Millôr no Estadão: “a única organização que começou na imprensa antes de mim”. Leia as colunas


O artista, humorista, ilustrador, poeta e escritor brincou com sua longevidade e a do jornal quando estreou sua coluna em 1999: “Olha aqui eu, mamita, onde é quistou”

Por Rose Saconi, Carlos Eduardo Entini, Liz Batista e Edmundo Leite
Atualização:
Chamada na capa para a estreia da coluna de Millôr no Estadão em 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Millôr Fernandes [1923-2012] já tinha passado por vários veículos de imprensa marcantes do século 20 quando, aos 76 anos, chegou ao Estadão em 1999. Em sua estreia na coluna semanal publicada no caderno Cultura em 20 de junho, Millôr contou um pouco de sua trajetória no jornalismo e da diferença da nova casa no texto intitulado “Olha aqui eu, mamita, onde é quistou:

“Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

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E terminou assim seu texto de estreia:

“Eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão, a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas me contemplam.”

Millôr Fernandes, Estadão, 20/6/1999

Millôr Fernandes

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Foto: IARLI GOULART/ESTADÃO
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Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO
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Foto: RICARDO CHAVES/ESTADÃO
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Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO
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Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO
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Na capa, o jornal também anunciava a estreia do colaborador com uma brincadeira sob o nome de Millôr desenhado por ele, sua assinatura colorida: “O maior humorista do País no jornal mais sério do País. Nem ele acredita”

O jornal ainda dedicou mais duas páginas para apresentar Millôr aos seus leitores, com uma capa interna ilustrada com uma colagem do artista sob o título “Arte é intriga” e outra com um texto de Mauro Dias e uma entrevista com o artista.

Leia a íntegra dos textos da estreia da coluna, que foi publicada até julho do ano seguinte, e veja outras páginas, textos e fotos de Millôr no Estadão:

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Texto de estreia de Millôr Fernandes no Estadão, publicado em 20/6/1999. Foto: Estadão
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Não somos daqueles que botam óculos cor de rosa pra não ver a fuligem dostempos, mas também não usamos óculos escuros pra evitar o brilho da aurora que surge em preto e branco. A melhor maneira de viver é continuar vivendo. Provocar inveja nos que já morreram. Ah, e antes que eu me esqueça – a dor ésempre dos outros. Em nós a dos outros pode doer um pouquinho – só nos extremamente sensíveis – mas logo voltamos ao nosso amado umbigo.

Você acha que o filme de Cacá Diegues teve um espectador a menos porque a Otan bombardeou errado a embaixada chinesa? Alguém aí do outro lado da página teve insônia porque morreram trinta e três socovenses? Quem deixou de ir ao bar, ao point, porque a alegre rapaziada da Geórgia fuzilou metade do colégio? Vamos lá, só eu é que vou ao cinema me divertir (?) ignorando as dores do mundo e as cólicas do próximo?

Diz aí, Fernando P. – só eu e você éque levamos porrada, ô pá? Então vamos, vamos aproveitar meu início aqui, neste espaço e neste momento, esquecendo o resto e abrindo champanhe aos quinhentos anos de São Paulo. Não são agora? Mas vamos nos preparando. O tempo passa depressa - já ouviram essa?

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Ainda ontem eu estava aqui, festejando os quatrocentos anos da cidade com o Antônio Maria (é, o do “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém mechama de Baudelaire”), e ele, dentro do seu Cadilac conversível, não parava de cantar o seu (e de São Paulo) hino: “São Paulo, quatrocentos anos, quatrocentos desenganos de amor, eu daqui não saio mais, de São Paulo” (isso quando Cae ainda nem pisava distraído na Avenida São João), e depois íamos à Cine Citá, perdão, Vera Cruz, ver a estréia do Cangaceiro, ao lado da Tônia, gracinha, meu Deus do céu!

E logo era tomar umas e outras no melhor bar deSão Paulo, adivinhem onde? Bem no hall deste glorioso jornal. Tempora, tempore, tempra. Mas São Paulo não é mais a mesma. Piorou? O que não piorou nas ruas do mundo? Já vi o Tâmisa afogado em lixo. E o Danúbio não é mais azul (agora,com essas Otans se divertindo por lá, é até um pouco vermelho). Mas as cidades, ao contrário das gentes, e igual às granfinas, rejuvenescem.

Ainda vou voltar à Praça da República de quando as moças andavam de chapéu e passeavam na Cinelândia (ando misturando as coisas, e até acho bom, numa colagem entre o que há de melhor, no tempo e no espaço) vestidas por costureiros. Ainda não se vestiam de trapos imitando os pobres, nem andavam seminuas imitando, o que mesmo? Não vou dizer. Só vou dizer que embolou o meio do campo. E que no motel está a última resistência da moralidade burguesa.

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No mais, como diz o general de plantão (perdão, filho de general), está tudo sob controle. Exceto o botão do controle. O governo cheira a bancarrota no sentido próprio da expressão, fede a PF, tresanda a imobiliárias judiciárias (até rima!), o Dr. Nicolau e o Dr. Cacciola mostram que cada governo tem os PCs que nem sequer merece, continuam as viagens tipo êta nóis, hein mãe?, prosseguem as decisões políticas definitivas válidas por 24 horas, e os banquetes pantagruélicos (vulgo licitações) onde se engole o país – e se expele criancinhas nas ruas.

Não há como negar – alguns bilhões a menos na gangorra – perdão, balança – comercial, um massacrezinho de índios aqui, uns dez bilhões pros ruralistas ali, uns vinte pros bancos pré-sistêmicos acolá, a droga comendo solta nesta Medelin com elefantíase, dão toda razão a esse antigo ociólogo neo qualquer coisa – o Brasil é um país injusto. Só não vê quem não quer – mesmo caindo do mais alto galho do poder, nenhum rico se machuca.

Mas vou te dizer, não conta pra ninguém – essas coisas nem apareceriam, ou seriam facilmente absorvidas, se não existisse a maldita imprensa com suas intrigas, suas orquestrações, seus planos diabólicos de desmoralização do poder central, seus baixos interesses morais, seus jornalistas ignorantes, sectários e corruptos. Essa imprensa safada. Que publica tudo o que acontece.

À qual, por falta de ideal mais alto, de profissão mais digna, de cargo mais bem remunerado, eu continuo, agora, neste local e nesta hora, nesta linha e nesta letra.

Porém, prometendo solenemente, a mim mesmo e a vocês todos, não botar a boca no trombone. Não sou músico, e não pretendo ser mais uma arcada dentária sem dentista no livro do tombo das alagoas da vida. Pois bem que gostaria.

Mas já não tenho como mudar de profissão. Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

Portanto eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão (antigo macro do Estado de S. Paulo), a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas mecontemplam.

Capa do caderno Cultura do Estadão de 20/6/1999 apresentando Millôr aos leitores. Foto: Acervo Estadão


Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Mauro Dias

Esse é apenas um dos paradoxos de uma das pessoas a quem o País mais leva a sério e que a partir de hoje passa a colaborar com o Estado

De mudança para Nova York, Paulo Francis começava seu artigo de despedida, no Pasquim: “Eu, Deus...” Alguns anos depois dizia de Millôr Fernandes, companheiro de redação do hebdomadário e amigo da vida toda: “É um centro moral do individualismo intransigente.”

Individualistas ambos, intransigentes ambos – e Millôr, a quem justamente se atribui a qualidade do espírito livre, poderia ter começado um texto com a graça de Francis. Prefere a graça temperada – no sentido bachiano – do escritor sem estilo. “Enfim, um escritor sem estilo” é um de seus motes.

E é apenas um dos paradoxos millorianos, pois sua obra múltipla traz a marca inconfundível do estilo. Um desenho de Millôr Fernandes, seja em bico-de-pena, pincel ou computador (que abandonou), é inconfundível. Um texto de Millôr Fernandes não se parece com nada a não ser com um texto de Millôr Fernandes.

Seu teatro é único, de Flávia: Cabeça, Tronco e Membros às adaptações à realidade e tempo brasileiros de obras alheias. Suas traduções – mais de cem títulos, do tramadurgo inglês Shakespeare ao fabulista guatemalteco Augusto Monterroso – são também inconfundíveis, traduções no sentido mais sólido: o coloquial é coloquial, o metalingüístico (êpa!) é metalingüístico.

Paradoxo, ainda: o escritor que se dedicou à graça é uma das pessoas a quem mais o País leva a sério, há mais de cinco décadas. Não que seja necessário acreditar em tudo o que ele diz – quando afirma, por exemplo, que o bom de guardar coisas antigas é que se pode republicá-las 20 anos depois, sem que ninguém perceba, está fazendo piada – mas, sem dúvida, é preciso pensar em tudo o que ele diz.

E diz muito, desde que começou, aos 13 anos – está com 75 – na revista O Cruzeiro. Cresceu, diz, em “divagações peripatéticas” pelo centro do Rio, amigo de Orestes Barbosa (Chão de Estrelas) e Nássara (Perequitinho Verde, também chargista do Cruzeiro). Passou pelas redações do Jornal do Brasil, O Globo, da Veja, IstoÉ, do Pasquim. Criou sua revista, o Pif-Paf (“Cada número é um exemplar, cada exemplar é um número”), em maio de 1964. Um mês depois do golpe militar.

Em seu último número, o oitavo, o Pif-Paf advertia, na contracapa: “...Se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem com sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.”

Não caímos, senão 20 anos depois. Millôr foi censurado mesmo no governo Juscelino – e, livre pensar é só pensar (outro dístico), votou em Fernando Collor, para não votar no PT. Disse que se fosse prefeito (e não se referia a São Paulo) se suicidaria.

Prefere escrever: fábulas, poemetos, haicais, composições (aliás, composissões) infantis, traduções da observação do cotidiano, teatro, cinema (já atuou, também), musicais. E ensinou-nos, entre tantas outras coisas, que o sexo seria uma coisa esplêndida se Adão, em vez da inspída maçã, tivesse colhido, por exemplo, o tamarindo. Hummm.

Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

O humor é o sal da terra, não é uma coisa abaixo da seriedade’

Há mais de 50 anos ele pratica a graça, algo inerente que, diz, existe na tristeza e na alegria

Mauro Dias

Na entrevista abaixo, Millôr Fernandes reafirma algum ceticismo e confirma a crença de que o humor, mais ou menos como o casamento, é inerente ao ser humano: existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria, e mais: o humorismo não é, diz, coisa abaixo da seriedade, mas a quintessência da seriedade.

Estado – Numa autobiografia, o senhor diz: Millôr Fernandes nasceu no Méier, aos 15 anos...” , acho que aos 15 anos. Foi quando, parece, o senhor descobriu que se chamava Millôr, não Milton. Pode rememorar a história? Milton seria o mesmo intelectual que é Millôr?

Millôr Fernandes – Não aos 15. Aos 9. A descoberta do Millôr foi aos 18 anos. T aberto (como se escreve em cursivo, transformando-se em L) e seu traço virando acento circunflexo sobre o “o”. Mas a referência a isso já foi publicada muitas vezes. Não sei até onde um nome pode influenciar um destino. Mas que Millôr é melhor do que Milton é evidente.

Estado – O senhor fundou e conseguiu manter por oito números uma revista de irreverência e humor, o Pif-Paf, em 1964. Foi o embrião do Pasquim, que durou muitos anos e do qual o senhor esteve também à frente. Por que um durou, outro não?

Millôr – Um não durou porque foi fechado, o outro durou porque ficou aberto. Tudo é absolutamente circunstancial.

Estado – Surge agora uma nova revista de humor, Bundas, criada por dois ex-diretores do Pasquim, Jaguar e Ziraldo. O senhor arriscaria uma previsão de vida? Há lugar para uma publicação humorística, no mercado brasileiro?

Millôr – Neste momento Bundas lançou seu primeiro número e há expectativa de esgotar no primeiro dia de venda. Acredito que o sucesso se deve fundamentalmente a nenhum de nós acreditar em pesquisa de mercado. Isso só serve pra continuar fazendo o que já se faz. Em tempo: o que é “humorístico”?

Estado – A propósito, é mais fácil ou mais difícil fazer graça com o (ou no) Brasil de hoje?

Millôr – A graça é inerente. O meio pode provocar uma forma ou outra, mas ela existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria. É mais ou menos como o casamento.

Estado – Luis Fernando Verissimo diz, em coro com tantos outros, que quando o senhor é chamado de humorista, de certa forma diminui-se sua importância maior, de escritor, teatrólogo, tradutor, desenhista, criador, roteirista, enfim, intelectual. Há um preconceito contra os intelectuais que fazem humor?

Millôr – Acho que cada um tem o direito de achar o que bem entender. Há tempos os congressistas não se ofenderam quando houve comparação entre o edifício do Congresso em Brasília e um circo que acabava de ser montado em frente. Existe alguma profissão mais digna, mais empenhada, mais disciplinada do que a do trabalhador de circo? Você já viu alguém querer empregar um primo no circo porque ele tem jeito pra andar no arame? Já o Congresso. Em suma – o humor é o sal da terra, o humorismo não é uma coisa abaixo da seriedade, é a quintessência da seriedade. Lembre-se sempre que o cristianismo foi criado por um trocadilho de Cristo (está escrito em tamanho gigantesco na Igreja de São Pedro): “Pedro, tu és pedra e sobre ti edificarei a minha Igreja.”

Estado – Um dos que fazem coro com Verissimo é Jaguar, para quem a maior dificuldade, quando se olha sua obra, é saber que ponto dela é melhor. A obra de Jaguar está toda espalhada, talvez irrecuperavelmente. Quem deveria cuidar, e não cuida, desses tesouros?

Millôr – Acho que ninguém deveria cuidar de coisa alguma e que deveríamos todos esquecer tudo e começar tudo de novo a cada dia. Eu não sei onde “eles” guardam tanto papel velho, tanta palavra gravada, tanta fita de testemunhos inúteis. Se tudo desaparecer não fará a menor diferença na economia do cosmo.

Estado – O senhor já lançou várias antologias pessoais e agora está lançando mais uma, em forma de CD-ROM. Existe a intenção de uma integral milloriana? O senhor tem guardados os seus originais, desde O Cruzeiro?

Millôr – Não tenho intenção de fazer nada. Tudo que faço é motivado por forças exteriores. Como, por exemplo, agora, no Estado. O convite – assustador, aliás – me obriga a uma tomada de posição e, de um modo ou de outro, a nova “pensata”. Sempre velha, aliás. Tenho guardado todos os meus originais – os que são feitos com continuidade, como Cruzeiro, Veja, etc. – por sorte. Alguém começou a fazer isso pra mim e outros alguéns continuaram. Tudo encadernado, ano a ano. Mas isso só tem uma vantagem e uma utilidade – pode-se reler e utilizar uma coisa escrita e publicada há 20 ou mais anos.

Estado – Que fim levou Vão Gôgo?

Millôr – Vão Gôgo nasceu em 1944 e morreu em 1956, aos 12 anos de idade e profissão. Como só aí Millôr começou a escrever, pode-se dizer que Millôr é 12 anos mais novo do que o registrado nas certidões.

Estado – Seu “livro desidratado” sobre a moça que viu, por 30 segundos, da janela, “sem idéias, só a aventura da linguagem”, em que pé anda? E o roteiro para Walter Salles?

Millôr – A moça está lá, parada Em Pé, na Esquina. É um projeto sem sentido num país como o Brasil. Últimos Diálogos, o roteiro para Walter Salles, jamais será filmado. Mas é assim mesmo, nesse tipo de trabalho profissional. As condições desaparecem, a coisa não se realiza. Vinte por cento do que fiz para teatro nunca foi (por que foram?, o porcentual é um coletivo como multidão, pessoal, etcetera) levado.

Estado – Chico Buarque e Edu Lobo, como o senhor, dizem que é melhor trabalhar sob encomenda, por força de compromisso. Poderia falar sobre isso?

Millôr – Pergunta prejudicada. Reitero – se não me convidasse para fazer coisas desde que iniciei minha vida profissional eu não faria nada. Ou melhor faria o que fiz espontaneamente até hoje: uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio e a peça Flávia, Cabeça, Tronco e Membros.

Estado – Como o senhor vê o humor da televisão? E a televisão?

Millôr – O humor da televisão destina-se à televisão. Isto é, destina-se ao Ibope. Portanto, seu texto e todo seu objetivo é sempre o mais baixo possível. O que não impede a genial criação de tipos do Chico Anysio, do Jô e do Agildo Ribeiro.

Estado – Um Elefante no Caos ainda é um retrato do Brasil.

Millôr – Não. A peça, levada hoje – é uma fantasia perfeitamente bem realizada, passa-se num apartamento que está pegando fogo – soaria bastante ingênua. Não, esse Brasil morreu. Mas a China também morreu, a Alemanha e creio que até o Paraguai já não é mais o mesmo. (M.D.)


Millôr Fernandes,Rio de Janeiro, RJ, 24/02/1988. Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO

Teatro, cinema, tradução e poesia

Além das páginas de jornais e revistas, a obro de Millôr Fernandes deixou um legado que atravessou gerações, marcado pela versatilidade e inteligência, com suas criações se espalhando por palcos de teatro, na tradução literária e litaratura, no cinema, na ilustração, na poesia e nas estantes de muitos leitores.

Homenagem a Millôr Fernandes no Estadão de 1/4/2012. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Millôr por Sábato Magaldi

 O Estado de S. Paulo - 31/5/1958 Foto: Estadão
Millôr Fernandes, São Paulo, SP, 2/7/1965. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Jornal da Tarde - 22/10/1994

 Foto: Estadão
O Estado de S. Paulo 4/4/1998 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 9/5/2004. Foto: ACERVO/ESTADÃO
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 2/9/2006. Foto: ACERVO/ESTADÃO

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Chamada na capa para a estreia da coluna de Millôr no Estadão em 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Millôr Fernandes [1923-2012] já tinha passado por vários veículos de imprensa marcantes do século 20 quando, aos 76 anos, chegou ao Estadão em 1999. Em sua estreia na coluna semanal publicada no caderno Cultura em 20 de junho, Millôr contou um pouco de sua trajetória no jornalismo e da diferença da nova casa no texto intitulado “Olha aqui eu, mamita, onde é quistou:

“Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

E terminou assim seu texto de estreia:

“Eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão, a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas me contemplam.”

Millôr Fernandes, Estadão, 20/6/1999

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Na capa, o jornal também anunciava a estreia do colaborador com uma brincadeira sob o nome de Millôr desenhado por ele, sua assinatura colorida: “O maior humorista do País no jornal mais sério do País. Nem ele acredita”

O jornal ainda dedicou mais duas páginas para apresentar Millôr aos seus leitores, com uma capa interna ilustrada com uma colagem do artista sob o título “Arte é intriga” e outra com um texto de Mauro Dias e uma entrevista com o artista.

Leia a íntegra dos textos da estreia da coluna, que foi publicada até julho do ano seguinte, e veja outras páginas, textos e fotos de Millôr no Estadão:

Texto de estreia de Millôr Fernandes no Estadão, publicado em 20/6/1999. Foto: Estadão

Não somos daqueles que botam óculos cor de rosa pra não ver a fuligem dostempos, mas também não usamos óculos escuros pra evitar o brilho da aurora que surge em preto e branco. A melhor maneira de viver é continuar vivendo. Provocar inveja nos que já morreram. Ah, e antes que eu me esqueça – a dor ésempre dos outros. Em nós a dos outros pode doer um pouquinho – só nos extremamente sensíveis – mas logo voltamos ao nosso amado umbigo.

Você acha que o filme de Cacá Diegues teve um espectador a menos porque a Otan bombardeou errado a embaixada chinesa? Alguém aí do outro lado da página teve insônia porque morreram trinta e três socovenses? Quem deixou de ir ao bar, ao point, porque a alegre rapaziada da Geórgia fuzilou metade do colégio? Vamos lá, só eu é que vou ao cinema me divertir (?) ignorando as dores do mundo e as cólicas do próximo?

Diz aí, Fernando P. – só eu e você éque levamos porrada, ô pá? Então vamos, vamos aproveitar meu início aqui, neste espaço e neste momento, esquecendo o resto e abrindo champanhe aos quinhentos anos de São Paulo. Não são agora? Mas vamos nos preparando. O tempo passa depressa - já ouviram essa?

Ainda ontem eu estava aqui, festejando os quatrocentos anos da cidade com o Antônio Maria (é, o do “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém mechama de Baudelaire”), e ele, dentro do seu Cadilac conversível, não parava de cantar o seu (e de São Paulo) hino: “São Paulo, quatrocentos anos, quatrocentos desenganos de amor, eu daqui não saio mais, de São Paulo” (isso quando Cae ainda nem pisava distraído na Avenida São João), e depois íamos à Cine Citá, perdão, Vera Cruz, ver a estréia do Cangaceiro, ao lado da Tônia, gracinha, meu Deus do céu!

E logo era tomar umas e outras no melhor bar deSão Paulo, adivinhem onde? Bem no hall deste glorioso jornal. Tempora, tempore, tempra. Mas São Paulo não é mais a mesma. Piorou? O que não piorou nas ruas do mundo? Já vi o Tâmisa afogado em lixo. E o Danúbio não é mais azul (agora,com essas Otans se divertindo por lá, é até um pouco vermelho). Mas as cidades, ao contrário das gentes, e igual às granfinas, rejuvenescem.

Ainda vou voltar à Praça da República de quando as moças andavam de chapéu e passeavam na Cinelândia (ando misturando as coisas, e até acho bom, numa colagem entre o que há de melhor, no tempo e no espaço) vestidas por costureiros. Ainda não se vestiam de trapos imitando os pobres, nem andavam seminuas imitando, o que mesmo? Não vou dizer. Só vou dizer que embolou o meio do campo. E que no motel está a última resistência da moralidade burguesa.

No mais, como diz o general de plantão (perdão, filho de general), está tudo sob controle. Exceto o botão do controle. O governo cheira a bancarrota no sentido próprio da expressão, fede a PF, tresanda a imobiliárias judiciárias (até rima!), o Dr. Nicolau e o Dr. Cacciola mostram que cada governo tem os PCs que nem sequer merece, continuam as viagens tipo êta nóis, hein mãe?, prosseguem as decisões políticas definitivas válidas por 24 horas, e os banquetes pantagruélicos (vulgo licitações) onde se engole o país – e se expele criancinhas nas ruas.

Não há como negar – alguns bilhões a menos na gangorra – perdão, balança – comercial, um massacrezinho de índios aqui, uns dez bilhões pros ruralistas ali, uns vinte pros bancos pré-sistêmicos acolá, a droga comendo solta nesta Medelin com elefantíase, dão toda razão a esse antigo ociólogo neo qualquer coisa – o Brasil é um país injusto. Só não vê quem não quer – mesmo caindo do mais alto galho do poder, nenhum rico se machuca.

Mas vou te dizer, não conta pra ninguém – essas coisas nem apareceriam, ou seriam facilmente absorvidas, se não existisse a maldita imprensa com suas intrigas, suas orquestrações, seus planos diabólicos de desmoralização do poder central, seus baixos interesses morais, seus jornalistas ignorantes, sectários e corruptos. Essa imprensa safada. Que publica tudo o que acontece.

À qual, por falta de ideal mais alto, de profissão mais digna, de cargo mais bem remunerado, eu continuo, agora, neste local e nesta hora, nesta linha e nesta letra.

Porém, prometendo solenemente, a mim mesmo e a vocês todos, não botar a boca no trombone. Não sou músico, e não pretendo ser mais uma arcada dentária sem dentista no livro do tombo das alagoas da vida. Pois bem que gostaria.

Mas já não tenho como mudar de profissão. Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

Portanto eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão (antigo macro do Estado de S. Paulo), a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas mecontemplam.

Capa do caderno Cultura do Estadão de 20/6/1999 apresentando Millôr aos leitores. Foto: Acervo Estadão


Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Mauro Dias

Esse é apenas um dos paradoxos de uma das pessoas a quem o País mais leva a sério e que a partir de hoje passa a colaborar com o Estado

De mudança para Nova York, Paulo Francis começava seu artigo de despedida, no Pasquim: “Eu, Deus...” Alguns anos depois dizia de Millôr Fernandes, companheiro de redação do hebdomadário e amigo da vida toda: “É um centro moral do individualismo intransigente.”

Individualistas ambos, intransigentes ambos – e Millôr, a quem justamente se atribui a qualidade do espírito livre, poderia ter começado um texto com a graça de Francis. Prefere a graça temperada – no sentido bachiano – do escritor sem estilo. “Enfim, um escritor sem estilo” é um de seus motes.

E é apenas um dos paradoxos millorianos, pois sua obra múltipla traz a marca inconfundível do estilo. Um desenho de Millôr Fernandes, seja em bico-de-pena, pincel ou computador (que abandonou), é inconfundível. Um texto de Millôr Fernandes não se parece com nada a não ser com um texto de Millôr Fernandes.

Seu teatro é único, de Flávia: Cabeça, Tronco e Membros às adaptações à realidade e tempo brasileiros de obras alheias. Suas traduções – mais de cem títulos, do tramadurgo inglês Shakespeare ao fabulista guatemalteco Augusto Monterroso – são também inconfundíveis, traduções no sentido mais sólido: o coloquial é coloquial, o metalingüístico (êpa!) é metalingüístico.

Paradoxo, ainda: o escritor que se dedicou à graça é uma das pessoas a quem mais o País leva a sério, há mais de cinco décadas. Não que seja necessário acreditar em tudo o que ele diz – quando afirma, por exemplo, que o bom de guardar coisas antigas é que se pode republicá-las 20 anos depois, sem que ninguém perceba, está fazendo piada – mas, sem dúvida, é preciso pensar em tudo o que ele diz.

E diz muito, desde que começou, aos 13 anos – está com 75 – na revista O Cruzeiro. Cresceu, diz, em “divagações peripatéticas” pelo centro do Rio, amigo de Orestes Barbosa (Chão de Estrelas) e Nássara (Perequitinho Verde, também chargista do Cruzeiro). Passou pelas redações do Jornal do Brasil, O Globo, da Veja, IstoÉ, do Pasquim. Criou sua revista, o Pif-Paf (“Cada número é um exemplar, cada exemplar é um número”), em maio de 1964. Um mês depois do golpe militar.

Em seu último número, o oitavo, o Pif-Paf advertia, na contracapa: “...Se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem com sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.”

Não caímos, senão 20 anos depois. Millôr foi censurado mesmo no governo Juscelino – e, livre pensar é só pensar (outro dístico), votou em Fernando Collor, para não votar no PT. Disse que se fosse prefeito (e não se referia a São Paulo) se suicidaria.

Prefere escrever: fábulas, poemetos, haicais, composições (aliás, composissões) infantis, traduções da observação do cotidiano, teatro, cinema (já atuou, também), musicais. E ensinou-nos, entre tantas outras coisas, que o sexo seria uma coisa esplêndida se Adão, em vez da inspída maçã, tivesse colhido, por exemplo, o tamarindo. Hummm.

Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

O humor é o sal da terra, não é uma coisa abaixo da seriedade’

Há mais de 50 anos ele pratica a graça, algo inerente que, diz, existe na tristeza e na alegria

Mauro Dias

Na entrevista abaixo, Millôr Fernandes reafirma algum ceticismo e confirma a crença de que o humor, mais ou menos como o casamento, é inerente ao ser humano: existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria, e mais: o humorismo não é, diz, coisa abaixo da seriedade, mas a quintessência da seriedade.

Estado – Numa autobiografia, o senhor diz: Millôr Fernandes nasceu no Méier, aos 15 anos...” , acho que aos 15 anos. Foi quando, parece, o senhor descobriu que se chamava Millôr, não Milton. Pode rememorar a história? Milton seria o mesmo intelectual que é Millôr?

Millôr Fernandes – Não aos 15. Aos 9. A descoberta do Millôr foi aos 18 anos. T aberto (como se escreve em cursivo, transformando-se em L) e seu traço virando acento circunflexo sobre o “o”. Mas a referência a isso já foi publicada muitas vezes. Não sei até onde um nome pode influenciar um destino. Mas que Millôr é melhor do que Milton é evidente.

Estado – O senhor fundou e conseguiu manter por oito números uma revista de irreverência e humor, o Pif-Paf, em 1964. Foi o embrião do Pasquim, que durou muitos anos e do qual o senhor esteve também à frente. Por que um durou, outro não?

Millôr – Um não durou porque foi fechado, o outro durou porque ficou aberto. Tudo é absolutamente circunstancial.

Estado – Surge agora uma nova revista de humor, Bundas, criada por dois ex-diretores do Pasquim, Jaguar e Ziraldo. O senhor arriscaria uma previsão de vida? Há lugar para uma publicação humorística, no mercado brasileiro?

Millôr – Neste momento Bundas lançou seu primeiro número e há expectativa de esgotar no primeiro dia de venda. Acredito que o sucesso se deve fundamentalmente a nenhum de nós acreditar em pesquisa de mercado. Isso só serve pra continuar fazendo o que já se faz. Em tempo: o que é “humorístico”?

Estado – A propósito, é mais fácil ou mais difícil fazer graça com o (ou no) Brasil de hoje?

Millôr – A graça é inerente. O meio pode provocar uma forma ou outra, mas ela existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria. É mais ou menos como o casamento.

Estado – Luis Fernando Verissimo diz, em coro com tantos outros, que quando o senhor é chamado de humorista, de certa forma diminui-se sua importância maior, de escritor, teatrólogo, tradutor, desenhista, criador, roteirista, enfim, intelectual. Há um preconceito contra os intelectuais que fazem humor?

Millôr – Acho que cada um tem o direito de achar o que bem entender. Há tempos os congressistas não se ofenderam quando houve comparação entre o edifício do Congresso em Brasília e um circo que acabava de ser montado em frente. Existe alguma profissão mais digna, mais empenhada, mais disciplinada do que a do trabalhador de circo? Você já viu alguém querer empregar um primo no circo porque ele tem jeito pra andar no arame? Já o Congresso. Em suma – o humor é o sal da terra, o humorismo não é uma coisa abaixo da seriedade, é a quintessência da seriedade. Lembre-se sempre que o cristianismo foi criado por um trocadilho de Cristo (está escrito em tamanho gigantesco na Igreja de São Pedro): “Pedro, tu és pedra e sobre ti edificarei a minha Igreja.”

Estado – Um dos que fazem coro com Verissimo é Jaguar, para quem a maior dificuldade, quando se olha sua obra, é saber que ponto dela é melhor. A obra de Jaguar está toda espalhada, talvez irrecuperavelmente. Quem deveria cuidar, e não cuida, desses tesouros?

Millôr – Acho que ninguém deveria cuidar de coisa alguma e que deveríamos todos esquecer tudo e começar tudo de novo a cada dia. Eu não sei onde “eles” guardam tanto papel velho, tanta palavra gravada, tanta fita de testemunhos inúteis. Se tudo desaparecer não fará a menor diferença na economia do cosmo.

Estado – O senhor já lançou várias antologias pessoais e agora está lançando mais uma, em forma de CD-ROM. Existe a intenção de uma integral milloriana? O senhor tem guardados os seus originais, desde O Cruzeiro?

Millôr – Não tenho intenção de fazer nada. Tudo que faço é motivado por forças exteriores. Como, por exemplo, agora, no Estado. O convite – assustador, aliás – me obriga a uma tomada de posição e, de um modo ou de outro, a nova “pensata”. Sempre velha, aliás. Tenho guardado todos os meus originais – os que são feitos com continuidade, como Cruzeiro, Veja, etc. – por sorte. Alguém começou a fazer isso pra mim e outros alguéns continuaram. Tudo encadernado, ano a ano. Mas isso só tem uma vantagem e uma utilidade – pode-se reler e utilizar uma coisa escrita e publicada há 20 ou mais anos.

Estado – Que fim levou Vão Gôgo?

Millôr – Vão Gôgo nasceu em 1944 e morreu em 1956, aos 12 anos de idade e profissão. Como só aí Millôr começou a escrever, pode-se dizer que Millôr é 12 anos mais novo do que o registrado nas certidões.

Estado – Seu “livro desidratado” sobre a moça que viu, por 30 segundos, da janela, “sem idéias, só a aventura da linguagem”, em que pé anda? E o roteiro para Walter Salles?

Millôr – A moça está lá, parada Em Pé, na Esquina. É um projeto sem sentido num país como o Brasil. Últimos Diálogos, o roteiro para Walter Salles, jamais será filmado. Mas é assim mesmo, nesse tipo de trabalho profissional. As condições desaparecem, a coisa não se realiza. Vinte por cento do que fiz para teatro nunca foi (por que foram?, o porcentual é um coletivo como multidão, pessoal, etcetera) levado.

Estado – Chico Buarque e Edu Lobo, como o senhor, dizem que é melhor trabalhar sob encomenda, por força de compromisso. Poderia falar sobre isso?

Millôr – Pergunta prejudicada. Reitero – se não me convidasse para fazer coisas desde que iniciei minha vida profissional eu não faria nada. Ou melhor faria o que fiz espontaneamente até hoje: uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio e a peça Flávia, Cabeça, Tronco e Membros.

Estado – Como o senhor vê o humor da televisão? E a televisão?

Millôr – O humor da televisão destina-se à televisão. Isto é, destina-se ao Ibope. Portanto, seu texto e todo seu objetivo é sempre o mais baixo possível. O que não impede a genial criação de tipos do Chico Anysio, do Jô e do Agildo Ribeiro.

Estado – Um Elefante no Caos ainda é um retrato do Brasil.

Millôr – Não. A peça, levada hoje – é uma fantasia perfeitamente bem realizada, passa-se num apartamento que está pegando fogo – soaria bastante ingênua. Não, esse Brasil morreu. Mas a China também morreu, a Alemanha e creio que até o Paraguai já não é mais o mesmo. (M.D.)


Millôr Fernandes,Rio de Janeiro, RJ, 24/02/1988. Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO

Teatro, cinema, tradução e poesia

Além das páginas de jornais e revistas, a obro de Millôr Fernandes deixou um legado que atravessou gerações, marcado pela versatilidade e inteligência, com suas criações se espalhando por palcos de teatro, na tradução literária e litaratura, no cinema, na ilustração, na poesia e nas estantes de muitos leitores.

Homenagem a Millôr Fernandes no Estadão de 1/4/2012. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Millôr por Sábato Magaldi

 O Estado de S. Paulo - 31/5/1958 Foto: Estadão
Millôr Fernandes, São Paulo, SP, 2/7/1965. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Jornal da Tarde - 22/10/1994

 Foto: Estadão
O Estado de S. Paulo 4/4/1998 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 9/5/2004. Foto: ACERVO/ESTADÃO
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 2/9/2006. Foto: ACERVO/ESTADÃO

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> Veja o jornal do dia que você nasceu

> Capas históricas

Chamada na capa para a estreia da coluna de Millôr no Estadão em 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Millôr Fernandes [1923-2012] já tinha passado por vários veículos de imprensa marcantes do século 20 quando, aos 76 anos, chegou ao Estadão em 1999. Em sua estreia na coluna semanal publicada no caderno Cultura em 20 de junho, Millôr contou um pouco de sua trajetória no jornalismo e da diferença da nova casa no texto intitulado “Olha aqui eu, mamita, onde é quistou:

“Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

E terminou assim seu texto de estreia:

“Eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão, a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas me contemplam.”

Millôr Fernandes, Estadão, 20/6/1999

Millôr Fernandes

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Foto: IARLI GOULART/ESTADÃO
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Foto: RICARDO CHAVES/ESTADÃO
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Foto: CARLOS CHICARINO/ESTADÃO
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Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO
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Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Na capa, o jornal também anunciava a estreia do colaborador com uma brincadeira sob o nome de Millôr desenhado por ele, sua assinatura colorida: “O maior humorista do País no jornal mais sério do País. Nem ele acredita”

O jornal ainda dedicou mais duas páginas para apresentar Millôr aos seus leitores, com uma capa interna ilustrada com uma colagem do artista sob o título “Arte é intriga” e outra com um texto de Mauro Dias e uma entrevista com o artista.

Leia a íntegra dos textos da estreia da coluna, que foi publicada até julho do ano seguinte, e veja outras páginas, textos e fotos de Millôr no Estadão:

Texto de estreia de Millôr Fernandes no Estadão, publicado em 20/6/1999. Foto: Estadão

Não somos daqueles que botam óculos cor de rosa pra não ver a fuligem dostempos, mas também não usamos óculos escuros pra evitar o brilho da aurora que surge em preto e branco. A melhor maneira de viver é continuar vivendo. Provocar inveja nos que já morreram. Ah, e antes que eu me esqueça – a dor ésempre dos outros. Em nós a dos outros pode doer um pouquinho – só nos extremamente sensíveis – mas logo voltamos ao nosso amado umbigo.

Você acha que o filme de Cacá Diegues teve um espectador a menos porque a Otan bombardeou errado a embaixada chinesa? Alguém aí do outro lado da página teve insônia porque morreram trinta e três socovenses? Quem deixou de ir ao bar, ao point, porque a alegre rapaziada da Geórgia fuzilou metade do colégio? Vamos lá, só eu é que vou ao cinema me divertir (?) ignorando as dores do mundo e as cólicas do próximo?

Diz aí, Fernando P. – só eu e você éque levamos porrada, ô pá? Então vamos, vamos aproveitar meu início aqui, neste espaço e neste momento, esquecendo o resto e abrindo champanhe aos quinhentos anos de São Paulo. Não são agora? Mas vamos nos preparando. O tempo passa depressa - já ouviram essa?

Ainda ontem eu estava aqui, festejando os quatrocentos anos da cidade com o Antônio Maria (é, o do “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém mechama de Baudelaire”), e ele, dentro do seu Cadilac conversível, não parava de cantar o seu (e de São Paulo) hino: “São Paulo, quatrocentos anos, quatrocentos desenganos de amor, eu daqui não saio mais, de São Paulo” (isso quando Cae ainda nem pisava distraído na Avenida São João), e depois íamos à Cine Citá, perdão, Vera Cruz, ver a estréia do Cangaceiro, ao lado da Tônia, gracinha, meu Deus do céu!

E logo era tomar umas e outras no melhor bar deSão Paulo, adivinhem onde? Bem no hall deste glorioso jornal. Tempora, tempore, tempra. Mas São Paulo não é mais a mesma. Piorou? O que não piorou nas ruas do mundo? Já vi o Tâmisa afogado em lixo. E o Danúbio não é mais azul (agora,com essas Otans se divertindo por lá, é até um pouco vermelho). Mas as cidades, ao contrário das gentes, e igual às granfinas, rejuvenescem.

Ainda vou voltar à Praça da República de quando as moças andavam de chapéu e passeavam na Cinelândia (ando misturando as coisas, e até acho bom, numa colagem entre o que há de melhor, no tempo e no espaço) vestidas por costureiros. Ainda não se vestiam de trapos imitando os pobres, nem andavam seminuas imitando, o que mesmo? Não vou dizer. Só vou dizer que embolou o meio do campo. E que no motel está a última resistência da moralidade burguesa.

No mais, como diz o general de plantão (perdão, filho de general), está tudo sob controle. Exceto o botão do controle. O governo cheira a bancarrota no sentido próprio da expressão, fede a PF, tresanda a imobiliárias judiciárias (até rima!), o Dr. Nicolau e o Dr. Cacciola mostram que cada governo tem os PCs que nem sequer merece, continuam as viagens tipo êta nóis, hein mãe?, prosseguem as decisões políticas definitivas válidas por 24 horas, e os banquetes pantagruélicos (vulgo licitações) onde se engole o país – e se expele criancinhas nas ruas.

Não há como negar – alguns bilhões a menos na gangorra – perdão, balança – comercial, um massacrezinho de índios aqui, uns dez bilhões pros ruralistas ali, uns vinte pros bancos pré-sistêmicos acolá, a droga comendo solta nesta Medelin com elefantíase, dão toda razão a esse antigo ociólogo neo qualquer coisa – o Brasil é um país injusto. Só não vê quem não quer – mesmo caindo do mais alto galho do poder, nenhum rico se machuca.

Mas vou te dizer, não conta pra ninguém – essas coisas nem apareceriam, ou seriam facilmente absorvidas, se não existisse a maldita imprensa com suas intrigas, suas orquestrações, seus planos diabólicos de desmoralização do poder central, seus baixos interesses morais, seus jornalistas ignorantes, sectários e corruptos. Essa imprensa safada. Que publica tudo o que acontece.

À qual, por falta de ideal mais alto, de profissão mais digna, de cargo mais bem remunerado, eu continuo, agora, neste local e nesta hora, nesta linha e nesta letra.

Porém, prometendo solenemente, a mim mesmo e a vocês todos, não botar a boca no trombone. Não sou músico, e não pretendo ser mais uma arcada dentária sem dentista no livro do tombo das alagoas da vida. Pois bem que gostaria.

Mas já não tenho como mudar de profissão. Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

Portanto eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão (antigo macro do Estado de S. Paulo), a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas mecontemplam.

Capa do caderno Cultura do Estadão de 20/6/1999 apresentando Millôr aos leitores. Foto: Acervo Estadão


Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Mauro Dias

Esse é apenas um dos paradoxos de uma das pessoas a quem o País mais leva a sério e que a partir de hoje passa a colaborar com o Estado

De mudança para Nova York, Paulo Francis começava seu artigo de despedida, no Pasquim: “Eu, Deus...” Alguns anos depois dizia de Millôr Fernandes, companheiro de redação do hebdomadário e amigo da vida toda: “É um centro moral do individualismo intransigente.”

Individualistas ambos, intransigentes ambos – e Millôr, a quem justamente se atribui a qualidade do espírito livre, poderia ter começado um texto com a graça de Francis. Prefere a graça temperada – no sentido bachiano – do escritor sem estilo. “Enfim, um escritor sem estilo” é um de seus motes.

E é apenas um dos paradoxos millorianos, pois sua obra múltipla traz a marca inconfundível do estilo. Um desenho de Millôr Fernandes, seja em bico-de-pena, pincel ou computador (que abandonou), é inconfundível. Um texto de Millôr Fernandes não se parece com nada a não ser com um texto de Millôr Fernandes.

Seu teatro é único, de Flávia: Cabeça, Tronco e Membros às adaptações à realidade e tempo brasileiros de obras alheias. Suas traduções – mais de cem títulos, do tramadurgo inglês Shakespeare ao fabulista guatemalteco Augusto Monterroso – são também inconfundíveis, traduções no sentido mais sólido: o coloquial é coloquial, o metalingüístico (êpa!) é metalingüístico.

Paradoxo, ainda: o escritor que se dedicou à graça é uma das pessoas a quem mais o País leva a sério, há mais de cinco décadas. Não que seja necessário acreditar em tudo o que ele diz – quando afirma, por exemplo, que o bom de guardar coisas antigas é que se pode republicá-las 20 anos depois, sem que ninguém perceba, está fazendo piada – mas, sem dúvida, é preciso pensar em tudo o que ele diz.

E diz muito, desde que começou, aos 13 anos – está com 75 – na revista O Cruzeiro. Cresceu, diz, em “divagações peripatéticas” pelo centro do Rio, amigo de Orestes Barbosa (Chão de Estrelas) e Nássara (Perequitinho Verde, também chargista do Cruzeiro). Passou pelas redações do Jornal do Brasil, O Globo, da Veja, IstoÉ, do Pasquim. Criou sua revista, o Pif-Paf (“Cada número é um exemplar, cada exemplar é um número”), em maio de 1964. Um mês depois do golpe militar.

Em seu último número, o oitavo, o Pif-Paf advertia, na contracapa: “...Se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem com sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.”

Não caímos, senão 20 anos depois. Millôr foi censurado mesmo no governo Juscelino – e, livre pensar é só pensar (outro dístico), votou em Fernando Collor, para não votar no PT. Disse que se fosse prefeito (e não se referia a São Paulo) se suicidaria.

Prefere escrever: fábulas, poemetos, haicais, composições (aliás, composissões) infantis, traduções da observação do cotidiano, teatro, cinema (já atuou, também), musicais. E ensinou-nos, entre tantas outras coisas, que o sexo seria uma coisa esplêndida se Adão, em vez da inspída maçã, tivesse colhido, por exemplo, o tamarindo. Hummm.

Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

O humor é o sal da terra, não é uma coisa abaixo da seriedade’

Há mais de 50 anos ele pratica a graça, algo inerente que, diz, existe na tristeza e na alegria

Mauro Dias

Na entrevista abaixo, Millôr Fernandes reafirma algum ceticismo e confirma a crença de que o humor, mais ou menos como o casamento, é inerente ao ser humano: existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria, e mais: o humorismo não é, diz, coisa abaixo da seriedade, mas a quintessência da seriedade.

Estado – Numa autobiografia, o senhor diz: Millôr Fernandes nasceu no Méier, aos 15 anos...” , acho que aos 15 anos. Foi quando, parece, o senhor descobriu que se chamava Millôr, não Milton. Pode rememorar a história? Milton seria o mesmo intelectual que é Millôr?

Millôr Fernandes – Não aos 15. Aos 9. A descoberta do Millôr foi aos 18 anos. T aberto (como se escreve em cursivo, transformando-se em L) e seu traço virando acento circunflexo sobre o “o”. Mas a referência a isso já foi publicada muitas vezes. Não sei até onde um nome pode influenciar um destino. Mas que Millôr é melhor do que Milton é evidente.

Estado – O senhor fundou e conseguiu manter por oito números uma revista de irreverência e humor, o Pif-Paf, em 1964. Foi o embrião do Pasquim, que durou muitos anos e do qual o senhor esteve também à frente. Por que um durou, outro não?

Millôr – Um não durou porque foi fechado, o outro durou porque ficou aberto. Tudo é absolutamente circunstancial.

Estado – Surge agora uma nova revista de humor, Bundas, criada por dois ex-diretores do Pasquim, Jaguar e Ziraldo. O senhor arriscaria uma previsão de vida? Há lugar para uma publicação humorística, no mercado brasileiro?

Millôr – Neste momento Bundas lançou seu primeiro número e há expectativa de esgotar no primeiro dia de venda. Acredito que o sucesso se deve fundamentalmente a nenhum de nós acreditar em pesquisa de mercado. Isso só serve pra continuar fazendo o que já se faz. Em tempo: o que é “humorístico”?

Estado – A propósito, é mais fácil ou mais difícil fazer graça com o (ou no) Brasil de hoje?

Millôr – A graça é inerente. O meio pode provocar uma forma ou outra, mas ela existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria. É mais ou menos como o casamento.

Estado – Luis Fernando Verissimo diz, em coro com tantos outros, que quando o senhor é chamado de humorista, de certa forma diminui-se sua importância maior, de escritor, teatrólogo, tradutor, desenhista, criador, roteirista, enfim, intelectual. Há um preconceito contra os intelectuais que fazem humor?

Millôr – Acho que cada um tem o direito de achar o que bem entender. Há tempos os congressistas não se ofenderam quando houve comparação entre o edifício do Congresso em Brasília e um circo que acabava de ser montado em frente. Existe alguma profissão mais digna, mais empenhada, mais disciplinada do que a do trabalhador de circo? Você já viu alguém querer empregar um primo no circo porque ele tem jeito pra andar no arame? Já o Congresso. Em suma – o humor é o sal da terra, o humorismo não é uma coisa abaixo da seriedade, é a quintessência da seriedade. Lembre-se sempre que o cristianismo foi criado por um trocadilho de Cristo (está escrito em tamanho gigantesco na Igreja de São Pedro): “Pedro, tu és pedra e sobre ti edificarei a minha Igreja.”

Estado – Um dos que fazem coro com Verissimo é Jaguar, para quem a maior dificuldade, quando se olha sua obra, é saber que ponto dela é melhor. A obra de Jaguar está toda espalhada, talvez irrecuperavelmente. Quem deveria cuidar, e não cuida, desses tesouros?

Millôr – Acho que ninguém deveria cuidar de coisa alguma e que deveríamos todos esquecer tudo e começar tudo de novo a cada dia. Eu não sei onde “eles” guardam tanto papel velho, tanta palavra gravada, tanta fita de testemunhos inúteis. Se tudo desaparecer não fará a menor diferença na economia do cosmo.

Estado – O senhor já lançou várias antologias pessoais e agora está lançando mais uma, em forma de CD-ROM. Existe a intenção de uma integral milloriana? O senhor tem guardados os seus originais, desde O Cruzeiro?

Millôr – Não tenho intenção de fazer nada. Tudo que faço é motivado por forças exteriores. Como, por exemplo, agora, no Estado. O convite – assustador, aliás – me obriga a uma tomada de posição e, de um modo ou de outro, a nova “pensata”. Sempre velha, aliás. Tenho guardado todos os meus originais – os que são feitos com continuidade, como Cruzeiro, Veja, etc. – por sorte. Alguém começou a fazer isso pra mim e outros alguéns continuaram. Tudo encadernado, ano a ano. Mas isso só tem uma vantagem e uma utilidade – pode-se reler e utilizar uma coisa escrita e publicada há 20 ou mais anos.

Estado – Que fim levou Vão Gôgo?

Millôr – Vão Gôgo nasceu em 1944 e morreu em 1956, aos 12 anos de idade e profissão. Como só aí Millôr começou a escrever, pode-se dizer que Millôr é 12 anos mais novo do que o registrado nas certidões.

Estado – Seu “livro desidratado” sobre a moça que viu, por 30 segundos, da janela, “sem idéias, só a aventura da linguagem”, em que pé anda? E o roteiro para Walter Salles?

Millôr – A moça está lá, parada Em Pé, na Esquina. É um projeto sem sentido num país como o Brasil. Últimos Diálogos, o roteiro para Walter Salles, jamais será filmado. Mas é assim mesmo, nesse tipo de trabalho profissional. As condições desaparecem, a coisa não se realiza. Vinte por cento do que fiz para teatro nunca foi (por que foram?, o porcentual é um coletivo como multidão, pessoal, etcetera) levado.

Estado – Chico Buarque e Edu Lobo, como o senhor, dizem que é melhor trabalhar sob encomenda, por força de compromisso. Poderia falar sobre isso?

Millôr – Pergunta prejudicada. Reitero – se não me convidasse para fazer coisas desde que iniciei minha vida profissional eu não faria nada. Ou melhor faria o que fiz espontaneamente até hoje: uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio e a peça Flávia, Cabeça, Tronco e Membros.

Estado – Como o senhor vê o humor da televisão? E a televisão?

Millôr – O humor da televisão destina-se à televisão. Isto é, destina-se ao Ibope. Portanto, seu texto e todo seu objetivo é sempre o mais baixo possível. O que não impede a genial criação de tipos do Chico Anysio, do Jô e do Agildo Ribeiro.

Estado – Um Elefante no Caos ainda é um retrato do Brasil.

Millôr – Não. A peça, levada hoje – é uma fantasia perfeitamente bem realizada, passa-se num apartamento que está pegando fogo – soaria bastante ingênua. Não, esse Brasil morreu. Mas a China também morreu, a Alemanha e creio que até o Paraguai já não é mais o mesmo. (M.D.)


Millôr Fernandes,Rio de Janeiro, RJ, 24/02/1988. Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO

Teatro, cinema, tradução e poesia

Além das páginas de jornais e revistas, a obro de Millôr Fernandes deixou um legado que atravessou gerações, marcado pela versatilidade e inteligência, com suas criações se espalhando por palcos de teatro, na tradução literária e litaratura, no cinema, na ilustração, na poesia e nas estantes de muitos leitores.

Homenagem a Millôr Fernandes no Estadão de 1/4/2012. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Millôr por Sábato Magaldi

 O Estado de S. Paulo - 31/5/1958 Foto: Estadão
Millôr Fernandes, São Paulo, SP, 2/7/1965. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Jornal da Tarde - 22/10/1994

 Foto: Estadão
O Estado de S. Paulo 4/4/1998 Foto: Estadão
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Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 9/5/2004. Foto: ACERVO/ESTADÃO
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 2/9/2006. Foto: ACERVO/ESTADÃO

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Chamada na capa para a estreia da coluna de Millôr no Estadão em 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Millôr Fernandes [1923-2012] já tinha passado por vários veículos de imprensa marcantes do século 20 quando, aos 76 anos, chegou ao Estadão em 1999. Em sua estreia na coluna semanal publicada no caderno Cultura em 20 de junho, Millôr contou um pouco de sua trajetória no jornalismo e da diferença da nova casa no texto intitulado “Olha aqui eu, mamita, onde é quistou:

“Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

E terminou assim seu texto de estreia:

“Eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão, a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas me contemplam.”

Millôr Fernandes, Estadão, 20/6/1999

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Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO
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Foto: IARLI GOULART/ESTADÃO
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Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO
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Foto: RICARDO CHAVES/ESTADÃO
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Foto: ACERVO/ESTADÃO
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Foto: CARLOS CHICARINO/ESTADÃO
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Foto: IARLI GOULART/ESTADÃO
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Foto: RICARDO CHAVES/ESTADÃO
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Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO
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Millôr Fernandes

Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Na capa, o jornal também anunciava a estreia do colaborador com uma brincadeira sob o nome de Millôr desenhado por ele, sua assinatura colorida: “O maior humorista do País no jornal mais sério do País. Nem ele acredita”

O jornal ainda dedicou mais duas páginas para apresentar Millôr aos seus leitores, com uma capa interna ilustrada com uma colagem do artista sob o título “Arte é intriga” e outra com um texto de Mauro Dias e uma entrevista com o artista.

Leia a íntegra dos textos da estreia da coluna, que foi publicada até julho do ano seguinte, e veja outras páginas, textos e fotos de Millôr no Estadão:

Texto de estreia de Millôr Fernandes no Estadão, publicado em 20/6/1999. Foto: Estadão

Não somos daqueles que botam óculos cor de rosa pra não ver a fuligem dostempos, mas também não usamos óculos escuros pra evitar o brilho da aurora que surge em preto e branco. A melhor maneira de viver é continuar vivendo. Provocar inveja nos que já morreram. Ah, e antes que eu me esqueça – a dor ésempre dos outros. Em nós a dos outros pode doer um pouquinho – só nos extremamente sensíveis – mas logo voltamos ao nosso amado umbigo.

Você acha que o filme de Cacá Diegues teve um espectador a menos porque a Otan bombardeou errado a embaixada chinesa? Alguém aí do outro lado da página teve insônia porque morreram trinta e três socovenses? Quem deixou de ir ao bar, ao point, porque a alegre rapaziada da Geórgia fuzilou metade do colégio? Vamos lá, só eu é que vou ao cinema me divertir (?) ignorando as dores do mundo e as cólicas do próximo?

Diz aí, Fernando P. – só eu e você éque levamos porrada, ô pá? Então vamos, vamos aproveitar meu início aqui, neste espaço e neste momento, esquecendo o resto e abrindo champanhe aos quinhentos anos de São Paulo. Não são agora? Mas vamos nos preparando. O tempo passa depressa - já ouviram essa?

Ainda ontem eu estava aqui, festejando os quatrocentos anos da cidade com o Antônio Maria (é, o do “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém mechama de Baudelaire”), e ele, dentro do seu Cadilac conversível, não parava de cantar o seu (e de São Paulo) hino: “São Paulo, quatrocentos anos, quatrocentos desenganos de amor, eu daqui não saio mais, de São Paulo” (isso quando Cae ainda nem pisava distraído na Avenida São João), e depois íamos à Cine Citá, perdão, Vera Cruz, ver a estréia do Cangaceiro, ao lado da Tônia, gracinha, meu Deus do céu!

E logo era tomar umas e outras no melhor bar deSão Paulo, adivinhem onde? Bem no hall deste glorioso jornal. Tempora, tempore, tempra. Mas São Paulo não é mais a mesma. Piorou? O que não piorou nas ruas do mundo? Já vi o Tâmisa afogado em lixo. E o Danúbio não é mais azul (agora,com essas Otans se divertindo por lá, é até um pouco vermelho). Mas as cidades, ao contrário das gentes, e igual às granfinas, rejuvenescem.

Ainda vou voltar à Praça da República de quando as moças andavam de chapéu e passeavam na Cinelândia (ando misturando as coisas, e até acho bom, numa colagem entre o que há de melhor, no tempo e no espaço) vestidas por costureiros. Ainda não se vestiam de trapos imitando os pobres, nem andavam seminuas imitando, o que mesmo? Não vou dizer. Só vou dizer que embolou o meio do campo. E que no motel está a última resistência da moralidade burguesa.

No mais, como diz o general de plantão (perdão, filho de general), está tudo sob controle. Exceto o botão do controle. O governo cheira a bancarrota no sentido próprio da expressão, fede a PF, tresanda a imobiliárias judiciárias (até rima!), o Dr. Nicolau e o Dr. Cacciola mostram que cada governo tem os PCs que nem sequer merece, continuam as viagens tipo êta nóis, hein mãe?, prosseguem as decisões políticas definitivas válidas por 24 horas, e os banquetes pantagruélicos (vulgo licitações) onde se engole o país – e se expele criancinhas nas ruas.

Não há como negar – alguns bilhões a menos na gangorra – perdão, balança – comercial, um massacrezinho de índios aqui, uns dez bilhões pros ruralistas ali, uns vinte pros bancos pré-sistêmicos acolá, a droga comendo solta nesta Medelin com elefantíase, dão toda razão a esse antigo ociólogo neo qualquer coisa – o Brasil é um país injusto. Só não vê quem não quer – mesmo caindo do mais alto galho do poder, nenhum rico se machuca.

Mas vou te dizer, não conta pra ninguém – essas coisas nem apareceriam, ou seriam facilmente absorvidas, se não existisse a maldita imprensa com suas intrigas, suas orquestrações, seus planos diabólicos de desmoralização do poder central, seus baixos interesses morais, seus jornalistas ignorantes, sectários e corruptos. Essa imprensa safada. Que publica tudo o que acontece.

À qual, por falta de ideal mais alto, de profissão mais digna, de cargo mais bem remunerado, eu continuo, agora, neste local e nesta hora, nesta linha e nesta letra.

Porém, prometendo solenemente, a mim mesmo e a vocês todos, não botar a boca no trombone. Não sou músico, e não pretendo ser mais uma arcada dentária sem dentista no livro do tombo das alagoas da vida. Pois bem que gostaria.

Mas já não tenho como mudar de profissão. Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

Portanto eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão (antigo macro do Estado de S. Paulo), a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas mecontemplam.

Capa do caderno Cultura do Estadão de 20/6/1999 apresentando Millôr aos leitores. Foto: Acervo Estadão


Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Mauro Dias

Esse é apenas um dos paradoxos de uma das pessoas a quem o País mais leva a sério e que a partir de hoje passa a colaborar com o Estado

De mudança para Nova York, Paulo Francis começava seu artigo de despedida, no Pasquim: “Eu, Deus...” Alguns anos depois dizia de Millôr Fernandes, companheiro de redação do hebdomadário e amigo da vida toda: “É um centro moral do individualismo intransigente.”

Individualistas ambos, intransigentes ambos – e Millôr, a quem justamente se atribui a qualidade do espírito livre, poderia ter começado um texto com a graça de Francis. Prefere a graça temperada – no sentido bachiano – do escritor sem estilo. “Enfim, um escritor sem estilo” é um de seus motes.

E é apenas um dos paradoxos millorianos, pois sua obra múltipla traz a marca inconfundível do estilo. Um desenho de Millôr Fernandes, seja em bico-de-pena, pincel ou computador (que abandonou), é inconfundível. Um texto de Millôr Fernandes não se parece com nada a não ser com um texto de Millôr Fernandes.

Seu teatro é único, de Flávia: Cabeça, Tronco e Membros às adaptações à realidade e tempo brasileiros de obras alheias. Suas traduções – mais de cem títulos, do tramadurgo inglês Shakespeare ao fabulista guatemalteco Augusto Monterroso – são também inconfundíveis, traduções no sentido mais sólido: o coloquial é coloquial, o metalingüístico (êpa!) é metalingüístico.

Paradoxo, ainda: o escritor que se dedicou à graça é uma das pessoas a quem mais o País leva a sério, há mais de cinco décadas. Não que seja necessário acreditar em tudo o que ele diz – quando afirma, por exemplo, que o bom de guardar coisas antigas é que se pode republicá-las 20 anos depois, sem que ninguém perceba, está fazendo piada – mas, sem dúvida, é preciso pensar em tudo o que ele diz.

E diz muito, desde que começou, aos 13 anos – está com 75 – na revista O Cruzeiro. Cresceu, diz, em “divagações peripatéticas” pelo centro do Rio, amigo de Orestes Barbosa (Chão de Estrelas) e Nássara (Perequitinho Verde, também chargista do Cruzeiro). Passou pelas redações do Jornal do Brasil, O Globo, da Veja, IstoÉ, do Pasquim. Criou sua revista, o Pif-Paf (“Cada número é um exemplar, cada exemplar é um número”), em maio de 1964. Um mês depois do golpe militar.

Em seu último número, o oitavo, o Pif-Paf advertia, na contracapa: “...Se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem com sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.”

Não caímos, senão 20 anos depois. Millôr foi censurado mesmo no governo Juscelino – e, livre pensar é só pensar (outro dístico), votou em Fernando Collor, para não votar no PT. Disse que se fosse prefeito (e não se referia a São Paulo) se suicidaria.

Prefere escrever: fábulas, poemetos, haicais, composições (aliás, composissões) infantis, traduções da observação do cotidiano, teatro, cinema (já atuou, também), musicais. E ensinou-nos, entre tantas outras coisas, que o sexo seria uma coisa esplêndida se Adão, em vez da inspída maçã, tivesse colhido, por exemplo, o tamarindo. Hummm.

Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

O humor é o sal da terra, não é uma coisa abaixo da seriedade’

Há mais de 50 anos ele pratica a graça, algo inerente que, diz, existe na tristeza e na alegria

Mauro Dias

Na entrevista abaixo, Millôr Fernandes reafirma algum ceticismo e confirma a crença de que o humor, mais ou menos como o casamento, é inerente ao ser humano: existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria, e mais: o humorismo não é, diz, coisa abaixo da seriedade, mas a quintessência da seriedade.

Estado – Numa autobiografia, o senhor diz: Millôr Fernandes nasceu no Méier, aos 15 anos...” , acho que aos 15 anos. Foi quando, parece, o senhor descobriu que se chamava Millôr, não Milton. Pode rememorar a história? Milton seria o mesmo intelectual que é Millôr?

Millôr Fernandes – Não aos 15. Aos 9. A descoberta do Millôr foi aos 18 anos. T aberto (como se escreve em cursivo, transformando-se em L) e seu traço virando acento circunflexo sobre o “o”. Mas a referência a isso já foi publicada muitas vezes. Não sei até onde um nome pode influenciar um destino. Mas que Millôr é melhor do que Milton é evidente.

Estado – O senhor fundou e conseguiu manter por oito números uma revista de irreverência e humor, o Pif-Paf, em 1964. Foi o embrião do Pasquim, que durou muitos anos e do qual o senhor esteve também à frente. Por que um durou, outro não?

Millôr – Um não durou porque foi fechado, o outro durou porque ficou aberto. Tudo é absolutamente circunstancial.

Estado – Surge agora uma nova revista de humor, Bundas, criada por dois ex-diretores do Pasquim, Jaguar e Ziraldo. O senhor arriscaria uma previsão de vida? Há lugar para uma publicação humorística, no mercado brasileiro?

Millôr – Neste momento Bundas lançou seu primeiro número e há expectativa de esgotar no primeiro dia de venda. Acredito que o sucesso se deve fundamentalmente a nenhum de nós acreditar em pesquisa de mercado. Isso só serve pra continuar fazendo o que já se faz. Em tempo: o que é “humorístico”?

Estado – A propósito, é mais fácil ou mais difícil fazer graça com o (ou no) Brasil de hoje?

Millôr – A graça é inerente. O meio pode provocar uma forma ou outra, mas ela existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria. É mais ou menos como o casamento.

Estado – Luis Fernando Verissimo diz, em coro com tantos outros, que quando o senhor é chamado de humorista, de certa forma diminui-se sua importância maior, de escritor, teatrólogo, tradutor, desenhista, criador, roteirista, enfim, intelectual. Há um preconceito contra os intelectuais que fazem humor?

Millôr – Acho que cada um tem o direito de achar o que bem entender. Há tempos os congressistas não se ofenderam quando houve comparação entre o edifício do Congresso em Brasília e um circo que acabava de ser montado em frente. Existe alguma profissão mais digna, mais empenhada, mais disciplinada do que a do trabalhador de circo? Você já viu alguém querer empregar um primo no circo porque ele tem jeito pra andar no arame? Já o Congresso. Em suma – o humor é o sal da terra, o humorismo não é uma coisa abaixo da seriedade, é a quintessência da seriedade. Lembre-se sempre que o cristianismo foi criado por um trocadilho de Cristo (está escrito em tamanho gigantesco na Igreja de São Pedro): “Pedro, tu és pedra e sobre ti edificarei a minha Igreja.”

Estado – Um dos que fazem coro com Verissimo é Jaguar, para quem a maior dificuldade, quando se olha sua obra, é saber que ponto dela é melhor. A obra de Jaguar está toda espalhada, talvez irrecuperavelmente. Quem deveria cuidar, e não cuida, desses tesouros?

Millôr – Acho que ninguém deveria cuidar de coisa alguma e que deveríamos todos esquecer tudo e começar tudo de novo a cada dia. Eu não sei onde “eles” guardam tanto papel velho, tanta palavra gravada, tanta fita de testemunhos inúteis. Se tudo desaparecer não fará a menor diferença na economia do cosmo.

Estado – O senhor já lançou várias antologias pessoais e agora está lançando mais uma, em forma de CD-ROM. Existe a intenção de uma integral milloriana? O senhor tem guardados os seus originais, desde O Cruzeiro?

Millôr – Não tenho intenção de fazer nada. Tudo que faço é motivado por forças exteriores. Como, por exemplo, agora, no Estado. O convite – assustador, aliás – me obriga a uma tomada de posição e, de um modo ou de outro, a nova “pensata”. Sempre velha, aliás. Tenho guardado todos os meus originais – os que são feitos com continuidade, como Cruzeiro, Veja, etc. – por sorte. Alguém começou a fazer isso pra mim e outros alguéns continuaram. Tudo encadernado, ano a ano. Mas isso só tem uma vantagem e uma utilidade – pode-se reler e utilizar uma coisa escrita e publicada há 20 ou mais anos.

Estado – Que fim levou Vão Gôgo?

Millôr – Vão Gôgo nasceu em 1944 e morreu em 1956, aos 12 anos de idade e profissão. Como só aí Millôr começou a escrever, pode-se dizer que Millôr é 12 anos mais novo do que o registrado nas certidões.

Estado – Seu “livro desidratado” sobre a moça que viu, por 30 segundos, da janela, “sem idéias, só a aventura da linguagem”, em que pé anda? E o roteiro para Walter Salles?

Millôr – A moça está lá, parada Em Pé, na Esquina. É um projeto sem sentido num país como o Brasil. Últimos Diálogos, o roteiro para Walter Salles, jamais será filmado. Mas é assim mesmo, nesse tipo de trabalho profissional. As condições desaparecem, a coisa não se realiza. Vinte por cento do que fiz para teatro nunca foi (por que foram?, o porcentual é um coletivo como multidão, pessoal, etcetera) levado.

Estado – Chico Buarque e Edu Lobo, como o senhor, dizem que é melhor trabalhar sob encomenda, por força de compromisso. Poderia falar sobre isso?

Millôr – Pergunta prejudicada. Reitero – se não me convidasse para fazer coisas desde que iniciei minha vida profissional eu não faria nada. Ou melhor faria o que fiz espontaneamente até hoje: uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio e a peça Flávia, Cabeça, Tronco e Membros.

Estado – Como o senhor vê o humor da televisão? E a televisão?

Millôr – O humor da televisão destina-se à televisão. Isto é, destina-se ao Ibope. Portanto, seu texto e todo seu objetivo é sempre o mais baixo possível. O que não impede a genial criação de tipos do Chico Anysio, do Jô e do Agildo Ribeiro.

Estado – Um Elefante no Caos ainda é um retrato do Brasil.

Millôr – Não. A peça, levada hoje – é uma fantasia perfeitamente bem realizada, passa-se num apartamento que está pegando fogo – soaria bastante ingênua. Não, esse Brasil morreu. Mas a China também morreu, a Alemanha e creio que até o Paraguai já não é mais o mesmo. (M.D.)


Millôr Fernandes,Rio de Janeiro, RJ, 24/02/1988. Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO

Teatro, cinema, tradução e poesia

Além das páginas de jornais e revistas, a obro de Millôr Fernandes deixou um legado que atravessou gerações, marcado pela versatilidade e inteligência, com suas criações se espalhando por palcos de teatro, na tradução literária e litaratura, no cinema, na ilustração, na poesia e nas estantes de muitos leitores.

Homenagem a Millôr Fernandes no Estadão de 1/4/2012. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Millôr por Sábato Magaldi

 O Estado de S. Paulo - 31/5/1958 Foto: Estadão
Millôr Fernandes, São Paulo, SP, 2/7/1965. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Jornal da Tarde - 22/10/1994

 Foto: Estadão
O Estado de S. Paulo 4/4/1998 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 9/5/2004. Foto: ACERVO/ESTADÃO
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 2/9/2006. Foto: ACERVO/ESTADÃO

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Chamada na capa para a estreia da coluna de Millôr no Estadão em 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Millôr Fernandes [1923-2012] já tinha passado por vários veículos de imprensa marcantes do século 20 quando, aos 76 anos, chegou ao Estadão em 1999. Em sua estreia na coluna semanal publicada no caderno Cultura em 20 de junho, Millôr contou um pouco de sua trajetória no jornalismo e da diferença da nova casa no texto intitulado “Olha aqui eu, mamita, onde é quistou:

“Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

E terminou assim seu texto de estreia:

“Eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão, a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas me contemplam.”

Millôr Fernandes, Estadão, 20/6/1999

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Na capa, o jornal também anunciava a estreia do colaborador com uma brincadeira sob o nome de Millôr desenhado por ele, sua assinatura colorida: “O maior humorista do País no jornal mais sério do País. Nem ele acredita”

O jornal ainda dedicou mais duas páginas para apresentar Millôr aos seus leitores, com uma capa interna ilustrada com uma colagem do artista sob o título “Arte é intriga” e outra com um texto de Mauro Dias e uma entrevista com o artista.

Leia a íntegra dos textos da estreia da coluna, que foi publicada até julho do ano seguinte, e veja outras páginas, textos e fotos de Millôr no Estadão:

Texto de estreia de Millôr Fernandes no Estadão, publicado em 20/6/1999. Foto: Estadão

Não somos daqueles que botam óculos cor de rosa pra não ver a fuligem dostempos, mas também não usamos óculos escuros pra evitar o brilho da aurora que surge em preto e branco. A melhor maneira de viver é continuar vivendo. Provocar inveja nos que já morreram. Ah, e antes que eu me esqueça – a dor ésempre dos outros. Em nós a dos outros pode doer um pouquinho – só nos extremamente sensíveis – mas logo voltamos ao nosso amado umbigo.

Você acha que o filme de Cacá Diegues teve um espectador a menos porque a Otan bombardeou errado a embaixada chinesa? Alguém aí do outro lado da página teve insônia porque morreram trinta e três socovenses? Quem deixou de ir ao bar, ao point, porque a alegre rapaziada da Geórgia fuzilou metade do colégio? Vamos lá, só eu é que vou ao cinema me divertir (?) ignorando as dores do mundo e as cólicas do próximo?

Diz aí, Fernando P. – só eu e você éque levamos porrada, ô pá? Então vamos, vamos aproveitar meu início aqui, neste espaço e neste momento, esquecendo o resto e abrindo champanhe aos quinhentos anos de São Paulo. Não são agora? Mas vamos nos preparando. O tempo passa depressa - já ouviram essa?

Ainda ontem eu estava aqui, festejando os quatrocentos anos da cidade com o Antônio Maria (é, o do “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém mechama de Baudelaire”), e ele, dentro do seu Cadilac conversível, não parava de cantar o seu (e de São Paulo) hino: “São Paulo, quatrocentos anos, quatrocentos desenganos de amor, eu daqui não saio mais, de São Paulo” (isso quando Cae ainda nem pisava distraído na Avenida São João), e depois íamos à Cine Citá, perdão, Vera Cruz, ver a estréia do Cangaceiro, ao lado da Tônia, gracinha, meu Deus do céu!

E logo era tomar umas e outras no melhor bar deSão Paulo, adivinhem onde? Bem no hall deste glorioso jornal. Tempora, tempore, tempra. Mas São Paulo não é mais a mesma. Piorou? O que não piorou nas ruas do mundo? Já vi o Tâmisa afogado em lixo. E o Danúbio não é mais azul (agora,com essas Otans se divertindo por lá, é até um pouco vermelho). Mas as cidades, ao contrário das gentes, e igual às granfinas, rejuvenescem.

Ainda vou voltar à Praça da República de quando as moças andavam de chapéu e passeavam na Cinelândia (ando misturando as coisas, e até acho bom, numa colagem entre o que há de melhor, no tempo e no espaço) vestidas por costureiros. Ainda não se vestiam de trapos imitando os pobres, nem andavam seminuas imitando, o que mesmo? Não vou dizer. Só vou dizer que embolou o meio do campo. E que no motel está a última resistência da moralidade burguesa.

No mais, como diz o general de plantão (perdão, filho de general), está tudo sob controle. Exceto o botão do controle. O governo cheira a bancarrota no sentido próprio da expressão, fede a PF, tresanda a imobiliárias judiciárias (até rima!), o Dr. Nicolau e o Dr. Cacciola mostram que cada governo tem os PCs que nem sequer merece, continuam as viagens tipo êta nóis, hein mãe?, prosseguem as decisões políticas definitivas válidas por 24 horas, e os banquetes pantagruélicos (vulgo licitações) onde se engole o país – e se expele criancinhas nas ruas.

Não há como negar – alguns bilhões a menos na gangorra – perdão, balança – comercial, um massacrezinho de índios aqui, uns dez bilhões pros ruralistas ali, uns vinte pros bancos pré-sistêmicos acolá, a droga comendo solta nesta Medelin com elefantíase, dão toda razão a esse antigo ociólogo neo qualquer coisa – o Brasil é um país injusto. Só não vê quem não quer – mesmo caindo do mais alto galho do poder, nenhum rico se machuca.

Mas vou te dizer, não conta pra ninguém – essas coisas nem apareceriam, ou seriam facilmente absorvidas, se não existisse a maldita imprensa com suas intrigas, suas orquestrações, seus planos diabólicos de desmoralização do poder central, seus baixos interesses morais, seus jornalistas ignorantes, sectários e corruptos. Essa imprensa safada. Que publica tudo o que acontece.

À qual, por falta de ideal mais alto, de profissão mais digna, de cargo mais bem remunerado, eu continuo, agora, neste local e nesta hora, nesta linha e nesta letra.

Porém, prometendo solenemente, a mim mesmo e a vocês todos, não botar a boca no trombone. Não sou músico, e não pretendo ser mais uma arcada dentária sem dentista no livro do tombo das alagoas da vida. Pois bem que gostaria.

Mas já não tenho como mudar de profissão. Venho de muito longe. Com uma curiosidade – sempre trabalhei em imprensas, veículos, jornais, revistas, órgãos, mídias, que estavam começando a vida. O Cruzeiro nascituro, a emergente Veja, a nascente Isto É, o infante Pasquim, e nesta mesma semana adentramos no ato lúdico, irreverente, senão irresponsável, que é a revista Bundas.

Portanto eis-me aqui, ainda um pouco sem jeito, no Estadão (antigo macro do Estado de S. Paulo), a única organização que começou na imprensa antes de mim. Tenho que tomar muito cuidado para não mudar sua linha editorial. E me cuidar pra não cair num ato de temor e reverência. Seja como for, a responsabilidade é enorme. Do alto destas colunas quarenta Mesquitas mecontemplam.

Capa do caderno Cultura do Estadão de 20/6/1999 apresentando Millôr aos leitores. Foto: Acervo Estadão


Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

Mauro Dias

Esse é apenas um dos paradoxos de uma das pessoas a quem o País mais leva a sério e que a partir de hoje passa a colaborar com o Estado

De mudança para Nova York, Paulo Francis começava seu artigo de despedida, no Pasquim: “Eu, Deus...” Alguns anos depois dizia de Millôr Fernandes, companheiro de redação do hebdomadário e amigo da vida toda: “É um centro moral do individualismo intransigente.”

Individualistas ambos, intransigentes ambos – e Millôr, a quem justamente se atribui a qualidade do espírito livre, poderia ter começado um texto com a graça de Francis. Prefere a graça temperada – no sentido bachiano – do escritor sem estilo. “Enfim, um escritor sem estilo” é um de seus motes.

E é apenas um dos paradoxos millorianos, pois sua obra múltipla traz a marca inconfundível do estilo. Um desenho de Millôr Fernandes, seja em bico-de-pena, pincel ou computador (que abandonou), é inconfundível. Um texto de Millôr Fernandes não se parece com nada a não ser com um texto de Millôr Fernandes.

Seu teatro é único, de Flávia: Cabeça, Tronco e Membros às adaptações à realidade e tempo brasileiros de obras alheias. Suas traduções – mais de cem títulos, do tramadurgo inglês Shakespeare ao fabulista guatemalteco Augusto Monterroso – são também inconfundíveis, traduções no sentido mais sólido: o coloquial é coloquial, o metalingüístico (êpa!) é metalingüístico.

Paradoxo, ainda: o escritor que se dedicou à graça é uma das pessoas a quem mais o País leva a sério, há mais de cinco décadas. Não que seja necessário acreditar em tudo o que ele diz – quando afirma, por exemplo, que o bom de guardar coisas antigas é que se pode republicá-las 20 anos depois, sem que ninguém perceba, está fazendo piada – mas, sem dúvida, é preciso pensar em tudo o que ele diz.

E diz muito, desde que começou, aos 13 anos – está com 75 – na revista O Cruzeiro. Cresceu, diz, em “divagações peripatéticas” pelo centro do Rio, amigo de Orestes Barbosa (Chão de Estrelas) e Nássara (Perequitinho Verde, também chargista do Cruzeiro). Passou pelas redações do Jornal do Brasil, O Globo, da Veja, IstoÉ, do Pasquim. Criou sua revista, o Pif-Paf (“Cada número é um exemplar, cada exemplar é um número”), em maio de 1964. Um mês depois do golpe militar.

Em seu último número, o oitavo, o Pif-Paf advertia, na contracapa: “...Se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem com sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.”

Não caímos, senão 20 anos depois. Millôr foi censurado mesmo no governo Juscelino – e, livre pensar é só pensar (outro dístico), votou em Fernando Collor, para não votar no PT. Disse que se fosse prefeito (e não se referia a São Paulo) se suicidaria.

Prefere escrever: fábulas, poemetos, haicais, composições (aliás, composissões) infantis, traduções da observação do cotidiano, teatro, cinema (já atuou, também), musicais. E ensinou-nos, entre tantas outras coisas, que o sexo seria uma coisa esplêndida se Adão, em vez da inspída maçã, tivesse colhido, por exemplo, o tamarindo. Hummm.

Texto sobre Millôr Fernandes no Estadão de 20/6/1999. Foto: Acervo Estadão

O humor é o sal da terra, não é uma coisa abaixo da seriedade’

Há mais de 50 anos ele pratica a graça, algo inerente que, diz, existe na tristeza e na alegria

Mauro Dias

Na entrevista abaixo, Millôr Fernandes reafirma algum ceticismo e confirma a crença de que o humor, mais ou menos como o casamento, é inerente ao ser humano: existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria, e mais: o humorismo não é, diz, coisa abaixo da seriedade, mas a quintessência da seriedade.

Estado – Numa autobiografia, o senhor diz: Millôr Fernandes nasceu no Méier, aos 15 anos...” , acho que aos 15 anos. Foi quando, parece, o senhor descobriu que se chamava Millôr, não Milton. Pode rememorar a história? Milton seria o mesmo intelectual que é Millôr?

Millôr Fernandes – Não aos 15. Aos 9. A descoberta do Millôr foi aos 18 anos. T aberto (como se escreve em cursivo, transformando-se em L) e seu traço virando acento circunflexo sobre o “o”. Mas a referência a isso já foi publicada muitas vezes. Não sei até onde um nome pode influenciar um destino. Mas que Millôr é melhor do que Milton é evidente.

Estado – O senhor fundou e conseguiu manter por oito números uma revista de irreverência e humor, o Pif-Paf, em 1964. Foi o embrião do Pasquim, que durou muitos anos e do qual o senhor esteve também à frente. Por que um durou, outro não?

Millôr – Um não durou porque foi fechado, o outro durou porque ficou aberto. Tudo é absolutamente circunstancial.

Estado – Surge agora uma nova revista de humor, Bundas, criada por dois ex-diretores do Pasquim, Jaguar e Ziraldo. O senhor arriscaria uma previsão de vida? Há lugar para uma publicação humorística, no mercado brasileiro?

Millôr – Neste momento Bundas lançou seu primeiro número e há expectativa de esgotar no primeiro dia de venda. Acredito que o sucesso se deve fundamentalmente a nenhum de nós acreditar em pesquisa de mercado. Isso só serve pra continuar fazendo o que já se faz. Em tempo: o que é “humorístico”?

Estado – A propósito, é mais fácil ou mais difícil fazer graça com o (ou no) Brasil de hoje?

Millôr – A graça é inerente. O meio pode provocar uma forma ou outra, mas ela existe na paz e na guerra, na tristeza e na alegria. É mais ou menos como o casamento.

Estado – Luis Fernando Verissimo diz, em coro com tantos outros, que quando o senhor é chamado de humorista, de certa forma diminui-se sua importância maior, de escritor, teatrólogo, tradutor, desenhista, criador, roteirista, enfim, intelectual. Há um preconceito contra os intelectuais que fazem humor?

Millôr – Acho que cada um tem o direito de achar o que bem entender. Há tempos os congressistas não se ofenderam quando houve comparação entre o edifício do Congresso em Brasília e um circo que acabava de ser montado em frente. Existe alguma profissão mais digna, mais empenhada, mais disciplinada do que a do trabalhador de circo? Você já viu alguém querer empregar um primo no circo porque ele tem jeito pra andar no arame? Já o Congresso. Em suma – o humor é o sal da terra, o humorismo não é uma coisa abaixo da seriedade, é a quintessência da seriedade. Lembre-se sempre que o cristianismo foi criado por um trocadilho de Cristo (está escrito em tamanho gigantesco na Igreja de São Pedro): “Pedro, tu és pedra e sobre ti edificarei a minha Igreja.”

Estado – Um dos que fazem coro com Verissimo é Jaguar, para quem a maior dificuldade, quando se olha sua obra, é saber que ponto dela é melhor. A obra de Jaguar está toda espalhada, talvez irrecuperavelmente. Quem deveria cuidar, e não cuida, desses tesouros?

Millôr – Acho que ninguém deveria cuidar de coisa alguma e que deveríamos todos esquecer tudo e começar tudo de novo a cada dia. Eu não sei onde “eles” guardam tanto papel velho, tanta palavra gravada, tanta fita de testemunhos inúteis. Se tudo desaparecer não fará a menor diferença na economia do cosmo.

Estado – O senhor já lançou várias antologias pessoais e agora está lançando mais uma, em forma de CD-ROM. Existe a intenção de uma integral milloriana? O senhor tem guardados os seus originais, desde O Cruzeiro?

Millôr – Não tenho intenção de fazer nada. Tudo que faço é motivado por forças exteriores. Como, por exemplo, agora, no Estado. O convite – assustador, aliás – me obriga a uma tomada de posição e, de um modo ou de outro, a nova “pensata”. Sempre velha, aliás. Tenho guardado todos os meus originais – os que são feitos com continuidade, como Cruzeiro, Veja, etc. – por sorte. Alguém começou a fazer isso pra mim e outros alguéns continuaram. Tudo encadernado, ano a ano. Mas isso só tem uma vantagem e uma utilidade – pode-se reler e utilizar uma coisa escrita e publicada há 20 ou mais anos.

Estado – Que fim levou Vão Gôgo?

Millôr – Vão Gôgo nasceu em 1944 e morreu em 1956, aos 12 anos de idade e profissão. Como só aí Millôr começou a escrever, pode-se dizer que Millôr é 12 anos mais novo do que o registrado nas certidões.

Estado – Seu “livro desidratado” sobre a moça que viu, por 30 segundos, da janela, “sem idéias, só a aventura da linguagem”, em que pé anda? E o roteiro para Walter Salles?

Millôr – A moça está lá, parada Em Pé, na Esquina. É um projeto sem sentido num país como o Brasil. Últimos Diálogos, o roteiro para Walter Salles, jamais será filmado. Mas é assim mesmo, nesse tipo de trabalho profissional. As condições desaparecem, a coisa não se realiza. Vinte por cento do que fiz para teatro nunca foi (por que foram?, o porcentual é um coletivo como multidão, pessoal, etcetera) levado.

Estado – Chico Buarque e Edu Lobo, como o senhor, dizem que é melhor trabalhar sob encomenda, por força de compromisso. Poderia falar sobre isso?

Millôr – Pergunta prejudicada. Reitero – se não me convidasse para fazer coisas desde que iniciei minha vida profissional eu não faria nada. Ou melhor faria o que fiz espontaneamente até hoje: uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio e a peça Flávia, Cabeça, Tronco e Membros.

Estado – Como o senhor vê o humor da televisão? E a televisão?

Millôr – O humor da televisão destina-se à televisão. Isto é, destina-se ao Ibope. Portanto, seu texto e todo seu objetivo é sempre o mais baixo possível. O que não impede a genial criação de tipos do Chico Anysio, do Jô e do Agildo Ribeiro.

Estado – Um Elefante no Caos ainda é um retrato do Brasil.

Millôr – Não. A peça, levada hoje – é uma fantasia perfeitamente bem realizada, passa-se num apartamento que está pegando fogo – soaria bastante ingênua. Não, esse Brasil morreu. Mas a China também morreu, a Alemanha e creio que até o Paraguai já não é mais o mesmo. (M.D.)


Millôr Fernandes,Rio de Janeiro, RJ, 24/02/1988. Foto: JULIO FERNANDES/ESTADÃO

Teatro, cinema, tradução e poesia

Além das páginas de jornais e revistas, a obro de Millôr Fernandes deixou um legado que atravessou gerações, marcado pela versatilidade e inteligência, com suas criações se espalhando por palcos de teatro, na tradução literária e litaratura, no cinema, na ilustração, na poesia e nas estantes de muitos leitores.

Homenagem a Millôr Fernandes no Estadão de 1/4/2012. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Millôr por Sábato Magaldi

 O Estado de S. Paulo - 31/5/1958 Foto: Estadão
Millôr Fernandes, São Paulo, SP, 2/7/1965. Foto: ACERVO/ESTADÃO

Jornal da Tarde - 22/10/1994

 Foto: Estadão
O Estado de S. Paulo 4/4/1998 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 9/5/2004. Foto: ACERVO/ESTADÃO
Entrevista de Millôr Fernandes ao Estadão de 2/9/2006. Foto: ACERVO/ESTADÃO

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