia. A utilização dessas características eram mais comum nas revistas de variedade daquele tempo, para as quais ele também colaborava, como a Vida Moderna e a Cigarra.
Deixando de lado o estilo de ‘P’, é a hora de destacar o conteúdo da coluna. Também uma novidade na época por tratar de assunto que tecnicamente não era um fato. Mas sim, uma ausência e um problema existente até hoje na cidade, a falta de memória.
Ao ser questionado se havia estátuas na cidade pelo visitante francês, P. disse que sim. Mas eram apenas duas. A pouca quantidade de estátuas lhe causa constrangimento frente ao visitante francês vindo de um país conhecido pelos seus monumentos históricos. Isso o leva ao questionamento se só teriam duas figuras históricas para serem lembradas na cidade, no caso José Bonifácio, o Moço, e Regente Feijó.
Curiosamente, as duas únicas estátuas - tecnicamente monumentos - existentes na época da crônica de Pinheiro Júnior não existem mais. A de José Bonifácio, o Moço - neto do patriarca da Independência - media nove metros de altura e ficava no Largo de São Francisco. Inaugurada em 1890, foi retirada em 1935 para dar fluidez ao trânsito na região do largo.
O monumento em homenagem ao Regente Feijó foi inaugurado em maio de 1913. Foi instalado no Largo da Liberdade, no bairro do mesmo nome. A obra foi feita pelo francês Louis Convers e quando chegou ao porto de Santos foi recebida com festa que percorreu a cidade portuária e só terminou em São Paulo. No começo da década de 1980 o monumento foi retirado da praça e a estátua foi doada para Itu, cidade natal do regente. O departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo tentou em 1985 rever a estátua, mas não obteve sucesso.
Leia a íntegra do texto com a grafia da época:
COISAS DA CIDADE
AS NOSSAS ESTATUAS
Ha tempos, tive a opportunidade de servir de “cicerone” a um estrangeiro illustre que nos visitou. Não me sahi mal da empreitada, valha a verdade, porque, emfim, a nossa cidade já possue varias coisas dignas de se mostrarem. Mas, quando chegamos ao capitulo das estatuas, é qua embatuquei e me envergonhei devéras:
-Est-ce que vous n’avez pas des statues?.. [Vocês não têm estátuas?]
-Algumas...
E, um pouco a contragosto, mandei tocar a automovel para o largo de S. Francisco e para o largo da Liberdade. Diante do José Bonifacio, o moço, e do Feijó, o meu companheiro estacou alguns instantes, e, sem um commentario ao valor da obra de arte, indagou dos feitos dos brasileiros eminentes alli representados, e cinco minutos depois tornavamos no hotel. Só notei que o francez illustre (era um jornalista e politico) - não me pediu desde esse momento, noticias de mais nada...
Ora, o silencio do nosso visitante diante das duas unicas estatuas que possuimos, fez-me impressão funda, -mais funda, talvez, do que foi a sua ao saber que uma cidade brasileira do meio milhão de habitantes não encontrara senão dois compatriotas dignos de serem rememorados pela estatua.
Aquelle homem - disse eu commigo mesmo - ficou suppondo ou que o Brasil não possue, na sua historia, grandes homens, ou que, se os possue, nenhuma conta faz delles. É mesmo esta a sua supposição mais provavel: porque de outra forma não se explica que na segunda cidade brasileira só se encontrem duas estatuas, e, assim mesmo, de tão mofino valor artistico.
Nunca me esqueceu aquelle passe, e, sobretudo, como acabou elle. Desde então, sempre que leio notticias das festas extraordinarias com que se inauguram, no estrangeiro, as estatuas dos grandes homens, - o que me acode á lembrança é certa cidade, vasta, opulenta e bella, onde não ha mais que duas estatuas e uma porção do hermas - hermas e estatuas sem valor artistico... P.
‘P’: Um cronista da cidade de São Paulo
José Martins Pinheiro Junior, ou ‘P’, como assinava, nasceu em 12 de abril de 1884 em Silveiras (SP). Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1907. Dois anos depois, entrou para o jornal ‘O Estado de São Paulo’ como redator, cargo que exerceu durante 35 anos. No jornal, além de redigir a seção ‘Coisas da Cidade’ ocupou-se da também da coluna “Revista das Revistas”. Também foi um dos fundadores da ‘Revista do Brasil’ (1916) e do Diário da Noite (1926).
Como advogado foi nomeado, em 1931, para o cargo de Curador Fiscal das Massas Falidas da cidade de São Paulo, que ocupou até 1954 quando se aposentou. Pinheiro Junior faleceu em 2 de outubro de 1958. No Acervo Estadão estão registrados 3.311 textos publicados por ele entre os anos 1910 e 1945.
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