Criador do Menino Maluquinho, Ziraldo [1932-2024] foi convidado pelo Estadão em 1995 para escrever sobre os 10 anos de outro garoto de sucesso nas tiras em quadrinhos: o Calvin, de Bill Watterson.
No texto publicado no Caderno 2 sobre o menino que tem um tigre imaginário chamado Haroldo como único amigo, Ziraldo vai além de analisar a diferença entre os dois personagens, dá uma aula sobre alguns autores de HQs americanas e discorre sobre a infância em diferentes tipos de sociedades: Leia a íntegra:
Estadão - 3 de novembro de 1995
Menino sem sol busca beijos da infância
Relação de Calvin com seu amigo imaginário revela uma sociedade eficiente e sem carinhos
ZIRALDO Especial para o Estado
Como All Capp, criador do Li’l Abner — ou do Ferdinando, como querem alguns — Bill Watterson é um escritor — ou dramaturgo — que, além da palavra, usa o desenho como forma de narrativa. A história em quadrinhos norte-americana, que nasceu nas páginas de domingo dos jornais, permeia a vida do povo daquele país. E usou durante todo este século uma mídia tão poderosa que são incontáveis os personagens que ela incorporou definitivamente à cultura do povo.
A HQ americana soube usar, com a narrativa imagística, a poderosa técnica do folhetim que fez a glória dos mais famosos escritores franceses do século passado. E criou seus Balzaques e seus Stendhales, muitos deles com as mesmas qualidades de um escritor francês do mesmo século acima mencionado. Só que acrescentando ao talento de saber viajar sobre a condição humana — que é o que credencia alguém a ser chamado de escritor — a capacidade de mostrar e não descrever os habitantes de seu universo de invenção.
Mencionei Al Capp lá em cima, mas teria de colocar nesse pódio Schulz, dos Peanuts. Os três herdeiros de Swift fazem literatura da melhor qualidade. AI Capp, conservador, foi um crítico e um retratista mordaz da sociedade americana: Schulz, um ex-pastor protestante, é um analista da alma de sua classe média: Watterson, como Edward Hopper, o pintor, trabalha sobre a calvinista solidão dos huguenotes que construíram a civilização do homem norte-americano.
Esqueci-me de mencionar outro desenhista americano que, no nível de um Faulkner ou de um Saul Bellow, inventa seu mundo povoando-o de tipos incapazes de se comunicar uns com os outros: o meu amigo Jules Feiffer. São esses aí os quatro grandes.
Watterson é o mais jovem deles, o que chegou por último. Mas já deixou Schulz cheio de ciúmes. É só ler o texto que o velho pai do Snoopy fez na apresentação do primeiro álbum contendo as tiras do Calvin e seu amigo Haroldo — ou Hobbes, como querem alguns.
O desenho do Watterson, apesar de ser extraordinariamente expressivo é o menos bom dos quatro, mas seu herói me parece o mais bem logrado de todos. Watterson é um misantropo e não quer que seus personagens virem objeto de consumo — é um Sérpico posto à esquerda de Zwinglio.
A relação de Calvin com seu amigo imaginário, o tigre Hobbes e com seus pais que não o beijam nem carinham, revela que Watterson trabalha sobre um tipo de existência que conhece, que possivelmente tenha vivido. Calvin — que não se chama Calvin à toa — é o mesmo menino do livro infantil de Feiffer que a Companhia da Letras acabou de publicar.
Um menino que o pai não beija, a mãe não lambe. Um menino que não sabe onde estão os braços que procura, que não tem como inventar o sol porque não há sol em sua infância. Um menino que não pode ter dez namoradas porque isto é falocrático, que não pode brincar de fantasma furando o lençol do papai (que rola de rir) porque tem de se preparar para o futuro.
Calvin é um menino de uma sociedade eficiente. Diferente do Menino Maluquinho, que um dia há de ser o personagem de uma sociedade feliz.
* Ziraldo é cartunista e escritor
+ Ziraldo no Estadão
Ziraldo é notícia no Estadão desde 1961, quando estreou uma exposição na Galeria Ambiente, junto a outros cinco “chargistas” cariocas. Desde estão, seus múltiplos talentos foram noticiados cada vez mais nas páginas do jornal, onde também colaborou publicando tiras da Turma do Pererê, do Menino Maluquinho e as páginas “O Estado de Graça”, página de humor produzida pela Revista Bundas para o Caderno 2 do Jornal. Veja algumas das páginas com Ziraldo:
Estadão - 18 de setembro de 2019
Estadão - 19 de outubro de 2002
Estadão - 27 de agosto de 1987
Estadão - 6 de novembro de 1988
Estadão - 5 de setembro de 1981
Estadão - 25 de agosto de 1968