Um dos agentes da ditadura militar de maior visibilidade após o período da linha dura, Major Curió [1938-2002] foi o responsável pela revelação das entranhas de uma das maiores e mais sigilosas operações do regime. Em 2009, Curió abriu ao repórter Leonêncio Nossa, do Estadão, seu arquivo particular e revelou que o Exército executou 41 guerrilheiros na região do Araguaia, no coração da Floresta Amazônica.
Os documentos, guardados numa mala de couro vermelho por mais de três décadas, detalham e confirmam a execução de adversários da ditadura nas bases das Forças Armadas na Amazônia. Dos 67 integrantes do movimento de resistência mortos durante o conflito com militares, 41 foram presos, amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas. Até a abertura do arquivo de Curió, eram conhecidos 25 casos de execução.
Com documentos sobre as ações de repressão da ditadura militar contra opositores do regime possivelmente destruídos e o silêncio eterno de seus agentes, as revelações de Curió foram uma das raras frestas abertas para elucidar a realidade dos fatos ocorridos no período.
A série de documentos a qual Leonêncio teve acesso, muitos manuscritos do próprio punho de Curió, feitos durante e depois da guerrilha, contraria a versão militar de que os mortos estavam de armas na mão na hora em que tombaram. Muitos se entregaram nas casas de moradores da região ou foram rendidos em situações em que não ocorreram disparos. Os papéis esclarecem passo a passo a terceira e decisiva campanha militar contra os comunistas do PC do B - a Operação Marajoara, vencida pelas Forças Armadas, de outubro de 1973 a janeiro de 1975.
O Estadão detalhou as revelações em duas páginas da edição impressa de 21 de junho de 2009. Leia a reportagem de Leonêncio Nossa.
O arquivo de Sebatião Curió deixa claro que as bases de Bacaba, Marabá e Xambioá, no sul do Pará e norte do Estado do Tocantins, foram o centro da repressão militar. O guerrilheiro paulista Antônio Guilherme Ribas, o Zé Ferreira, teve um final trágico, descrito assim no arquivo de Curió: “Morto em 12/1973. Sua cabeça foi levada para Xambioá”. O piauiense Antonio de Pádua Costa morreu diante de um pelotão de fuzilamento em 5 de março de 1974, às margens da antiga PA-70. O gaúcho Silon da Cunha Brum, o Cumprido, entrou nessa lista. “Capturado” em janeiro de 1974, morreu em seguida. Daniel Ribeiro Calado, o Doca, é outro da lista: “Em jul/74 furtou uma canoa próximo ao Caianos e atravessou o Rio Araguaia, sendo capturado no Estado de Goiás”.
Só adolescentes que integravam a guerrilha foram poupados, como Jonas, codinome de Josias, de 17 anos, que ficou detido na base da Bacaba, no quilômetro 68 da Transamazônica. Documento datilografado do Comando Militar da Amazônia, de 3 de outubro de 1975, assinado pelo capitão Sérgio Renk, destaca que Jonas ficou três meses na mata com a guerrilha, “sendo posteriormente preso pelo mateiro Constâncio e ‘poupado’ pela FORÇA FEDERAL devido à pouca idade”.
Curió permitiu o acesso ao arquivo sem exigir uma avaliação prévia da síntese, das conclusões e análises dos documentos. Ele disse que essa foi uma promessa que fez para si próprio. Passadas mais de três décadas, a história da terceira campanha ainda assusta as Forças Armadas: foi o momento em que os militares retomaram as estratégias de uma guerra de guerrilha, abandonadas havia mais de cem anos. “Até o meio da terceira campanha houve combates. Mas, a partir do meio da terceira campanha para frente, houve uma perseguição atrás de rastros. Seguíamos esse rastro duas, três semanas”, relata. “A terceira campanha é que teve o efeito que o regime desejava.”
Um dos algozes do movimento armado na Amazônia, ele mantém um costume da época: não se refere aos guerrilheiros como terroristas, como outros militares. “Em hipótese alguma procuro denegrir a imagem dos integrantes da coluna guerrilheira, daquela juventude”, diz. “O inimigo, por ser inimigo, tem de ser respeitado.” Ele ressalta que, como um jovem capitão na selva, tinha ideal: “Queria ser militar porque queria defender a pátria, achava bonito. Alguns guerrilheiros tinham os mesmos ideais que nós. Mas nossos caminhos eram diferentes. Eu achava que o meu caminho era o correto. Eles achavam que o deles era o correto. Não eram bandidos, eram jovens idealistas”.
Extermínio - No livro A Ditadura Escancarada, o jornalista Elio Gaspari diz que “a reconstrução do que sucedeu na floresta a partir do Natal de 1973 é um exercício de exposição de versões prejudicadas pelo tempo, pelas lendas e até mesmo pela conveniência das narrativas”. E emenda: “Delas, a mais embusteira é a dos comandantes que se recusam a admitir a existência da guerrilha e a política de extermínio que contra ela foi praticada”.
Essa política de extermínio fica um pouco mais clara com a abertura do arquivo de Curió. Pela primeira vez, a versão militar da terceira e decisiva campanha é apresentada sem retoques por um participante direto das ações no Araguaia. Curió esteve envolvido no motim contra o presidente Geisel (1977), no comando do garimpo de Serra Pelada (1980-1983), na repressão ao incipiente Movimento dos Sem-Terra no Rio Grande do Sul (1981) e à frente de uma denúncia decisiva no processo de impeachment de Fernando Collor (1992).
O arquivo dá indicações sobre a política de extermínio comandada durante os governos de Emílio Garrastazu Medici e Ernesto Geisel por um triunvirato de peso. Na ponta das ordens estiveram os generais Orlando Geisel (ministro do Exército de Medici), Milton Tavares (chefe do Centro de Inteligência do Exército) e Antonio Bandeira (chefe das operações no Araguaia). Curió lembra que a ordem dos escalões superiores era tirar de combate todos os guerrilheiros. “A ordem de cima era que só sairíamos quando pegássemos o último.” “Se tivesse de combater novamente a guerrilha, eu combateria, porque estava erguendo um fuzil no cumprimento do dever, cumprindo uma missão das Forças Armadas, para assegurar a soberania e a integridade da pátria.”
Drible na censura - A primeira notícia sobre a Guerrilha do Araguaia, a reportagem “Em Xambioá, a luta é contra guerrilheiros e atraso”, publicada pelo Estadão em 24 de setembro de 1972, irritou o presidente Emílio Garrastazu Medici. Era um drible na censura, que mantinha os combates sob sigilo. “O presidente Medici ficou puto com o jornal e perguntou: ‘Como é que o Estadão entrou na área?’”, conta Curió.
A reportagem que abriu a cobertura jornalística sobre o tema deu detalhes das duas primeiras campanhas militares. Em 1979, o Jornal da Tarde publicou uma série histórica com detalhes das campanhas e da morte de guerrilheiros. Nos últimos sete anos, o Estado voltou à região para escrever o capítulo que faltou em 1972: a terceira e decisiva campanha. A equipe do jornal teve 45 encontros com Curió antes de chegar ao arquivo. O diálogo foi interrompido diversas vezes, sem explicações.
O acesso ao arquivo ocorreu em etapas. A primeira vez foi em 4 de abril de 2008, quando Curió permitiu que alguns papéis fossem copiados. O jornal só obteve acesso total aos documentos nos dias 9 e 10 de junho de 2009.