A atual politização de questões relativas a uma vacinação obrigatória contra o coronavírus e a disseminação de informações falsas sobre efeitos colaterais da imunização encontra paralelo num dos mais notórios episódios de saúde pública da história do Brasil: a Revolta da Vacina de 1904. Naquele início de século 20, a politização do tema foi um dos combustíveis para as violentas manifestações contra a vacinação obrigatória e contra o governo na cidade do Rio Janeiro, então capital do País. O motim, que durou seis dias e cinco noites, levou à decretação de estado de sítio na cidade e só cessou após a revogação da obrigatoriedade da vacina. Trinta mortos, 110 feridos e mais de 1.500 presos e deportados constam nos números oficiais sobre a rebelião.
A revolta, que teve como estopim as discussões sobre a lei que tornou obrigatória a vacinação contra a varíola, carrega uma combinação de fatores que desencadearam num enorme descontentamento popular e tem no seu cerne uma orquestrada campanha de desinformação mobilizada pelos opositores do governo do então presidente da República, Rodrigues Alves, e do médico responsável pela ação de imunização, o então secretário da Saúde Pública, o sanitarista Oswaldo Cruz. Este último, alvo favorito das charges dos opositores.
Na guerra política contra a vacinação, a oposição veiculou uma série de inverdades sobre a vacina. Afirmavam que ela causava diferentes males à saúde, entre eles gangrenas, epilepsia, meningite, tuberculose e sífilis. As falsas histórias trouxeram novamente à circulação uma absurda teoria - nascida nos primórdios da criação da vacina, um processo de imunização baseado na inoculação da benigna varíola bovina desenvolvido pelo médico inglês Edward Jenner, em 1796. Ela dizia que quem tomasse a vacina poderia experimentar o surgimento de características de um bovino, o crescimento de um chifre, casco ou pelagem do animal.
Norteada por interesses políticos, que iam desde de a desestabilização do governo e deposição de Rodrigues Alves à disputa por verbas ligadas ao combate à doença, a oposição desafiava consolidados resultados científicos que comprovavam como a imunização salva vidas e detinha epidemias. Médicos e políticos, que no passado haviam endossado outras campanhas de vacinação, engrossaram as fileiras que investiam contra a vacina. A atuação de dois parlamentares, o senador Barata Ribeiro e o deputado Barbosa Lima, carregam alguns exemplos do jogo político nos bastidores dessa disputa.
O Estadão de 28 de setembro de 1904 publicou aguerrido discurso de Barata Ribeiro no Senado contra a vacinação: “Ao que parece, o governo tem o proposito de alimentar a epidemia desprezando a prophylaxia afim de obrigar o povo a estender o braço à lanceta homicida. Queria que o sr. Rodrigues Alves saísse da mudez de seu palacio e viesse para o meio da população escutar os seus lamentos. Elle coraria tambem vendo tanta desgraça (...)”. A solução proposta pelo senador, médico de formação, era a abertura de mais leis de crédito para construção de hospitais. >> Estadão 28/9/01904
O deputado Barbosa Lima, um major positivista e florianista, que quando governador de Pernambuco fundara um Instituto Vacinogênico no Estado, desta vez também vociferava contra a vacinação. Para para obstruir os trabalhos à época da votação da lei que tornou obrigatória a vacina em 31 de outubro de 1904, o deputado apresentou mais de 30 emendas contrárias ao projeto, entre elas uma que diziaque não seriam vacinadas as pessoas que alegarem “motivo de consciência e também as que não quiserem.”
Com laços estreitos com o senador e tenente-coronel Lauro Sodré, presidente fundador da Liga Contra a Vacina Obrigatória, Barbosa Lima é um representante dos setores militares que insuflaram um levante de cadetes na Escola Militar da Praia Vermelha que tentou derrubar o governo Rodrigues Alves durante a revolta.
Moralismo - No cardápio do discurso contra a vacinação, a questão moral também se faz presente. Enquanto a desinformação científica sobre a vacina era colocada à prova, pessoas vacinadas mostravam os efeitos da proteção da imunização e não apresentavam as doenças e males mentirosamente propagados, os discursos contrários à vacina passaram a enfocar a violação do lar pelos agentes sanitários. Na época, Oswaldo Cruz coordenava uma ação de vacinação queera feita de casa em casa. A oposição passou a dizer que a honra do trabalhador estava em perigo, pois suas esposas e filhas seriam forçadas à desnudar braços, coxas e talvez até as nádegas para os servidores da secretaria de Saúde Pública. Outro viés recorrente na narrativa dos anti-vacinas estava a violação das liberdades individuais.
Em um artigo publicado na capa do jornal de 17 de julho de 1904, o Estadão tratou da situação de penúria em que se encontrava a Saúde no Rio e criticou os políticos que se opunham à vacina usando essa alegação.>> Estadão 17/7/1904
"Acima de tudo os princípios. Que importa que a Peste dizime?que importa que o mal recrudesça devastadoramente se a "escola" contraria aos meios de que dispõe a sciencia para attenuar a sua intensidade? Abram-se covas às dezenas, cavem-se fundas vallas para a miseria, mas salve-se o principio, respeite-se a palavra d'Aquelle que legislou sobre tudo (…) A varíola grassa de modo pavoroso - o hospital de S. Sebastião regorgita, não há mais um leito e os carros da assistencia não param recolhendo nos bairros pobres as victimas da terrivel molestia.
O povo, aterrado, dispõe-se à vacina, corre aos postos medicos para immunisar-se, e justamente quando se vae impondo, pela convicção, a prophylaxia que tem provado tão vantajosamente em todo o mundo, homens de prestigio, como os drs. Barbosa Lima, na Camara, e Barata Ribeiro no Senado, insurgem-se contra a a medida salvadora. "Cada um tem a liberdade de morrer como quizer" parece que este é o aphorismo que serve de divisa aos que combatem a vaccina, aphorismo que tira ao governo o seu caracter principal, que é o de "defensor do povo".
Redução da imunização - A campanha contra vacinação levou o caos às ruas do Rio de Janeiro. Não derrubou Rodrigues Alves, mas foi eficiente em reduzir a cobertura vacinal da população. Entre maio e julho de 1904 o número de pessoas vacinadas mostrava-se numa curva ascendente, com cerca de 8.200 pessoas vacinadas em maio, e 23.021 em julho. Com a discussão sobre a obrigatoriedade da vacina e as disputas políticas derivadas do debate sobre a lei, em agosto o registro caiu para 6.036 vacinados. Em final outubro, dias antes da revolta, o registro era de apenas 1.138.
A recusa popular à vacinação foi amplamente sentida, mesmo antes da aprovação da Lei nº 1261 de 31 de outubro de 1904, que tornava a vacinação obrigatória. As campanhas de imunização já eram usadas com sucesso em países da Europa, mas seu uso no Brasil era pequeno e a população ainda desconfiava de seus efeitos.
O Estadão de 18 de setembro de 1904 relatou que até agentes da Saúde Pública mantinham forte recusa em tomar a vacina: “O sr. dr. Oswaldo Cruz, director da Saúde Pública, ordenou que fossem submetidos a vacinação todos os empregados da Saúde Pública, em número de trezentos. Parte dos empregados assumiu attitude hostil, declarando não se submetter à vaccinação. Á vista disso, o dr. Oswaldo Cruz pediu providências à polícia, que logo compareceu ao local. A maioria dos empregados já se havia retirado, quando chegou a força. Poucos se submetteram à vaccinação.”, contava o jornal.>> Estadão 18/9/1904
Se por um lado eram muitas as mentiras veiculadas sobre a vacina, a insatisfação popular com as condições de vida na capital da República eram reais e legítimas. Tanto o projeto urbanístico de Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro e a campanha sanitarista de Oswaldo Cruz, executados através demedidas autoritárias e através de métodos violentos empregados por seus agentes, marginalizaram e empurram para a periferia da cidade as camadas mais pobres da população. Ambos fatores confluíram para formar a onda de insatisfação que instaurou a desordem nas ruas. Com esse caldeirão social em fogo alto, a cidade só retornaria à normalidade após a queda da lei da vacinação obrigatória.
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