Depois de retratar São Paulo desde sua fundação até o final do século 19, no fundamental ‘A Capital da Solidão’ (2003), o jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo desvenda agora a história da cidade no período em que ela se esforça para ser uma metrópole. No seu novo livro A Capital da Vertigem, o autor narra a história da cidade desde o limiar do século 20 até a histórica comemoração do 4º Centenário em 1954. Entre os dois livros, o escritor presenciou o fenômeno da multiplicação dos acervos de jornais digitalizados, livros, teses e revistas acessíveis online. “No livro anterior eu tinha que ir até as bibliotecas. Desta vez elas vinham a mim”, declarou em entrevista ao Estadão Acervo. Quem já conhece a história de São Paulo do período, já bem documentada pela historiografia, pode num primeiro momento rejeitar o livro de Pompeu de Toledo. Mas os fatos históricos ganharam novos contornos com a presença da histórias dos personagens, do cotidiano e até das alcovas (ver abaixo trecho sobre a prostituta Madame Pommery). Resultado direto da pesquisa e da ampliação de fontes disponíveis. Além disso, a história da cidade narrada por Pompeu de Toledo é seguida por uma ideia central. Se em A Capital da Solidão o autor trabalhou o paradoxo de uma cidade isolada, geograficamente e politicamente, e que mesmo assim se tornou uma grande metrópole, em A Capital da Vertigem a ideia que acompanha a leitura é do esforço da cidade em se igualar às metrópoles da Europa e da América do Norte. Segundo o autor, a vertigem acabou e foi substituída pelo atordoamento, explica o autor. Leia abaixo a entrevista que o autor concedeu ao Estadão Acervo.Do tempo de Capital da Solidão ao atual, de A Capital da Vertigem, os acervo digitais cresceram. Como foi a experiência com a digitalização e o material online? Novas fontes foram descobertas?
Ter o acervo dos jornais disponíveis online foi fantástico. Pesquisei muito nos jornais, especialmente no Estado, que cobre todo o período do livro, mas também no Correio Paulistano, nas Folhas da Manhã e da Noite e em outras publicações. A internet também disponibiliza livros e teses digitalizados que me foram úteis. No livro anterior eu tinha que ir a bibliotecas. Desta vez elas vinham a mim. Outra novidade extremamente útil que não havia ao tempo da Capital da Solidão é a Estante Virtual. Graças a ela, achei livros que de outra forma não acharia.
Os livros do Laurentino Gomes sofreram preconceito e resistência da academia e de alguns historiadores. O mesmo aconteceu com Capital da Solidão? Acha que vai acontecer com Capital da Vertigem?
Não sei, não me chegaram manifestações desse tipo com relação à Capital da Solidão, mas não me surpreenderia se existissem, e que se manifestem agora com a Capital da Vertigem. Que fazer? Vejo essa coisa sob os seguintes pontos de vista: 1) A história não é propriedade privada, ou território reservado de caça, de ninguém; 2) Não tenho formação para pretender ser historiador. Considero-me um narrador da história, não um historiador; 3) Historiadores não deviam ter ciúme, inveja ou bronca de quem não é historiador. Deviam guardar o ciúme, a inveja e a bronca para seus concorrentes diretos e, 4) Nada impede que um historiador se permita ser também um narrador da história. A grande maioria não tem competência para isso, mas os poucos que a têm deviam sair a campo, sem medo do olhar atravessado dos colegas.
O paulistano de hoje sente uma nostalgia de um tempo em que não viveu. Ou seja, existe uma visão de que São Paulo foi uma cidade sem problemas, não tinha violência, trânsito. Do ponto de vista de um autor que escreveu sobre 400 anos da cidade, o que explica essa sensação? Na abertura do livro eu digo que São Paulo é como Maurília. Maurília é uma das "cidades invisíveis" de Italo Calvino. Contemplando-se os cartões postais da Maurília de outrora observa-se "a praça idêntica mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos.” É uma graça, perto da Maurília metrópole de hoje. Mas os habitantes daquela Maurília de outrora não viam nela nada de gracioso, e os habitantes da Maurília de hoje veriam menos ainda, se Maurília tivesse permanecido como antes. O enfado, ou mesmo a revolta com o presente tende a valorizar o passado além da conta.
No livro encontrei algumas fontes que mostraram a São Paulo periférica, ou o 'lado B' da cidade como o senhor escreveu. Um foi o francês Paul Walle, que visitou as fábricas no começo do século 20, e de depois Claude Levi-Strauss relatando os arrabaldes de São Paulo. Para quem escreve sobre a cidade, a falta de diversidade de relatos e fontes limita o trabalho. Há algum meio de contornar essa limitação?
Não acho que haja poucas fontes. Há bons relatos sobre a vida operária e as condições nas fábricas, e me aproveitei deles. O que não existia era o conceito de "periferia". Isso é fruto da urbanização acelerada e precoce que se desencadeia nos anos 1960/1970. Os operários eram pobres e tinham vida dura, mas não eram excluídos. Bem ou mal, estavam incluídos no processo produtivo. A grande exclusão - e a grande miséria - estava no campo. O núcleo de descendentes alemães que Levi Strauss conheceu em Santo Amaro era pequeno.
Me corrija se estou enganado. Em Capital da Solidão o senhor diz que se limitou a contar a história de São Paulo até 1900 porque no período posterior já havia bibliografia suficiente. Se eu estiver correto o que lhe fez mudar de ideia?
Não afirmei isso. Eu dizia que não voltaria à história de São Paulo porque não queria ser monotemático. A cidade de São Paulo é apenas um dos muitos interesses que tenho. Queria abordar outros assuntos. O que me fez mudar de ideia foram dois fatores. Primeiro, minha experiência à frente de um projeto (frustrado) de fazer um museu de história de São Paulo, iniciativa do governo do estado. Trabalhei dois anos nisso, o que implicou voltar à história da cidade. Ao fim e ao cabo, o projeto gorou (incrível como as coisas "goram" nos governos, com grande desperdício de tempo e dinheiro), mas eu voltei a ter interesse pelo assunto. O segundo fator é que, gorado o museu, eu precisaria abraçar outro projeto grande, e o que estava mais à mão era esse de fazer uma sequência à Capital da Solidão.
São Paulo já viveu a vertigem das chaminés, dos automóveis, da arte dos modernistas, dos arranha-céus, da urbanização à europeia. A vertigem acabou, ou estamos vivendo outra? A vertigem acabou. Dura apenas no período do livro, com seu ponto culminante nas comemorações do quarto centenário. Achava-se que o progresso seria contínuo, que tudo daria certo e que estava à vista o dia em que São Paulo se igualaria às grande metrópoles da Europa e da América do Norte. Na década seguinte o sonho seria substituído pela realidade de uma problemática cidade do Terceiro Mundo (conceito que no período do livro não estava em vigor). A partir daí a vertigem foi substituída pelo atordoamento.Tags: São Paulo, Roberto Pompeu de Toledo, História
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