USP. Lembranças do início, por um de seus mestres: Fernand Braudel


Historiador da missão francesa de professores que lecionou no início da Universidade de São Paulo deu entrevista ao repórter Reali Júnior em 1984

Por Reali Junior
Atualização:

Fundada em 25 de janeiro de 1934, a Universidade de São Paulo[USP] contou nos seus primórdios com jovens professores franceses que posteriormente tornariam-se grandes referências mundiais em suas área de atuação. Entre eles, Fernand Braudel [1902-1985], considerado um dos intelectuais mais influentes da historiografia moderna.

Quando a USP comemorava 50 anos de existência, em 1984, Fernand Braudel contou suas experiências naqueles primeiros dias da universidade ao repórter Reali Júnior [1941-2011], numa entrevista publicada no Jornal da Tarde em 28 de janeiro de 1984.

Jornal da Tarde - 28 de janeiro de 1984

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Entrevista dos historiador francês Fernand Braudel no Jornal da Tarde de 18 de janeiro de 1984. Foto: Acervo Estadão

Na época com 81 anos, Braudel disse que, apesar da saudade, não viria ao Brasil para as comemorações do cinquentenário da USP por não suportar a ausência de três amigos mortos, Julio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de S. Paulo e idealizador da universidade, Eurípedes Simões de Paula (seus aluno e seu amigo) e João Cruz Costa, que o ensinou a conhecer o Brasil. “Não vou para o conquentenário da USP porque essas pessoas não estão mais lá. Estou velho e não é possível suportar. Seria uma ferida no meu coração” . Leia a íntegra da entrevista.

FERNAND BRAUDEL E A USP

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Quando em fevereiro de 1935, o prof. Fernand Braudel desembarcava no porto de Santos do luxuoso transatlântico ‘Marsili’ não imaginava que 50 anos depois seria considerado um dos maiores histoadores de seu tempo. Como ele próprio afirma, chegava como um professor comum, junto a outro grande nome da cultura da França, o prof. Levy Strauss, integrando a missao francesa, cujo objetivo era criar a Universidade de São Paulo.

Hoje, esse professor do College de France que está completando 81 anos se recorda com saudades desses tempos, mas se recusa a voltar ao Brasil para as comemorações do cinquentenário da USP, pois não poderia suportar a ausência de três amigos desapareidos, citando Julio de Mesquita Filho, Eurípides Simões de Paula (seu aluno e seu amigo) e João Cruz Costa, que o ensinou a conhecer o Brasil.

“Não vou para o cinquentenário da USP porque essas pessoas não estão mais lá. Estou velho e não seria possível suportar. Seria uma ferida no meu coração.’

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Fernand Braudel, autor da importante obra Civilização Material, Econômica e Capitalismo, uma visão prospectiva do ano 2000 e retrospectiva do primeiro milênio, ao todo três volumes e 1.800 páginas, fala de sua experiência brasileira ao Jornal da Tarde. Revela que que Julio de Mesquita Filho sempre insistiu para que ele publicasse o livro que escreveu sobre a História do Brasil. Mas sempre recusou a idéia por não ter podido aprofundar mais seus estudos.

Seu livro poderia ser publicado na França, mas falar da História do Brasil para os brasileiros seria uma responsabilidade muito maior. O Brasil foi o país que o transformou intelectualmente. Quando voltou à França, seu pai espiritual, Lucien Febvre, disse que sua transformação foi muito maior com o Brasil do que com o Mediterrâneo, tese que escreveu em grande parte em São Paulo. Suas recordações estão nas respostas abaixo.

Por que decidiu ir ao Brasil e como foi sua chegada em São Paulo?

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Na vida, a gente decide de uma só vez. Um outro professor da Sorbonne havia aceito o convite para ensinar História da Civilização, mas morreu um pouco antes. Georges Dumas, que organizava a missão francesa, procurava desesperadamente alguém para substituÍ-lo. Apresentei-me e, como único candidato, fui aceito. A idéia de ir ao Brasil me seduzia, pois parte da minha vida passei correndo o mundo. Havia regressado da África do Norte, onde passei dez anos. Queria voltar para o estrangeiro novamente e a idéia de partir para o Brasil seduziu também minha mulher. Ela foi um pouco mais tarde, pois minha filha nasceu pouco antes da partida.

Minha chegada ocorreu em fevereiro de 1935. Tudo isso está tão longe na minha memória e, ao mesmo tempo, tão preciso. Cheguei atrasado em relação a meus colegas. O governo francês, desejoso de completar a missão francesa, enviou-me no transatlântico ‘Marsilia’, um navio tão luxuoso que, mesmo antes de chegar ao Brasil, pude estabelecer contatos com todos os homens que dominavam, no Exterior, a vida econômica do Brasil. Eram representantes de consórcios norte-americanos, de companhias de seguro francesas, etc. Para um jovem professor de História, que conhece muita coisa nos livros, foi uma instrução prévia extraordinária.

E a surpresa da chegada?

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Jamais havia visto algo de comparável ao que pude ver em Santos, a ferrovia de cremalheira que subia a serra de Santos até a Estação da Luz. Na época, não havia ainda as rodovias que ligam hoje as duas cidades. De nada adiantava saber, pelos livros, o que era um país semitropical. Chegar a São Paulo foi maravilhoso. Não se tratava da cidade que vocês conhecem, isto é, magnifica e absurda. Só havia um arranha-céu, o Martinelli. Quando estávamos perdidos nos subúrbios bastava olhar o Martinelli e já sabíamos a direção que deveríamos tomar. O Hotel Esplanada, onde nos hospedamos no início, estava ali do lado. Na época, o Esplanada era o luxo do luxo.

E como foram os primeiros passos na universidade?

Acho que foi lá que me tornei inteligente. Esse não é bem o termo, talvez algo menos comum. Tenho a impressão de que um dia ou outro temos de nos separar do que já vivemos, do que sabemos, do que compreendemos, partindo para uma experiência de vida diferente. Com os alunos que tive, fui, na verdade, obrigado a recomeçar minha juventude. Foi muito difícil explicar aos estudantes brasileiros o que podia ser a História da Europa. Não que eles não dessem importância à Europa, mas eles não a conheciam.

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Antes de fixar o curso do Reno ou do Danúbio, de saber o que foram os séculos III e XIV, havia um esforço suplementar a ser feito, o que não acontecia em Paris, onde já lecionava na Sorbonne. Dessa forma, fui obrigado a recomeçar minha vida intelectual, ensinando aos estudantes toda História da Civilização, o mundo antigo, Idade Média, o mundo moderno, o que não edixava de ser uma extravagância.

Na verdade, foram os alunos que se encontravam diante de mim que me obrigaram a repensar e reexplicar. Chegava para dar aulas sem nenhuma anotação. Eu os ouvia e ia espondendo. Apesar de suas deficiências em matéria de conhecimentos, eram muito ineressados e inteligentes. Havia um grande prazer em compreender, toda uma avidez intelectual, algo exemplar.

O que encontrou correspondia à sua expectativa ou houve surpresa?

Eu não conhecia os estudantes da mesma forma que eles não me conheciam. Não tinha idéia do que ia encontrar e tampouco sabia que tudo isso, anos depois, ia-me favorecer. É preciso dizer que naquela época, tanto Levy Strauss como eu éramos professores comuns.

E como se passava com a língua?

Ensinávamos em francês. As vezes, quando as coisas não iam bem, falava espanhol, mas no final já falava português. É verdade que no Brasil não se fala o português de Portugal. Havia um professor francês que falava um excelente português de Portugal, mas quando chegou ao Brasil pouco pôde utilizá-lo, pois não havia aula em que os estudantes não estourassem de rir com seu sotaque. Com o meu francês difícil tinha mais alunos que os outros e alguns estudantes diziam: “Prefiro o Braudel. Ele tem um francês melhor”.

Como foram recrutados os primeiros alunos?

Inicialmente eram filhos da sociedade paulista. No começo, era uma universidade praticamente sem alunos. Isso no primeiro ano, mas já no segundo tudo mudou. O governo paulista foi buscá-los no ensino médio concedendo bolsas. Dessa forma chegaram os primeiros 200 ou 300 alunos. Entre eles, o que eu mais gostava era o Eurípedes Simões de Paula.

Havia também filhos de fazendeiros, gente da sociedade paulista, mas a massa era recrutada dessa forma. Lembro-me de um homem prodigioso que escreveu O Retrato do Brasil, Paulo Prado. Ele tinha uma coleção de pinturas fantásticas. Havia também esse tipo de intelectual, formado sozinho ou na Europa. A política estava sempre presente. Quando terminavam as aulas, políticos, representantes do governador, lá chegavam e procuravam discutir com o Júlio Mesquita Filho quem estava lá.

Se de um lado os estudantes não gostavam muito que esse pessoal freqüentasse as aulas, do outro os políticos e certos intelectuais da sociedade não escondiam uma certa preocupação de ver que estávamos formando intelectuais novos, recrutados num nível relativamente modesto. Acredito que tenham sido esses alunos que contribuíram realmente para criar à universidade.

No terceiro ano, a universidade real acabou sobrepondo-se à universidade mundana. Outro tipo de gente, que eram os que compareciam apenas para distrair-se, como se fossem a cursos públicos. mas o trabalho universitário acabou impondo-se.

Mas esses alunos que não tinham formação suficiente ou o mesmo controle dos europeus acostumados a concursos eram muito inteligentes. Tinha a oportunidade de discutir com eles e dizer o que pensava. Quando passava deveres, eles vinham à minha casa, e os ensinava uma segunda vez. Se fizesse isso, na época, na França, certamente seria vaiado. Ensinar alguém a fazer um dever era uma coisa banal na Europa, mas em São Paulo tive que fazer um pouco esse papel.

Do ponto de vista do ensino foram anos maravilhosos. Permaneci durante três anos. 35, 36 e 37. Em 36 fui nomeado para a Sorbonne, mas consegui ficar mais um ano no Brasil. Só voltei em 37 e em 39 fui mobilizado para a guerra e enviado à “Linha Maginot”.

E quando voltou ao Brasil?

Só em 1949, mas a São Paulo de minha juventude já não mais existia. A universidade tinha-se tornado muito diferente. Já era uma universidade brasileira, constituída por meus antigos alunos com muitos defeitos e qualidades. O grande defeito, a meu ver, era a tentativa de marginalizar e eliminar as mulheres do corpo docente. Havia uma espécie de franco-maçonaria entre os homens que eliminavam as mulheres do corpo de professores

Guardo as mais lúcidas idéias da época. Os médicos que conheci em 1935 me pareciam remarcáveis. Lembro-me do dr. Almeida Prado. Mas o que havia de mais impressionante para um europeu era o comportamento sentimental. A força da amizade era uma característica. A França é um país onde a amizade não é coisa corrente. A amizade, na vida comum do brasileiro, desempenha um papel colossal.

Conheci um filósofo admirável, João Cruz Costa, um humanista de um requinte extraordinário. Lembro-me de sua biblioteca e de sua cadeira de balanço. Foi nessa biblioteca que ele me ensinou a ver o Brasil. Ele estava sempre pronto a nos dizer o que tínhamos que ler sobre o Brasil e como nos devíamos comportar.

Tenho medo de que o Brasil não tenha sabido conservar o segredo dessas amizades. E isso, numa época em que a sociedade era terrivelmente instável. Hoje você era rico, amanhã pobre e depois obrigado a refazer sua fortuna. Aliás, hoje dizem que é a mesma coisa.

O Brasil era um banho de juventude para quem vinha da Europa. Os brasileiros, na ocasião, pretendiam que conheciam a guerra. Alguns guardavam o capacete da guerra entre São Paulo e o Rio (Revolução de 32), com a indicação: “Soldado da liberdade”. Mas essa guerra, para um europeu, depois de 14, não parecia ser muito séria.

Outra recordação eram as numerosas famílias da sociedade paulista. Toda segunda-feira nos reuníamos no cinema Odeon, que na época era o máximo. Hoje, deve ser apenas poeira. Lembro-me de uma família que, sozinha, ocupava duas fileiras. Um colega meu, enamorado, tentava ser mais astuto para colocar-se ao lado da namorada, mas a tia, a prima, a irmã, também se precipitavam e ele acabava sempre ao lado da futura sogra ou da avó.

E como eram suas relações com os demais professores franceses, Levy Strauss, Mogue, etc?

Jean Mogue foi o que mais gostou do Brasil. Ele publicou um livro cuja tradução não sei se é recomendável. Os outros eram casados. As mulheres brasileiras o atraiam muito, mas tinha um dom excepcional para perdê-las. As relações entre os professores eram corretas. Com alguns nos dávamos melhor, mas não formamos nenhum feudo. Houve brigas, pois os franceses nunca estão num lugar sem arrumar umas briguinhas.

Por que, ao contrário de seus colegas, nada escreveu sobre o Brasil?

Tenho um livro sobre História do Brasil que nunca publiquei. Era muito difícil fazer um livro de História. Os arquivos de Lisboa não estavam em ordem. Eu precisaria de muito tempo. Quando cheguei a São Paulo estava escrevendo minha tese sobre o Mediterrâneo. Julio de Mesquita Filho insistiu muito para que eu o publicasse, mas não quis. Falar do Brasil para os franceses era uma coisa, mas para os brasileiros a responsabilidade era muito maior.

E por que não aceitou o convite para voltar a São Paulo, agora, no cinqüentenário da Universidade?

Estou chegando aos 81 anos, não sou o mais velho, mas um dos mais velhos professores franceses. Ví morrerem Júlio Mesquita Filho, Eurípedes Simões de Paula e Cruz Costa. E se não vou para os 50 anos da USP é porque essas pessoas não estão mais lá. Não é possível. Isso seria uma ferida no meu coração.

A influência francesa na Universidade de São Paulo é cada vez menor. De quem é a culpa? Da França ou do Brasil?

Do Brasil, mas é também um mérito. O Brasil nem é tão aberto aos anglo-saxões nem aos alemães nem aos franceses. Ele está fabricando sua própria cultura. Lembre-se de que dessa universidade, que contou com uma missão francesa no início, saiu um cientista como César Lattes, um prodígio, como só existe uma dezena no mundo.

Na época, acreditava que estava contribuindo para formar uma elite ou um projeto popular?

Nunca tive a sensação de ensinar um mundo de elite. Formamos um mundo universitário que não é de elite. O Brasil seria muito melhor governado por professores do que por militares, mas o professor não tem a menor chance porque não tem poder político. Não creio que tenha formado elite. Ela já estava lá, constituída pelos novos ricos, a chamada elite econômica, na ocasião, simbolizada pelos Matarazzo.

Jorge Semprum, baseando-se no exemplo espanhol, afirmou que a modernização de alguns países foi feita por regimes autoritários. Acredita que essa é um pouco a História do Brasil?

Sim e não. Nos arquivos do Quai D’Or-say existem magníficas correspondências sobre o Brasil. Vi um pouco esses arquivos. Meu sentimento em relação ao Brasil é o seguinte, pelo menos até a época que conheci esse pais. O atual pode ser o Brasil real, mas não é o que conheço bem. Conheci o marechal Castelo Branco em 1949, quando estive na escola da Praia Vermelha para uma conferência. Ele se encontrava na platéia, com sua cara de esquilo, muito interessado.

Mais tarde, sempre que precisei ajudar alguém, quando Castelo já era presidente. enviava um telegrama: “Em nome de nossa amizade, por favor não prenda fulano”. E recebia sempre a resposta: “Pedido satisfeito”. Escute, não existe país no mundo onde isso ocorra. Posteriormente, após sua morte, tentei fazer a mesmo com seu sucessor. Confesso que não funcionou. Se o Brasil tivesse permanecido como o que conheci, acredito que o tipo de ditadura que ocorreu não teria acontecido.

Na época, os professores franceses constituiam uma atração e eram sempre homenageados?

Nós éramos a maior distração da alta sociedade. Falavam-nos muito da França e de suas recordações de passagens por Paris. Mas isso nunca impediu que eu mantivesse contatos diretos com meus estudantes. Não me recordo do nome desse escritor de história econômica que tinha um salão extraordinário. Eu sempre adorei dançar. Eu tinha que passar todos os dias diante da casa de sua noiva, que abria as janelas.

Mas o senhor era casado?

Sim, mas era também um bom observador. As mulheres brasileiras me pareciam muito bonitas. Mesmo minhas estudantes. Mas a sociedade que conheci na época era fechada. Não pense que havia muitos canais com todas as camadas.

Gonineau dizia que o Brasil era um país sem povo. Concorda com isso?

Não. Não havia um Brasil, mas vários. Talvez eles hoje estejam mais próximos uns dos outros. O Brasil de São Paulo estava sendo feito. Havia japoneses, portugueses, italianos, pessoas de cor. Mas o mundo de São Paulo era muito distante, perdido. Tentei ver os outros lados do Brasil, visitando o Nordeste, que era uma outra coisa.

É verdade que algumas idéias da Escola dos Anais nasceram durante sua permanência no Brasil?

Claro. O Brasil me transformou intelectualmente. Voltei diferente. Lucien Febvre, que era meu pai espiritual, dizia que eu me transformei muito mais com o Brasil do que com o Mediterrâneo. Para mím foi muito mais importante ir ao Brasil do que para vocês virem à França.

Essa transformação ocorreu também com outros colegas seus que lá estavam na mesma época?

Com Levy Strauss creio que sim. No meu caso ela ocorreu porque me formei muito mais tarde do que os outros. Cheguei com 33 anos, mas eu ainda não era Braudel. Tive a vantagem ou desvantagem de ter ido muito cedo para a África, onde aprendi muito, mas não conhecia a língua. Enquanto no Brasil já não havia a barreira da língua. Nunca consegui aprender árabe no Norte da África. Estive também na Alemanha, falava alemão, mas era um soldado francês e não pude conhecer bem o país. Além disso, Alemanha e França não significavam tantos contrastes como o Brasil e a França. O Brasil era um pais em fermentação. Não havia nação, mas sobretudo não havia Estado brasileiro.

Sua tese “Mediterràneo” foi escrita em parte no Brasil?

Foi. Grande parte dela. Eu tinha toda a documentação. Os estudantes trabalhavam pouco e os professores, também. Havia muitas distrações e feriados no Brasil. E como é possível a vida sem distrações? Um dia era a festa da descoberta da América, depois festas de São João, etc. E não tinha aula. Havia dias que a faculdade estava fechada e isso não era minha culpa. Dessa forma, tinha muito tempo para ir escrevendo a tese escondidinho...

E do ponto de vista de remuneração, sua passagem foi também positiva?

Ah, arrumei direitinho minha vida.

Levy Strauss conta que chegou ao Brasil com uma visão exótica das coisas, esperando até encontrar índios nas ruas. Essa era também sua expectativa?

Não. Eu levei uma grande vantagem sobre eles. Tinha lido um volume sobre geografia do Brasil do “Denis”. Em relação a hoje. São Paulo era uma pequena cidade de interior. Mas eu esperava uma coisa banal, pois como vocês sabem os franceses são muito vaidosos. Mas acabei sendo agradavelmente surpreso. Morava numa casa da rua Padre João Manuel; hoje, no local, construíram um prédio. A dona alugou a casa com tudo: carro, motorista e cozinheira.

O senhor costumava freqüentar clubes em São Paulo?

Não. Esse era o lado do Mogue. Um dia, eu, Mogue e Levy Strauss fomos fazer um passeio a cavalo. Dei uma arrancada e os cavalos montados pelos dois seguiram. Foi um desastre. Levy Strauss suava até a gravata. mas agüentou firme com suas botas compradas no Rio Grande do Sul. A partir daí, os dois decidiram que não mais iriam com elas quando fossem montar na Hípica.

Não acha um erro a busca de certas universidades, de tentar achar nos exemplos europeus soluções para seus problemas de países em desenvolvimento?

Acho isso horrível. A transferência, outrora, da revolução industrial inglesa para a Europa, no século XVIII, levou tempo para ser feita, mesmo sendo para um país análogo. Mas se pretender a passagem de soluções japonesas, alemãs ou russas para o Brasil é uma catástrofe. Não há transferência possível. Isso porque a economia não existe em si, mas em relação à massa dos indivíduos e das realidades que estão em suas malhas. Esse é um erro dos economistas e das ciências sociais que, na França e no mundo, esquecem que existem aqui experiências anteriores.

Do ponto de vista histórico, está vendo fim da crise?

A crise atual não será solucionada em pouco tempo. Nem mesmo nos Estados Unidos. Acredito numa crise longa, e nosso problema atual é adaptar-se a ela. Como conviver com ela? Adaptar-se à italiana, ao mercado negro, à economia submersa que é livre das amarras do Estado. Sou presidente de um comitê internacional da cidade do Prato, ao lado de Florença. Essa é uma cidade que não conhece a crise. As pessoas trabalham 13 horas por dia. Ninguém paga impostos. Na verdade, as pessoas se viram. Prato fabrica tecidos, adotando um sistema que emprega pessoas quando se tem um encomenda. É um sistema do século XIII mas que funciona. E tudo isso fora do Estado. Na Itália, um terço da renda nacional vem dessa economia submersa. E, na França, já atingimos vinte por cento.

Quando chegou ao Brasil sentiu os efeitos ideológicos da revolução russa?

Não. A revolução russa não estava presente às aulas. Os brasileiros tinham como referência a revolução francesa. Eles esperavam por uma revolução desse tipo. Acho que estão es erando até agora.

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Fundada em 25 de janeiro de 1934, a Universidade de São Paulo[USP] contou nos seus primórdios com jovens professores franceses que posteriormente tornariam-se grandes referências mundiais em suas área de atuação. Entre eles, Fernand Braudel [1902-1985], considerado um dos intelectuais mais influentes da historiografia moderna.

Quando a USP comemorava 50 anos de existência, em 1984, Fernand Braudel contou suas experiências naqueles primeiros dias da universidade ao repórter Reali Júnior [1941-2011], numa entrevista publicada no Jornal da Tarde em 28 de janeiro de 1984.

Jornal da Tarde - 28 de janeiro de 1984

Entrevista dos historiador francês Fernand Braudel no Jornal da Tarde de 18 de janeiro de 1984. Foto: Acervo Estadão

Na época com 81 anos, Braudel disse que, apesar da saudade, não viria ao Brasil para as comemorações do cinquentenário da USP por não suportar a ausência de três amigos mortos, Julio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de S. Paulo e idealizador da universidade, Eurípedes Simões de Paula (seus aluno e seu amigo) e João Cruz Costa, que o ensinou a conhecer o Brasil. “Não vou para o conquentenário da USP porque essas pessoas não estão mais lá. Estou velho e não é possível suportar. Seria uma ferida no meu coração” . Leia a íntegra da entrevista.

FERNAND BRAUDEL E A USP

Quando em fevereiro de 1935, o prof. Fernand Braudel desembarcava no porto de Santos do luxuoso transatlântico ‘Marsili’ não imaginava que 50 anos depois seria considerado um dos maiores histoadores de seu tempo. Como ele próprio afirma, chegava como um professor comum, junto a outro grande nome da cultura da França, o prof. Levy Strauss, integrando a missao francesa, cujo objetivo era criar a Universidade de São Paulo.

Hoje, esse professor do College de France que está completando 81 anos se recorda com saudades desses tempos, mas se recusa a voltar ao Brasil para as comemorações do cinquentenário da USP, pois não poderia suportar a ausência de três amigos desapareidos, citando Julio de Mesquita Filho, Eurípides Simões de Paula (seu aluno e seu amigo) e João Cruz Costa, que o ensinou a conhecer o Brasil.

“Não vou para o cinquentenário da USP porque essas pessoas não estão mais lá. Estou velho e não seria possível suportar. Seria uma ferida no meu coração.’

Fernand Braudel, autor da importante obra Civilização Material, Econômica e Capitalismo, uma visão prospectiva do ano 2000 e retrospectiva do primeiro milênio, ao todo três volumes e 1.800 páginas, fala de sua experiência brasileira ao Jornal da Tarde. Revela que que Julio de Mesquita Filho sempre insistiu para que ele publicasse o livro que escreveu sobre a História do Brasil. Mas sempre recusou a idéia por não ter podido aprofundar mais seus estudos.

Seu livro poderia ser publicado na França, mas falar da História do Brasil para os brasileiros seria uma responsabilidade muito maior. O Brasil foi o país que o transformou intelectualmente. Quando voltou à França, seu pai espiritual, Lucien Febvre, disse que sua transformação foi muito maior com o Brasil do que com o Mediterrâneo, tese que escreveu em grande parte em São Paulo. Suas recordações estão nas respostas abaixo.

Por que decidiu ir ao Brasil e como foi sua chegada em São Paulo?

Na vida, a gente decide de uma só vez. Um outro professor da Sorbonne havia aceito o convite para ensinar História da Civilização, mas morreu um pouco antes. Georges Dumas, que organizava a missão francesa, procurava desesperadamente alguém para substituÍ-lo. Apresentei-me e, como único candidato, fui aceito. A idéia de ir ao Brasil me seduzia, pois parte da minha vida passei correndo o mundo. Havia regressado da África do Norte, onde passei dez anos. Queria voltar para o estrangeiro novamente e a idéia de partir para o Brasil seduziu também minha mulher. Ela foi um pouco mais tarde, pois minha filha nasceu pouco antes da partida.

Minha chegada ocorreu em fevereiro de 1935. Tudo isso está tão longe na minha memória e, ao mesmo tempo, tão preciso. Cheguei atrasado em relação a meus colegas. O governo francês, desejoso de completar a missão francesa, enviou-me no transatlântico ‘Marsilia’, um navio tão luxuoso que, mesmo antes de chegar ao Brasil, pude estabelecer contatos com todos os homens que dominavam, no Exterior, a vida econômica do Brasil. Eram representantes de consórcios norte-americanos, de companhias de seguro francesas, etc. Para um jovem professor de História, que conhece muita coisa nos livros, foi uma instrução prévia extraordinária.

E a surpresa da chegada?

Jamais havia visto algo de comparável ao que pude ver em Santos, a ferrovia de cremalheira que subia a serra de Santos até a Estação da Luz. Na época, não havia ainda as rodovias que ligam hoje as duas cidades. De nada adiantava saber, pelos livros, o que era um país semitropical. Chegar a São Paulo foi maravilhoso. Não se tratava da cidade que vocês conhecem, isto é, magnifica e absurda. Só havia um arranha-céu, o Martinelli. Quando estávamos perdidos nos subúrbios bastava olhar o Martinelli e já sabíamos a direção que deveríamos tomar. O Hotel Esplanada, onde nos hospedamos no início, estava ali do lado. Na época, o Esplanada era o luxo do luxo.

E como foram os primeiros passos na universidade?

Acho que foi lá que me tornei inteligente. Esse não é bem o termo, talvez algo menos comum. Tenho a impressão de que um dia ou outro temos de nos separar do que já vivemos, do que sabemos, do que compreendemos, partindo para uma experiência de vida diferente. Com os alunos que tive, fui, na verdade, obrigado a recomeçar minha juventude. Foi muito difícil explicar aos estudantes brasileiros o que podia ser a História da Europa. Não que eles não dessem importância à Europa, mas eles não a conheciam.

Antes de fixar o curso do Reno ou do Danúbio, de saber o que foram os séculos III e XIV, havia um esforço suplementar a ser feito, o que não acontecia em Paris, onde já lecionava na Sorbonne. Dessa forma, fui obrigado a recomeçar minha vida intelectual, ensinando aos estudantes toda História da Civilização, o mundo antigo, Idade Média, o mundo moderno, o que não edixava de ser uma extravagância.

Na verdade, foram os alunos que se encontravam diante de mim que me obrigaram a repensar e reexplicar. Chegava para dar aulas sem nenhuma anotação. Eu os ouvia e ia espondendo. Apesar de suas deficiências em matéria de conhecimentos, eram muito ineressados e inteligentes. Havia um grande prazer em compreender, toda uma avidez intelectual, algo exemplar.

O que encontrou correspondia à sua expectativa ou houve surpresa?

Eu não conhecia os estudantes da mesma forma que eles não me conheciam. Não tinha idéia do que ia encontrar e tampouco sabia que tudo isso, anos depois, ia-me favorecer. É preciso dizer que naquela época, tanto Levy Strauss como eu éramos professores comuns.

E como se passava com a língua?

Ensinávamos em francês. As vezes, quando as coisas não iam bem, falava espanhol, mas no final já falava português. É verdade que no Brasil não se fala o português de Portugal. Havia um professor francês que falava um excelente português de Portugal, mas quando chegou ao Brasil pouco pôde utilizá-lo, pois não havia aula em que os estudantes não estourassem de rir com seu sotaque. Com o meu francês difícil tinha mais alunos que os outros e alguns estudantes diziam: “Prefiro o Braudel. Ele tem um francês melhor”.

Como foram recrutados os primeiros alunos?

Inicialmente eram filhos da sociedade paulista. No começo, era uma universidade praticamente sem alunos. Isso no primeiro ano, mas já no segundo tudo mudou. O governo paulista foi buscá-los no ensino médio concedendo bolsas. Dessa forma chegaram os primeiros 200 ou 300 alunos. Entre eles, o que eu mais gostava era o Eurípedes Simões de Paula.

Havia também filhos de fazendeiros, gente da sociedade paulista, mas a massa era recrutada dessa forma. Lembro-me de um homem prodigioso que escreveu O Retrato do Brasil, Paulo Prado. Ele tinha uma coleção de pinturas fantásticas. Havia também esse tipo de intelectual, formado sozinho ou na Europa. A política estava sempre presente. Quando terminavam as aulas, políticos, representantes do governador, lá chegavam e procuravam discutir com o Júlio Mesquita Filho quem estava lá.

Se de um lado os estudantes não gostavam muito que esse pessoal freqüentasse as aulas, do outro os políticos e certos intelectuais da sociedade não escondiam uma certa preocupação de ver que estávamos formando intelectuais novos, recrutados num nível relativamente modesto. Acredito que tenham sido esses alunos que contribuíram realmente para criar à universidade.

No terceiro ano, a universidade real acabou sobrepondo-se à universidade mundana. Outro tipo de gente, que eram os que compareciam apenas para distrair-se, como se fossem a cursos públicos. mas o trabalho universitário acabou impondo-se.

Mas esses alunos que não tinham formação suficiente ou o mesmo controle dos europeus acostumados a concursos eram muito inteligentes. Tinha a oportunidade de discutir com eles e dizer o que pensava. Quando passava deveres, eles vinham à minha casa, e os ensinava uma segunda vez. Se fizesse isso, na época, na França, certamente seria vaiado. Ensinar alguém a fazer um dever era uma coisa banal na Europa, mas em São Paulo tive que fazer um pouco esse papel.

Do ponto de vista do ensino foram anos maravilhosos. Permaneci durante três anos. 35, 36 e 37. Em 36 fui nomeado para a Sorbonne, mas consegui ficar mais um ano no Brasil. Só voltei em 37 e em 39 fui mobilizado para a guerra e enviado à “Linha Maginot”.

E quando voltou ao Brasil?

Só em 1949, mas a São Paulo de minha juventude já não mais existia. A universidade tinha-se tornado muito diferente. Já era uma universidade brasileira, constituída por meus antigos alunos com muitos defeitos e qualidades. O grande defeito, a meu ver, era a tentativa de marginalizar e eliminar as mulheres do corpo docente. Havia uma espécie de franco-maçonaria entre os homens que eliminavam as mulheres do corpo de professores

Guardo as mais lúcidas idéias da época. Os médicos que conheci em 1935 me pareciam remarcáveis. Lembro-me do dr. Almeida Prado. Mas o que havia de mais impressionante para um europeu era o comportamento sentimental. A força da amizade era uma característica. A França é um país onde a amizade não é coisa corrente. A amizade, na vida comum do brasileiro, desempenha um papel colossal.

Conheci um filósofo admirável, João Cruz Costa, um humanista de um requinte extraordinário. Lembro-me de sua biblioteca e de sua cadeira de balanço. Foi nessa biblioteca que ele me ensinou a ver o Brasil. Ele estava sempre pronto a nos dizer o que tínhamos que ler sobre o Brasil e como nos devíamos comportar.

Tenho medo de que o Brasil não tenha sabido conservar o segredo dessas amizades. E isso, numa época em que a sociedade era terrivelmente instável. Hoje você era rico, amanhã pobre e depois obrigado a refazer sua fortuna. Aliás, hoje dizem que é a mesma coisa.

O Brasil era um banho de juventude para quem vinha da Europa. Os brasileiros, na ocasião, pretendiam que conheciam a guerra. Alguns guardavam o capacete da guerra entre São Paulo e o Rio (Revolução de 32), com a indicação: “Soldado da liberdade”. Mas essa guerra, para um europeu, depois de 14, não parecia ser muito séria.

Outra recordação eram as numerosas famílias da sociedade paulista. Toda segunda-feira nos reuníamos no cinema Odeon, que na época era o máximo. Hoje, deve ser apenas poeira. Lembro-me de uma família que, sozinha, ocupava duas fileiras. Um colega meu, enamorado, tentava ser mais astuto para colocar-se ao lado da namorada, mas a tia, a prima, a irmã, também se precipitavam e ele acabava sempre ao lado da futura sogra ou da avó.

E como eram suas relações com os demais professores franceses, Levy Strauss, Mogue, etc?

Jean Mogue foi o que mais gostou do Brasil. Ele publicou um livro cuja tradução não sei se é recomendável. Os outros eram casados. As mulheres brasileiras o atraiam muito, mas tinha um dom excepcional para perdê-las. As relações entre os professores eram corretas. Com alguns nos dávamos melhor, mas não formamos nenhum feudo. Houve brigas, pois os franceses nunca estão num lugar sem arrumar umas briguinhas.

Por que, ao contrário de seus colegas, nada escreveu sobre o Brasil?

Tenho um livro sobre História do Brasil que nunca publiquei. Era muito difícil fazer um livro de História. Os arquivos de Lisboa não estavam em ordem. Eu precisaria de muito tempo. Quando cheguei a São Paulo estava escrevendo minha tese sobre o Mediterrâneo. Julio de Mesquita Filho insistiu muito para que eu o publicasse, mas não quis. Falar do Brasil para os franceses era uma coisa, mas para os brasileiros a responsabilidade era muito maior.

E por que não aceitou o convite para voltar a São Paulo, agora, no cinqüentenário da Universidade?

Estou chegando aos 81 anos, não sou o mais velho, mas um dos mais velhos professores franceses. Ví morrerem Júlio Mesquita Filho, Eurípedes Simões de Paula e Cruz Costa. E se não vou para os 50 anos da USP é porque essas pessoas não estão mais lá. Não é possível. Isso seria uma ferida no meu coração.

A influência francesa na Universidade de São Paulo é cada vez menor. De quem é a culpa? Da França ou do Brasil?

Do Brasil, mas é também um mérito. O Brasil nem é tão aberto aos anglo-saxões nem aos alemães nem aos franceses. Ele está fabricando sua própria cultura. Lembre-se de que dessa universidade, que contou com uma missão francesa no início, saiu um cientista como César Lattes, um prodígio, como só existe uma dezena no mundo.

Na época, acreditava que estava contribuindo para formar uma elite ou um projeto popular?

Nunca tive a sensação de ensinar um mundo de elite. Formamos um mundo universitário que não é de elite. O Brasil seria muito melhor governado por professores do que por militares, mas o professor não tem a menor chance porque não tem poder político. Não creio que tenha formado elite. Ela já estava lá, constituída pelos novos ricos, a chamada elite econômica, na ocasião, simbolizada pelos Matarazzo.

Jorge Semprum, baseando-se no exemplo espanhol, afirmou que a modernização de alguns países foi feita por regimes autoritários. Acredita que essa é um pouco a História do Brasil?

Sim e não. Nos arquivos do Quai D’Or-say existem magníficas correspondências sobre o Brasil. Vi um pouco esses arquivos. Meu sentimento em relação ao Brasil é o seguinte, pelo menos até a época que conheci esse pais. O atual pode ser o Brasil real, mas não é o que conheço bem. Conheci o marechal Castelo Branco em 1949, quando estive na escola da Praia Vermelha para uma conferência. Ele se encontrava na platéia, com sua cara de esquilo, muito interessado.

Mais tarde, sempre que precisei ajudar alguém, quando Castelo já era presidente. enviava um telegrama: “Em nome de nossa amizade, por favor não prenda fulano”. E recebia sempre a resposta: “Pedido satisfeito”. Escute, não existe país no mundo onde isso ocorra. Posteriormente, após sua morte, tentei fazer a mesmo com seu sucessor. Confesso que não funcionou. Se o Brasil tivesse permanecido como o que conheci, acredito que o tipo de ditadura que ocorreu não teria acontecido.

Na época, os professores franceses constituiam uma atração e eram sempre homenageados?

Nós éramos a maior distração da alta sociedade. Falavam-nos muito da França e de suas recordações de passagens por Paris. Mas isso nunca impediu que eu mantivesse contatos diretos com meus estudantes. Não me recordo do nome desse escritor de história econômica que tinha um salão extraordinário. Eu sempre adorei dançar. Eu tinha que passar todos os dias diante da casa de sua noiva, que abria as janelas.

Mas o senhor era casado?

Sim, mas era também um bom observador. As mulheres brasileiras me pareciam muito bonitas. Mesmo minhas estudantes. Mas a sociedade que conheci na época era fechada. Não pense que havia muitos canais com todas as camadas.

Gonineau dizia que o Brasil era um país sem povo. Concorda com isso?

Não. Não havia um Brasil, mas vários. Talvez eles hoje estejam mais próximos uns dos outros. O Brasil de São Paulo estava sendo feito. Havia japoneses, portugueses, italianos, pessoas de cor. Mas o mundo de São Paulo era muito distante, perdido. Tentei ver os outros lados do Brasil, visitando o Nordeste, que era uma outra coisa.

É verdade que algumas idéias da Escola dos Anais nasceram durante sua permanência no Brasil?

Claro. O Brasil me transformou intelectualmente. Voltei diferente. Lucien Febvre, que era meu pai espiritual, dizia que eu me transformei muito mais com o Brasil do que com o Mediterrâneo. Para mím foi muito mais importante ir ao Brasil do que para vocês virem à França.

Essa transformação ocorreu também com outros colegas seus que lá estavam na mesma época?

Com Levy Strauss creio que sim. No meu caso ela ocorreu porque me formei muito mais tarde do que os outros. Cheguei com 33 anos, mas eu ainda não era Braudel. Tive a vantagem ou desvantagem de ter ido muito cedo para a África, onde aprendi muito, mas não conhecia a língua. Enquanto no Brasil já não havia a barreira da língua. Nunca consegui aprender árabe no Norte da África. Estive também na Alemanha, falava alemão, mas era um soldado francês e não pude conhecer bem o país. Além disso, Alemanha e França não significavam tantos contrastes como o Brasil e a França. O Brasil era um pais em fermentação. Não havia nação, mas sobretudo não havia Estado brasileiro.

Sua tese “Mediterràneo” foi escrita em parte no Brasil?

Foi. Grande parte dela. Eu tinha toda a documentação. Os estudantes trabalhavam pouco e os professores, também. Havia muitas distrações e feriados no Brasil. E como é possível a vida sem distrações? Um dia era a festa da descoberta da América, depois festas de São João, etc. E não tinha aula. Havia dias que a faculdade estava fechada e isso não era minha culpa. Dessa forma, tinha muito tempo para ir escrevendo a tese escondidinho...

E do ponto de vista de remuneração, sua passagem foi também positiva?

Ah, arrumei direitinho minha vida.

Levy Strauss conta que chegou ao Brasil com uma visão exótica das coisas, esperando até encontrar índios nas ruas. Essa era também sua expectativa?

Não. Eu levei uma grande vantagem sobre eles. Tinha lido um volume sobre geografia do Brasil do “Denis”. Em relação a hoje. São Paulo era uma pequena cidade de interior. Mas eu esperava uma coisa banal, pois como vocês sabem os franceses são muito vaidosos. Mas acabei sendo agradavelmente surpreso. Morava numa casa da rua Padre João Manuel; hoje, no local, construíram um prédio. A dona alugou a casa com tudo: carro, motorista e cozinheira.

O senhor costumava freqüentar clubes em São Paulo?

Não. Esse era o lado do Mogue. Um dia, eu, Mogue e Levy Strauss fomos fazer um passeio a cavalo. Dei uma arrancada e os cavalos montados pelos dois seguiram. Foi um desastre. Levy Strauss suava até a gravata. mas agüentou firme com suas botas compradas no Rio Grande do Sul. A partir daí, os dois decidiram que não mais iriam com elas quando fossem montar na Hípica.

Não acha um erro a busca de certas universidades, de tentar achar nos exemplos europeus soluções para seus problemas de países em desenvolvimento?

Acho isso horrível. A transferência, outrora, da revolução industrial inglesa para a Europa, no século XVIII, levou tempo para ser feita, mesmo sendo para um país análogo. Mas se pretender a passagem de soluções japonesas, alemãs ou russas para o Brasil é uma catástrofe. Não há transferência possível. Isso porque a economia não existe em si, mas em relação à massa dos indivíduos e das realidades que estão em suas malhas. Esse é um erro dos economistas e das ciências sociais que, na França e no mundo, esquecem que existem aqui experiências anteriores.

Do ponto de vista histórico, está vendo fim da crise?

A crise atual não será solucionada em pouco tempo. Nem mesmo nos Estados Unidos. Acredito numa crise longa, e nosso problema atual é adaptar-se a ela. Como conviver com ela? Adaptar-se à italiana, ao mercado negro, à economia submersa que é livre das amarras do Estado. Sou presidente de um comitê internacional da cidade do Prato, ao lado de Florença. Essa é uma cidade que não conhece a crise. As pessoas trabalham 13 horas por dia. Ninguém paga impostos. Na verdade, as pessoas se viram. Prato fabrica tecidos, adotando um sistema que emprega pessoas quando se tem um encomenda. É um sistema do século XIII mas que funciona. E tudo isso fora do Estado. Na Itália, um terço da renda nacional vem dessa economia submersa. E, na França, já atingimos vinte por cento.

Quando chegou ao Brasil sentiu os efeitos ideológicos da revolução russa?

Não. A revolução russa não estava presente às aulas. Os brasileiros tinham como referência a revolução francesa. Eles esperavam por uma revolução desse tipo. Acho que estão es erando até agora.

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Fundada em 25 de janeiro de 1934, a Universidade de São Paulo[USP] contou nos seus primórdios com jovens professores franceses que posteriormente tornariam-se grandes referências mundiais em suas área de atuação. Entre eles, Fernand Braudel [1902-1985], considerado um dos intelectuais mais influentes da historiografia moderna.

Quando a USP comemorava 50 anos de existência, em 1984, Fernand Braudel contou suas experiências naqueles primeiros dias da universidade ao repórter Reali Júnior [1941-2011], numa entrevista publicada no Jornal da Tarde em 28 de janeiro de 1984.

Jornal da Tarde - 28 de janeiro de 1984

Entrevista dos historiador francês Fernand Braudel no Jornal da Tarde de 18 de janeiro de 1984. Foto: Acervo Estadão

Na época com 81 anos, Braudel disse que, apesar da saudade, não viria ao Brasil para as comemorações do cinquentenário da USP por não suportar a ausência de três amigos mortos, Julio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de S. Paulo e idealizador da universidade, Eurípedes Simões de Paula (seus aluno e seu amigo) e João Cruz Costa, que o ensinou a conhecer o Brasil. “Não vou para o conquentenário da USP porque essas pessoas não estão mais lá. Estou velho e não é possível suportar. Seria uma ferida no meu coração” . Leia a íntegra da entrevista.

FERNAND BRAUDEL E A USP

Quando em fevereiro de 1935, o prof. Fernand Braudel desembarcava no porto de Santos do luxuoso transatlântico ‘Marsili’ não imaginava que 50 anos depois seria considerado um dos maiores histoadores de seu tempo. Como ele próprio afirma, chegava como um professor comum, junto a outro grande nome da cultura da França, o prof. Levy Strauss, integrando a missao francesa, cujo objetivo era criar a Universidade de São Paulo.

Hoje, esse professor do College de France que está completando 81 anos se recorda com saudades desses tempos, mas se recusa a voltar ao Brasil para as comemorações do cinquentenário da USP, pois não poderia suportar a ausência de três amigos desapareidos, citando Julio de Mesquita Filho, Eurípides Simões de Paula (seu aluno e seu amigo) e João Cruz Costa, que o ensinou a conhecer o Brasil.

“Não vou para o cinquentenário da USP porque essas pessoas não estão mais lá. Estou velho e não seria possível suportar. Seria uma ferida no meu coração.’

Fernand Braudel, autor da importante obra Civilização Material, Econômica e Capitalismo, uma visão prospectiva do ano 2000 e retrospectiva do primeiro milênio, ao todo três volumes e 1.800 páginas, fala de sua experiência brasileira ao Jornal da Tarde. Revela que que Julio de Mesquita Filho sempre insistiu para que ele publicasse o livro que escreveu sobre a História do Brasil. Mas sempre recusou a idéia por não ter podido aprofundar mais seus estudos.

Seu livro poderia ser publicado na França, mas falar da História do Brasil para os brasileiros seria uma responsabilidade muito maior. O Brasil foi o país que o transformou intelectualmente. Quando voltou à França, seu pai espiritual, Lucien Febvre, disse que sua transformação foi muito maior com o Brasil do que com o Mediterrâneo, tese que escreveu em grande parte em São Paulo. Suas recordações estão nas respostas abaixo.

Por que decidiu ir ao Brasil e como foi sua chegada em São Paulo?

Na vida, a gente decide de uma só vez. Um outro professor da Sorbonne havia aceito o convite para ensinar História da Civilização, mas morreu um pouco antes. Georges Dumas, que organizava a missão francesa, procurava desesperadamente alguém para substituÍ-lo. Apresentei-me e, como único candidato, fui aceito. A idéia de ir ao Brasil me seduzia, pois parte da minha vida passei correndo o mundo. Havia regressado da África do Norte, onde passei dez anos. Queria voltar para o estrangeiro novamente e a idéia de partir para o Brasil seduziu também minha mulher. Ela foi um pouco mais tarde, pois minha filha nasceu pouco antes da partida.

Minha chegada ocorreu em fevereiro de 1935. Tudo isso está tão longe na minha memória e, ao mesmo tempo, tão preciso. Cheguei atrasado em relação a meus colegas. O governo francês, desejoso de completar a missão francesa, enviou-me no transatlântico ‘Marsilia’, um navio tão luxuoso que, mesmo antes de chegar ao Brasil, pude estabelecer contatos com todos os homens que dominavam, no Exterior, a vida econômica do Brasil. Eram representantes de consórcios norte-americanos, de companhias de seguro francesas, etc. Para um jovem professor de História, que conhece muita coisa nos livros, foi uma instrução prévia extraordinária.

E a surpresa da chegada?

Jamais havia visto algo de comparável ao que pude ver em Santos, a ferrovia de cremalheira que subia a serra de Santos até a Estação da Luz. Na época, não havia ainda as rodovias que ligam hoje as duas cidades. De nada adiantava saber, pelos livros, o que era um país semitropical. Chegar a São Paulo foi maravilhoso. Não se tratava da cidade que vocês conhecem, isto é, magnifica e absurda. Só havia um arranha-céu, o Martinelli. Quando estávamos perdidos nos subúrbios bastava olhar o Martinelli e já sabíamos a direção que deveríamos tomar. O Hotel Esplanada, onde nos hospedamos no início, estava ali do lado. Na época, o Esplanada era o luxo do luxo.

E como foram os primeiros passos na universidade?

Acho que foi lá que me tornei inteligente. Esse não é bem o termo, talvez algo menos comum. Tenho a impressão de que um dia ou outro temos de nos separar do que já vivemos, do que sabemos, do que compreendemos, partindo para uma experiência de vida diferente. Com os alunos que tive, fui, na verdade, obrigado a recomeçar minha juventude. Foi muito difícil explicar aos estudantes brasileiros o que podia ser a História da Europa. Não que eles não dessem importância à Europa, mas eles não a conheciam.

Antes de fixar o curso do Reno ou do Danúbio, de saber o que foram os séculos III e XIV, havia um esforço suplementar a ser feito, o que não acontecia em Paris, onde já lecionava na Sorbonne. Dessa forma, fui obrigado a recomeçar minha vida intelectual, ensinando aos estudantes toda História da Civilização, o mundo antigo, Idade Média, o mundo moderno, o que não edixava de ser uma extravagância.

Na verdade, foram os alunos que se encontravam diante de mim que me obrigaram a repensar e reexplicar. Chegava para dar aulas sem nenhuma anotação. Eu os ouvia e ia espondendo. Apesar de suas deficiências em matéria de conhecimentos, eram muito ineressados e inteligentes. Havia um grande prazer em compreender, toda uma avidez intelectual, algo exemplar.

O que encontrou correspondia à sua expectativa ou houve surpresa?

Eu não conhecia os estudantes da mesma forma que eles não me conheciam. Não tinha idéia do que ia encontrar e tampouco sabia que tudo isso, anos depois, ia-me favorecer. É preciso dizer que naquela época, tanto Levy Strauss como eu éramos professores comuns.

E como se passava com a língua?

Ensinávamos em francês. As vezes, quando as coisas não iam bem, falava espanhol, mas no final já falava português. É verdade que no Brasil não se fala o português de Portugal. Havia um professor francês que falava um excelente português de Portugal, mas quando chegou ao Brasil pouco pôde utilizá-lo, pois não havia aula em que os estudantes não estourassem de rir com seu sotaque. Com o meu francês difícil tinha mais alunos que os outros e alguns estudantes diziam: “Prefiro o Braudel. Ele tem um francês melhor”.

Como foram recrutados os primeiros alunos?

Inicialmente eram filhos da sociedade paulista. No começo, era uma universidade praticamente sem alunos. Isso no primeiro ano, mas já no segundo tudo mudou. O governo paulista foi buscá-los no ensino médio concedendo bolsas. Dessa forma chegaram os primeiros 200 ou 300 alunos. Entre eles, o que eu mais gostava era o Eurípedes Simões de Paula.

Havia também filhos de fazendeiros, gente da sociedade paulista, mas a massa era recrutada dessa forma. Lembro-me de um homem prodigioso que escreveu O Retrato do Brasil, Paulo Prado. Ele tinha uma coleção de pinturas fantásticas. Havia também esse tipo de intelectual, formado sozinho ou na Europa. A política estava sempre presente. Quando terminavam as aulas, políticos, representantes do governador, lá chegavam e procuravam discutir com o Júlio Mesquita Filho quem estava lá.

Se de um lado os estudantes não gostavam muito que esse pessoal freqüentasse as aulas, do outro os políticos e certos intelectuais da sociedade não escondiam uma certa preocupação de ver que estávamos formando intelectuais novos, recrutados num nível relativamente modesto. Acredito que tenham sido esses alunos que contribuíram realmente para criar à universidade.

No terceiro ano, a universidade real acabou sobrepondo-se à universidade mundana. Outro tipo de gente, que eram os que compareciam apenas para distrair-se, como se fossem a cursos públicos. mas o trabalho universitário acabou impondo-se.

Mas esses alunos que não tinham formação suficiente ou o mesmo controle dos europeus acostumados a concursos eram muito inteligentes. Tinha a oportunidade de discutir com eles e dizer o que pensava. Quando passava deveres, eles vinham à minha casa, e os ensinava uma segunda vez. Se fizesse isso, na época, na França, certamente seria vaiado. Ensinar alguém a fazer um dever era uma coisa banal na Europa, mas em São Paulo tive que fazer um pouco esse papel.

Do ponto de vista do ensino foram anos maravilhosos. Permaneci durante três anos. 35, 36 e 37. Em 36 fui nomeado para a Sorbonne, mas consegui ficar mais um ano no Brasil. Só voltei em 37 e em 39 fui mobilizado para a guerra e enviado à “Linha Maginot”.

E quando voltou ao Brasil?

Só em 1949, mas a São Paulo de minha juventude já não mais existia. A universidade tinha-se tornado muito diferente. Já era uma universidade brasileira, constituída por meus antigos alunos com muitos defeitos e qualidades. O grande defeito, a meu ver, era a tentativa de marginalizar e eliminar as mulheres do corpo docente. Havia uma espécie de franco-maçonaria entre os homens que eliminavam as mulheres do corpo de professores

Guardo as mais lúcidas idéias da época. Os médicos que conheci em 1935 me pareciam remarcáveis. Lembro-me do dr. Almeida Prado. Mas o que havia de mais impressionante para um europeu era o comportamento sentimental. A força da amizade era uma característica. A França é um país onde a amizade não é coisa corrente. A amizade, na vida comum do brasileiro, desempenha um papel colossal.

Conheci um filósofo admirável, João Cruz Costa, um humanista de um requinte extraordinário. Lembro-me de sua biblioteca e de sua cadeira de balanço. Foi nessa biblioteca que ele me ensinou a ver o Brasil. Ele estava sempre pronto a nos dizer o que tínhamos que ler sobre o Brasil e como nos devíamos comportar.

Tenho medo de que o Brasil não tenha sabido conservar o segredo dessas amizades. E isso, numa época em que a sociedade era terrivelmente instável. Hoje você era rico, amanhã pobre e depois obrigado a refazer sua fortuna. Aliás, hoje dizem que é a mesma coisa.

O Brasil era um banho de juventude para quem vinha da Europa. Os brasileiros, na ocasião, pretendiam que conheciam a guerra. Alguns guardavam o capacete da guerra entre São Paulo e o Rio (Revolução de 32), com a indicação: “Soldado da liberdade”. Mas essa guerra, para um europeu, depois de 14, não parecia ser muito séria.

Outra recordação eram as numerosas famílias da sociedade paulista. Toda segunda-feira nos reuníamos no cinema Odeon, que na época era o máximo. Hoje, deve ser apenas poeira. Lembro-me de uma família que, sozinha, ocupava duas fileiras. Um colega meu, enamorado, tentava ser mais astuto para colocar-se ao lado da namorada, mas a tia, a prima, a irmã, também se precipitavam e ele acabava sempre ao lado da futura sogra ou da avó.

E como eram suas relações com os demais professores franceses, Levy Strauss, Mogue, etc?

Jean Mogue foi o que mais gostou do Brasil. Ele publicou um livro cuja tradução não sei se é recomendável. Os outros eram casados. As mulheres brasileiras o atraiam muito, mas tinha um dom excepcional para perdê-las. As relações entre os professores eram corretas. Com alguns nos dávamos melhor, mas não formamos nenhum feudo. Houve brigas, pois os franceses nunca estão num lugar sem arrumar umas briguinhas.

Por que, ao contrário de seus colegas, nada escreveu sobre o Brasil?

Tenho um livro sobre História do Brasil que nunca publiquei. Era muito difícil fazer um livro de História. Os arquivos de Lisboa não estavam em ordem. Eu precisaria de muito tempo. Quando cheguei a São Paulo estava escrevendo minha tese sobre o Mediterrâneo. Julio de Mesquita Filho insistiu muito para que eu o publicasse, mas não quis. Falar do Brasil para os franceses era uma coisa, mas para os brasileiros a responsabilidade era muito maior.

E por que não aceitou o convite para voltar a São Paulo, agora, no cinqüentenário da Universidade?

Estou chegando aos 81 anos, não sou o mais velho, mas um dos mais velhos professores franceses. Ví morrerem Júlio Mesquita Filho, Eurípedes Simões de Paula e Cruz Costa. E se não vou para os 50 anos da USP é porque essas pessoas não estão mais lá. Não é possível. Isso seria uma ferida no meu coração.

A influência francesa na Universidade de São Paulo é cada vez menor. De quem é a culpa? Da França ou do Brasil?

Do Brasil, mas é também um mérito. O Brasil nem é tão aberto aos anglo-saxões nem aos alemães nem aos franceses. Ele está fabricando sua própria cultura. Lembre-se de que dessa universidade, que contou com uma missão francesa no início, saiu um cientista como César Lattes, um prodígio, como só existe uma dezena no mundo.

Na época, acreditava que estava contribuindo para formar uma elite ou um projeto popular?

Nunca tive a sensação de ensinar um mundo de elite. Formamos um mundo universitário que não é de elite. O Brasil seria muito melhor governado por professores do que por militares, mas o professor não tem a menor chance porque não tem poder político. Não creio que tenha formado elite. Ela já estava lá, constituída pelos novos ricos, a chamada elite econômica, na ocasião, simbolizada pelos Matarazzo.

Jorge Semprum, baseando-se no exemplo espanhol, afirmou que a modernização de alguns países foi feita por regimes autoritários. Acredita que essa é um pouco a História do Brasil?

Sim e não. Nos arquivos do Quai D’Or-say existem magníficas correspondências sobre o Brasil. Vi um pouco esses arquivos. Meu sentimento em relação ao Brasil é o seguinte, pelo menos até a época que conheci esse pais. O atual pode ser o Brasil real, mas não é o que conheço bem. Conheci o marechal Castelo Branco em 1949, quando estive na escola da Praia Vermelha para uma conferência. Ele se encontrava na platéia, com sua cara de esquilo, muito interessado.

Mais tarde, sempre que precisei ajudar alguém, quando Castelo já era presidente. enviava um telegrama: “Em nome de nossa amizade, por favor não prenda fulano”. E recebia sempre a resposta: “Pedido satisfeito”. Escute, não existe país no mundo onde isso ocorra. Posteriormente, após sua morte, tentei fazer a mesmo com seu sucessor. Confesso que não funcionou. Se o Brasil tivesse permanecido como o que conheci, acredito que o tipo de ditadura que ocorreu não teria acontecido.

Na época, os professores franceses constituiam uma atração e eram sempre homenageados?

Nós éramos a maior distração da alta sociedade. Falavam-nos muito da França e de suas recordações de passagens por Paris. Mas isso nunca impediu que eu mantivesse contatos diretos com meus estudantes. Não me recordo do nome desse escritor de história econômica que tinha um salão extraordinário. Eu sempre adorei dançar. Eu tinha que passar todos os dias diante da casa de sua noiva, que abria as janelas.

Mas o senhor era casado?

Sim, mas era também um bom observador. As mulheres brasileiras me pareciam muito bonitas. Mesmo minhas estudantes. Mas a sociedade que conheci na época era fechada. Não pense que havia muitos canais com todas as camadas.

Gonineau dizia que o Brasil era um país sem povo. Concorda com isso?

Não. Não havia um Brasil, mas vários. Talvez eles hoje estejam mais próximos uns dos outros. O Brasil de São Paulo estava sendo feito. Havia japoneses, portugueses, italianos, pessoas de cor. Mas o mundo de São Paulo era muito distante, perdido. Tentei ver os outros lados do Brasil, visitando o Nordeste, que era uma outra coisa.

É verdade que algumas idéias da Escola dos Anais nasceram durante sua permanência no Brasil?

Claro. O Brasil me transformou intelectualmente. Voltei diferente. Lucien Febvre, que era meu pai espiritual, dizia que eu me transformei muito mais com o Brasil do que com o Mediterrâneo. Para mím foi muito mais importante ir ao Brasil do que para vocês virem à França.

Essa transformação ocorreu também com outros colegas seus que lá estavam na mesma época?

Com Levy Strauss creio que sim. No meu caso ela ocorreu porque me formei muito mais tarde do que os outros. Cheguei com 33 anos, mas eu ainda não era Braudel. Tive a vantagem ou desvantagem de ter ido muito cedo para a África, onde aprendi muito, mas não conhecia a língua. Enquanto no Brasil já não havia a barreira da língua. Nunca consegui aprender árabe no Norte da África. Estive também na Alemanha, falava alemão, mas era um soldado francês e não pude conhecer bem o país. Além disso, Alemanha e França não significavam tantos contrastes como o Brasil e a França. O Brasil era um pais em fermentação. Não havia nação, mas sobretudo não havia Estado brasileiro.

Sua tese “Mediterràneo” foi escrita em parte no Brasil?

Foi. Grande parte dela. Eu tinha toda a documentação. Os estudantes trabalhavam pouco e os professores, também. Havia muitas distrações e feriados no Brasil. E como é possível a vida sem distrações? Um dia era a festa da descoberta da América, depois festas de São João, etc. E não tinha aula. Havia dias que a faculdade estava fechada e isso não era minha culpa. Dessa forma, tinha muito tempo para ir escrevendo a tese escondidinho...

E do ponto de vista de remuneração, sua passagem foi também positiva?

Ah, arrumei direitinho minha vida.

Levy Strauss conta que chegou ao Brasil com uma visão exótica das coisas, esperando até encontrar índios nas ruas. Essa era também sua expectativa?

Não. Eu levei uma grande vantagem sobre eles. Tinha lido um volume sobre geografia do Brasil do “Denis”. Em relação a hoje. São Paulo era uma pequena cidade de interior. Mas eu esperava uma coisa banal, pois como vocês sabem os franceses são muito vaidosos. Mas acabei sendo agradavelmente surpreso. Morava numa casa da rua Padre João Manuel; hoje, no local, construíram um prédio. A dona alugou a casa com tudo: carro, motorista e cozinheira.

O senhor costumava freqüentar clubes em São Paulo?

Não. Esse era o lado do Mogue. Um dia, eu, Mogue e Levy Strauss fomos fazer um passeio a cavalo. Dei uma arrancada e os cavalos montados pelos dois seguiram. Foi um desastre. Levy Strauss suava até a gravata. mas agüentou firme com suas botas compradas no Rio Grande do Sul. A partir daí, os dois decidiram que não mais iriam com elas quando fossem montar na Hípica.

Não acha um erro a busca de certas universidades, de tentar achar nos exemplos europeus soluções para seus problemas de países em desenvolvimento?

Acho isso horrível. A transferência, outrora, da revolução industrial inglesa para a Europa, no século XVIII, levou tempo para ser feita, mesmo sendo para um país análogo. Mas se pretender a passagem de soluções japonesas, alemãs ou russas para o Brasil é uma catástrofe. Não há transferência possível. Isso porque a economia não existe em si, mas em relação à massa dos indivíduos e das realidades que estão em suas malhas. Esse é um erro dos economistas e das ciências sociais que, na França e no mundo, esquecem que existem aqui experiências anteriores.

Do ponto de vista histórico, está vendo fim da crise?

A crise atual não será solucionada em pouco tempo. Nem mesmo nos Estados Unidos. Acredito numa crise longa, e nosso problema atual é adaptar-se a ela. Como conviver com ela? Adaptar-se à italiana, ao mercado negro, à economia submersa que é livre das amarras do Estado. Sou presidente de um comitê internacional da cidade do Prato, ao lado de Florença. Essa é uma cidade que não conhece a crise. As pessoas trabalham 13 horas por dia. Ninguém paga impostos. Na verdade, as pessoas se viram. Prato fabrica tecidos, adotando um sistema que emprega pessoas quando se tem um encomenda. É um sistema do século XIII mas que funciona. E tudo isso fora do Estado. Na Itália, um terço da renda nacional vem dessa economia submersa. E, na França, já atingimos vinte por cento.

Quando chegou ao Brasil sentiu os efeitos ideológicos da revolução russa?

Não. A revolução russa não estava presente às aulas. Os brasileiros tinham como referência a revolução francesa. Eles esperavam por uma revolução desse tipo. Acho que estão es erando até agora.

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

Entrevista por Reali Junior

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