Gilles Lapouge no Acervo Estadão
Estranho durante toda a sua vida, estranho mesmo depois de morto, eis a imagem que ele nos deixa ao desaparecer. Eis também, indubitavelmente, o que explica o curioso relacionamento passional que sempre existiu entre ele e o Brasil, relacionamento ilustrado pela última vez na reunião de pauta deste jornal esta manhã, no momento em que as primeiras palavras saíam pelos fones de ouvido: "Lapouge morreu”. Não houve quem deixasse de comover-se com a notícia. Um monstro acabava de desaparecer, uma dessas criaturas inclassificáveis, um campeão fora de série. Repentinamente, esta manhã, terminou um dos grandes capítulos da história jornalística brasileira.
O texto acima foi adaptado de um dos mais impactantes escritos de Gilles Lapouge [1923-2020] já publicados em sua extensa carreira de sete décadas no Estadão: a morte de Charles de Gaulle em 1970. O obituário do herói francês da Segunda Guerra Mundial que presidiu o país europeu por anos no pós-guerra e nos dramáticos anos da Guerra da Argélia ilustra como a precisão jornalística e a literatura eram indissociáveis na grande obra erguida por Lapouge, que orgulhava-se de ser o mais antigo funcionário e de ter testemunhado quase metade dos 145 anos do jornal. Sua última coluna, "As coincidências da raiva", foi publicada em 5 de junho.
Leia abaixo e nos links uma amostra possível do gigantesco material produzido por Gilles Lapouge nas páginas do jornal.
Fechado pela morte um capítulo da História [Morte de Charles de Gaulle no jornal de 11/11/1970]
"Estranho durante tôda a sua vida, estranho mesmo depois de morto, eis a imagem que ele nos deixa ao desaparecer. Eis também, indubitavelmente, o que explica o curioso relacionamento passional que sempre existiu entre êle e sua nação, relacionamento ilustrado pela última vez, esta manhã, no momento em que as primeiras edições do jornal France-Soir saiam às ruas, anunciando em títulos de dez centímetros de altura: De Gaulle morreu”
As bancas de jornais foram tomadas de assalto. Os populares detinham-se nas ruas para ler a notícia, cabisbaixos. Inimigos ou amigos, adversários ou admiradores fanáticos, não houve quem deixasse de comover-se com a notícia. Um monstro acabava de desaparecer, uma dessas criaturas inclassificáveis, um campeão fora de série que chegou a ser detestado mais do que qualquer outro, mas que jamais deixou de ser admirado como pessoa. Repentinamente, esta manhã, terminou um dos grandes capítulos da História francesa." [leia a íntegra]
> A situação econômica da França - 25/1/1951 [primeiro texto escrito para o jornal, sem assinatura]
> A vocação industrial de São Paulo - 25/1/1954 [Primeiro texto assinado]
> O duplo olhar de um correspondente
[Funcionário mais antigo do jornal, Lapouge fala sobre o Estadão]
Lapouge acompanhou e narrou todos os capítulos sombrios e perturbadores da guerra: o terrorismo da FLN, Frente de Libertação Nacional, os métodos de tortura empregados pelo exército francês sob a tutela do General Massu, o momento quando o terror que vitimizava civis em Argel e Orã cruzou o Mediterrâneo e chegou aos cafés de Paris, o surgimento da organização paramilitar clandestina dos partidários da “Argélia francesa” a OAS, Organisation Armée Secrète, que justificava suas ações terroristas como contra- terrorismo.
O jornalista, que também descreveu a escalada do ódio racial que permeou o conflito, foi o enviado especial do jornal para os festejos da independência em Argel , em julho de 1962. Testemunhou a reconciliação entre árabes e europeus, celebrada nas ruas com efusivos abraços, e concluiu:
“Todas as guerras são absurdas, mas o epílogo patético de uma das maiores tragédias do pós-guerra demonstrou-o com uma rara clareza.”
Brasil - Recomendado ao jornalista Julio de Mesquita Filho pelo intelectual francês Fernand Braudel, Lapouge relembrou em entrevista a Laura Greenhalgh, em 2009, a sua chegada ao Brasil:
Por falar em Braudel, ele foi encarregado de promover o seu encontro com o Brasil nos anos 50, não foi?
Sim, já se ouvia falar dele por aqui.Era um historiador conhecido.Em 1935, partira para o Brasil com um grupo de franceses para fundar a Universidade de São Paulo.Eu o reencontrei em 1948, quando retornou à França.Naquela época, Julio de Mesquita Filho, diretor do Estado, havia lhe dito: “Encontre um jovem jornalista francês para vir trabalhar no meu jornal.” Soube então que Braudel procurava essa pessoa por intermédio do serviço cultural do Quai d’Orsay.Eu me apresentei, pedi a ajuda de um amigo para montar alguns textos e levá-los a Braudel, afinal, eu não era jornalista, e acabei sendo escolhido.O Brasil tem uma importância capital na minha obra, até porque 3/4 da minha vida estão ligados ao País.Graças ao Brasil eu me interessei pelo mundo e comecei a viajar.Não fosse por isso eu seria um francês normal, sem graça, de uma família francesa desde sempre.
Quando você chegou?
Em 1950, ainda na presidência Dutra.Não tinha ideia do que era o Brasil.A França saía da guerra, portanto, eu estava impregnado de um país cinza, sombrio.Ainda sentíamos os efeitos da administração Pétain, da perseguição aos judeus, etc.Deixei tudo isso para trás, porque no Brasil as cores mudaram.Foi uma revelação extraordinária do ponto de vista da beleza, da sensualidade, da capacidade de estar aberto ao outro, enfim, da joie de vivre.Com a vantagem de que não cheguei na condição de turista, mas para trabalhar. [leia a íntegra]
> Guerra da Argélia (1954-1962)
> Morte de Albert Camus (1960)> Movimento de Maio de 1968
> Morte de Charles de Gaulle (1970)
> Atentados terroristas de 11 de setembro (2001)
> Rebeliões nos subúrbios de Paris (2005)
Veja também:
> Todas as edições > Censuradas > Tópicos > Pessoas > Lugares > Capas históricas