A incerteza ética abordada com precisão


Texto de Juan Mayorga usa o debate entre a polis e o indivíduo para entender a dolorida confusão da cidade moderna

Por MARIANGELA ALVES DE LIMA e Crítica

Na gênese da dramaturgia ocidental, a cidade é representada por um coro que justifica ou condena os atos dos protagonistas. Trata-se, contudo, de uma noção de cidade que nada tem a ver com nossos agrupamentos contemporâneos definidos, antes de tudo, por critérios administrativos. A cidade a que se referia o drama grego era antes o pensamento coletivo organizando-se para proteger o interesse comum, mesmo que para isso fosse necessário contrariar o interesse individual. E é com essa noção constitutiva da formalização trágica que dialoga o dramaturgo Juan Mayorga em Hamelin. Sua peça, de uma argúcia extraordinária ao manipular elementos tradicionais da dramaturgia, também recorre ao debate exemplar entre a cidade e o indivíduo, mas trata-o como sintoma da exaustão de uma forma.O homem que procura expurgar da cidade o mais terrível dos crimes (poucas coisas ferem mais a sensibilidade contemporânea do que o mal feito às crianças) avança, de início com determinação e clareza de propósito, para salvar inocentes, sanar males futuros e punir exemplarmente os criminosos. Cada passo da investigação, contudo, traz à superfície um dado que corrói certezas, tolda a percepção do crime, dos criminosos e das vítimas e, ao final, acaba por subverter a crença na justiça. Não é tudo. Sob essa discussão que põe em dúvida os motivos das vítimas e dos criminosos, a linguagem que usam para expressar-se e as circunstâncias em que os crimes teriam ocorrido, a peça vai cavando os alicerces da civilidade, até roçar o tabu que protege as crianças da investida sexual dos adultos.Fosse mais claramente poética e arbitrária no que diz respeito à construção das personagens, talvez amparada no modelo de um Jean Genet, a dramaturgia de Mayorga dissolveria a noção de bem e mal no espelho distorcido da insurreição, onde o que vale é o inverso. As personagens da peça, contudo, se compõem sob o olhar do público, são assumidas por atores que também desempenham a função de narradores e parece essencial para o entendimento da peça que estejam convictas dos argumentos que esgrimem e sejam sinceras nas manifestações emocionais. O que se coloca sob suspeita, além da veracidade das acusações e defesas, é uma estratégia de narração inadequada para distinguir os interesses da cidade dos desejos dos indivíduos. Sempre atenta, introduzindo uma cunha entre a fala e o ato, entre a intenção e o gesto da personagem, a intervenção autoral multiplica perspectivas, muda ângulo de visão das cenas, instila dúvidas e manipula a possível empatia do público por esta ou aquela personagem.Uma vez que se trata de uma dúvida metódica aplicada como líquido corrosivo sobre as situações, as falas das personagens, as tonalidades emotivas e o próprio tempo da ação dramática - os atores narram o que se passou, mas também se endereçam diretamente ao público -, o espetáculo estrutura-se também sobre a figura do caleidoscópio. Não se pode prever continuidade nas ações ou no discurso interior das personagens. Surpreender é, mais do que uma tática, uma necessidade que dá sentido à peça. A direção de André Paes Leme respeita essas indicações complexas e disciplina o trânsito veloz, indispensável para que os intérpretes migrem de composições veristas para atuar como narradores, transmitir rubricas de localização ou travar com a plateia uma relação direta. Há no espetáculo um trabalho excepcionalmente bem-feito de modulação de vozes e mecânica de deslocamentos para que cada cena tenha ao mesmo tempo um dado novo e um componente ambíguo que dissolverá o valor informativo dessa novidade. Embora a proposta seja do texto - por exemplo, o homem afirma que quer ter mais um filho e a cena termina com a rubrica "não se tocam" -, é o tratamento preciso e quase suave do espetáculo, evitando a ênfase nas negações, que evidencia a incerteza ética da polis a que se refere a peça.Sobriedade e distanciamento intencional de estereótipos de emotividade são traços gerais de composição do espetáculo e recobrem desde a cenografia rigorosa de Carlos Alberto Nunes até o trabalho dos intérpretes. Tons escuros e neutros, zonas de obscuridade ou iluminação suave e vozes moduladas para não ultrapassar um determinado volume funcionam também como signo da face oculta da cidade que a investigação tentará aclarar. Atuando sob essa orientação monacal que exige acrobacias técnicas para passar de uma a outra função no espetáculo, e não permite exibicionismos individuais, o elenco de Hamelin comporta-se como a imagem idealizada do antiquíssimo coro grego. Cumpre, antes de tudo, a função coral de mimetizar, como um conjunto unido, a dolorida confusão da cidade moderna.

Na gênese da dramaturgia ocidental, a cidade é representada por um coro que justifica ou condena os atos dos protagonistas. Trata-se, contudo, de uma noção de cidade que nada tem a ver com nossos agrupamentos contemporâneos definidos, antes de tudo, por critérios administrativos. A cidade a que se referia o drama grego era antes o pensamento coletivo organizando-se para proteger o interesse comum, mesmo que para isso fosse necessário contrariar o interesse individual. E é com essa noção constitutiva da formalização trágica que dialoga o dramaturgo Juan Mayorga em Hamelin. Sua peça, de uma argúcia extraordinária ao manipular elementos tradicionais da dramaturgia, também recorre ao debate exemplar entre a cidade e o indivíduo, mas trata-o como sintoma da exaustão de uma forma.O homem que procura expurgar da cidade o mais terrível dos crimes (poucas coisas ferem mais a sensibilidade contemporânea do que o mal feito às crianças) avança, de início com determinação e clareza de propósito, para salvar inocentes, sanar males futuros e punir exemplarmente os criminosos. Cada passo da investigação, contudo, traz à superfície um dado que corrói certezas, tolda a percepção do crime, dos criminosos e das vítimas e, ao final, acaba por subverter a crença na justiça. Não é tudo. Sob essa discussão que põe em dúvida os motivos das vítimas e dos criminosos, a linguagem que usam para expressar-se e as circunstâncias em que os crimes teriam ocorrido, a peça vai cavando os alicerces da civilidade, até roçar o tabu que protege as crianças da investida sexual dos adultos.Fosse mais claramente poética e arbitrária no que diz respeito à construção das personagens, talvez amparada no modelo de um Jean Genet, a dramaturgia de Mayorga dissolveria a noção de bem e mal no espelho distorcido da insurreição, onde o que vale é o inverso. As personagens da peça, contudo, se compõem sob o olhar do público, são assumidas por atores que também desempenham a função de narradores e parece essencial para o entendimento da peça que estejam convictas dos argumentos que esgrimem e sejam sinceras nas manifestações emocionais. O que se coloca sob suspeita, além da veracidade das acusações e defesas, é uma estratégia de narração inadequada para distinguir os interesses da cidade dos desejos dos indivíduos. Sempre atenta, introduzindo uma cunha entre a fala e o ato, entre a intenção e o gesto da personagem, a intervenção autoral multiplica perspectivas, muda ângulo de visão das cenas, instila dúvidas e manipula a possível empatia do público por esta ou aquela personagem.Uma vez que se trata de uma dúvida metódica aplicada como líquido corrosivo sobre as situações, as falas das personagens, as tonalidades emotivas e o próprio tempo da ação dramática - os atores narram o que se passou, mas também se endereçam diretamente ao público -, o espetáculo estrutura-se também sobre a figura do caleidoscópio. Não se pode prever continuidade nas ações ou no discurso interior das personagens. Surpreender é, mais do que uma tática, uma necessidade que dá sentido à peça. A direção de André Paes Leme respeita essas indicações complexas e disciplina o trânsito veloz, indispensável para que os intérpretes migrem de composições veristas para atuar como narradores, transmitir rubricas de localização ou travar com a plateia uma relação direta. Há no espetáculo um trabalho excepcionalmente bem-feito de modulação de vozes e mecânica de deslocamentos para que cada cena tenha ao mesmo tempo um dado novo e um componente ambíguo que dissolverá o valor informativo dessa novidade. Embora a proposta seja do texto - por exemplo, o homem afirma que quer ter mais um filho e a cena termina com a rubrica "não se tocam" -, é o tratamento preciso e quase suave do espetáculo, evitando a ênfase nas negações, que evidencia a incerteza ética da polis a que se refere a peça.Sobriedade e distanciamento intencional de estereótipos de emotividade são traços gerais de composição do espetáculo e recobrem desde a cenografia rigorosa de Carlos Alberto Nunes até o trabalho dos intérpretes. Tons escuros e neutros, zonas de obscuridade ou iluminação suave e vozes moduladas para não ultrapassar um determinado volume funcionam também como signo da face oculta da cidade que a investigação tentará aclarar. Atuando sob essa orientação monacal que exige acrobacias técnicas para passar de uma a outra função no espetáculo, e não permite exibicionismos individuais, o elenco de Hamelin comporta-se como a imagem idealizada do antiquíssimo coro grego. Cumpre, antes de tudo, a função coral de mimetizar, como um conjunto unido, a dolorida confusão da cidade moderna.

Na gênese da dramaturgia ocidental, a cidade é representada por um coro que justifica ou condena os atos dos protagonistas. Trata-se, contudo, de uma noção de cidade que nada tem a ver com nossos agrupamentos contemporâneos definidos, antes de tudo, por critérios administrativos. A cidade a que se referia o drama grego era antes o pensamento coletivo organizando-se para proteger o interesse comum, mesmo que para isso fosse necessário contrariar o interesse individual. E é com essa noção constitutiva da formalização trágica que dialoga o dramaturgo Juan Mayorga em Hamelin. Sua peça, de uma argúcia extraordinária ao manipular elementos tradicionais da dramaturgia, também recorre ao debate exemplar entre a cidade e o indivíduo, mas trata-o como sintoma da exaustão de uma forma.O homem que procura expurgar da cidade o mais terrível dos crimes (poucas coisas ferem mais a sensibilidade contemporânea do que o mal feito às crianças) avança, de início com determinação e clareza de propósito, para salvar inocentes, sanar males futuros e punir exemplarmente os criminosos. Cada passo da investigação, contudo, traz à superfície um dado que corrói certezas, tolda a percepção do crime, dos criminosos e das vítimas e, ao final, acaba por subverter a crença na justiça. Não é tudo. Sob essa discussão que põe em dúvida os motivos das vítimas e dos criminosos, a linguagem que usam para expressar-se e as circunstâncias em que os crimes teriam ocorrido, a peça vai cavando os alicerces da civilidade, até roçar o tabu que protege as crianças da investida sexual dos adultos.Fosse mais claramente poética e arbitrária no que diz respeito à construção das personagens, talvez amparada no modelo de um Jean Genet, a dramaturgia de Mayorga dissolveria a noção de bem e mal no espelho distorcido da insurreição, onde o que vale é o inverso. As personagens da peça, contudo, se compõem sob o olhar do público, são assumidas por atores que também desempenham a função de narradores e parece essencial para o entendimento da peça que estejam convictas dos argumentos que esgrimem e sejam sinceras nas manifestações emocionais. O que se coloca sob suspeita, além da veracidade das acusações e defesas, é uma estratégia de narração inadequada para distinguir os interesses da cidade dos desejos dos indivíduos. Sempre atenta, introduzindo uma cunha entre a fala e o ato, entre a intenção e o gesto da personagem, a intervenção autoral multiplica perspectivas, muda ângulo de visão das cenas, instila dúvidas e manipula a possível empatia do público por esta ou aquela personagem.Uma vez que se trata de uma dúvida metódica aplicada como líquido corrosivo sobre as situações, as falas das personagens, as tonalidades emotivas e o próprio tempo da ação dramática - os atores narram o que se passou, mas também se endereçam diretamente ao público -, o espetáculo estrutura-se também sobre a figura do caleidoscópio. Não se pode prever continuidade nas ações ou no discurso interior das personagens. Surpreender é, mais do que uma tática, uma necessidade que dá sentido à peça. A direção de André Paes Leme respeita essas indicações complexas e disciplina o trânsito veloz, indispensável para que os intérpretes migrem de composições veristas para atuar como narradores, transmitir rubricas de localização ou travar com a plateia uma relação direta. Há no espetáculo um trabalho excepcionalmente bem-feito de modulação de vozes e mecânica de deslocamentos para que cada cena tenha ao mesmo tempo um dado novo e um componente ambíguo que dissolverá o valor informativo dessa novidade. Embora a proposta seja do texto - por exemplo, o homem afirma que quer ter mais um filho e a cena termina com a rubrica "não se tocam" -, é o tratamento preciso e quase suave do espetáculo, evitando a ênfase nas negações, que evidencia a incerteza ética da polis a que se refere a peça.Sobriedade e distanciamento intencional de estereótipos de emotividade são traços gerais de composição do espetáculo e recobrem desde a cenografia rigorosa de Carlos Alberto Nunes até o trabalho dos intérpretes. Tons escuros e neutros, zonas de obscuridade ou iluminação suave e vozes moduladas para não ultrapassar um determinado volume funcionam também como signo da face oculta da cidade que a investigação tentará aclarar. Atuando sob essa orientação monacal que exige acrobacias técnicas para passar de uma a outra função no espetáculo, e não permite exibicionismos individuais, o elenco de Hamelin comporta-se como a imagem idealizada do antiquíssimo coro grego. Cumpre, antes de tudo, a função coral de mimetizar, como um conjunto unido, a dolorida confusão da cidade moderna.

Na gênese da dramaturgia ocidental, a cidade é representada por um coro que justifica ou condena os atos dos protagonistas. Trata-se, contudo, de uma noção de cidade que nada tem a ver com nossos agrupamentos contemporâneos definidos, antes de tudo, por critérios administrativos. A cidade a que se referia o drama grego era antes o pensamento coletivo organizando-se para proteger o interesse comum, mesmo que para isso fosse necessário contrariar o interesse individual. E é com essa noção constitutiva da formalização trágica que dialoga o dramaturgo Juan Mayorga em Hamelin. Sua peça, de uma argúcia extraordinária ao manipular elementos tradicionais da dramaturgia, também recorre ao debate exemplar entre a cidade e o indivíduo, mas trata-o como sintoma da exaustão de uma forma.O homem que procura expurgar da cidade o mais terrível dos crimes (poucas coisas ferem mais a sensibilidade contemporânea do que o mal feito às crianças) avança, de início com determinação e clareza de propósito, para salvar inocentes, sanar males futuros e punir exemplarmente os criminosos. Cada passo da investigação, contudo, traz à superfície um dado que corrói certezas, tolda a percepção do crime, dos criminosos e das vítimas e, ao final, acaba por subverter a crença na justiça. Não é tudo. Sob essa discussão que põe em dúvida os motivos das vítimas e dos criminosos, a linguagem que usam para expressar-se e as circunstâncias em que os crimes teriam ocorrido, a peça vai cavando os alicerces da civilidade, até roçar o tabu que protege as crianças da investida sexual dos adultos.Fosse mais claramente poética e arbitrária no que diz respeito à construção das personagens, talvez amparada no modelo de um Jean Genet, a dramaturgia de Mayorga dissolveria a noção de bem e mal no espelho distorcido da insurreição, onde o que vale é o inverso. As personagens da peça, contudo, se compõem sob o olhar do público, são assumidas por atores que também desempenham a função de narradores e parece essencial para o entendimento da peça que estejam convictas dos argumentos que esgrimem e sejam sinceras nas manifestações emocionais. O que se coloca sob suspeita, além da veracidade das acusações e defesas, é uma estratégia de narração inadequada para distinguir os interesses da cidade dos desejos dos indivíduos. Sempre atenta, introduzindo uma cunha entre a fala e o ato, entre a intenção e o gesto da personagem, a intervenção autoral multiplica perspectivas, muda ângulo de visão das cenas, instila dúvidas e manipula a possível empatia do público por esta ou aquela personagem.Uma vez que se trata de uma dúvida metódica aplicada como líquido corrosivo sobre as situações, as falas das personagens, as tonalidades emotivas e o próprio tempo da ação dramática - os atores narram o que se passou, mas também se endereçam diretamente ao público -, o espetáculo estrutura-se também sobre a figura do caleidoscópio. Não se pode prever continuidade nas ações ou no discurso interior das personagens. Surpreender é, mais do que uma tática, uma necessidade que dá sentido à peça. A direção de André Paes Leme respeita essas indicações complexas e disciplina o trânsito veloz, indispensável para que os intérpretes migrem de composições veristas para atuar como narradores, transmitir rubricas de localização ou travar com a plateia uma relação direta. Há no espetáculo um trabalho excepcionalmente bem-feito de modulação de vozes e mecânica de deslocamentos para que cada cena tenha ao mesmo tempo um dado novo e um componente ambíguo que dissolverá o valor informativo dessa novidade. Embora a proposta seja do texto - por exemplo, o homem afirma que quer ter mais um filho e a cena termina com a rubrica "não se tocam" -, é o tratamento preciso e quase suave do espetáculo, evitando a ênfase nas negações, que evidencia a incerteza ética da polis a que se refere a peça.Sobriedade e distanciamento intencional de estereótipos de emotividade são traços gerais de composição do espetáculo e recobrem desde a cenografia rigorosa de Carlos Alberto Nunes até o trabalho dos intérpretes. Tons escuros e neutros, zonas de obscuridade ou iluminação suave e vozes moduladas para não ultrapassar um determinado volume funcionam também como signo da face oculta da cidade que a investigação tentará aclarar. Atuando sob essa orientação monacal que exige acrobacias técnicas para passar de uma a outra função no espetáculo, e não permite exibicionismos individuais, o elenco de Hamelin comporta-se como a imagem idealizada do antiquíssimo coro grego. Cumpre, antes de tudo, a função coral de mimetizar, como um conjunto unido, a dolorida confusão da cidade moderna.

Na gênese da dramaturgia ocidental, a cidade é representada por um coro que justifica ou condena os atos dos protagonistas. Trata-se, contudo, de uma noção de cidade que nada tem a ver com nossos agrupamentos contemporâneos definidos, antes de tudo, por critérios administrativos. A cidade a que se referia o drama grego era antes o pensamento coletivo organizando-se para proteger o interesse comum, mesmo que para isso fosse necessário contrariar o interesse individual. E é com essa noção constitutiva da formalização trágica que dialoga o dramaturgo Juan Mayorga em Hamelin. Sua peça, de uma argúcia extraordinária ao manipular elementos tradicionais da dramaturgia, também recorre ao debate exemplar entre a cidade e o indivíduo, mas trata-o como sintoma da exaustão de uma forma.O homem que procura expurgar da cidade o mais terrível dos crimes (poucas coisas ferem mais a sensibilidade contemporânea do que o mal feito às crianças) avança, de início com determinação e clareza de propósito, para salvar inocentes, sanar males futuros e punir exemplarmente os criminosos. Cada passo da investigação, contudo, traz à superfície um dado que corrói certezas, tolda a percepção do crime, dos criminosos e das vítimas e, ao final, acaba por subverter a crença na justiça. Não é tudo. Sob essa discussão que põe em dúvida os motivos das vítimas e dos criminosos, a linguagem que usam para expressar-se e as circunstâncias em que os crimes teriam ocorrido, a peça vai cavando os alicerces da civilidade, até roçar o tabu que protege as crianças da investida sexual dos adultos.Fosse mais claramente poética e arbitrária no que diz respeito à construção das personagens, talvez amparada no modelo de um Jean Genet, a dramaturgia de Mayorga dissolveria a noção de bem e mal no espelho distorcido da insurreição, onde o que vale é o inverso. As personagens da peça, contudo, se compõem sob o olhar do público, são assumidas por atores que também desempenham a função de narradores e parece essencial para o entendimento da peça que estejam convictas dos argumentos que esgrimem e sejam sinceras nas manifestações emocionais. O que se coloca sob suspeita, além da veracidade das acusações e defesas, é uma estratégia de narração inadequada para distinguir os interesses da cidade dos desejos dos indivíduos. Sempre atenta, introduzindo uma cunha entre a fala e o ato, entre a intenção e o gesto da personagem, a intervenção autoral multiplica perspectivas, muda ângulo de visão das cenas, instila dúvidas e manipula a possível empatia do público por esta ou aquela personagem.Uma vez que se trata de uma dúvida metódica aplicada como líquido corrosivo sobre as situações, as falas das personagens, as tonalidades emotivas e o próprio tempo da ação dramática - os atores narram o que se passou, mas também se endereçam diretamente ao público -, o espetáculo estrutura-se também sobre a figura do caleidoscópio. Não se pode prever continuidade nas ações ou no discurso interior das personagens. Surpreender é, mais do que uma tática, uma necessidade que dá sentido à peça. A direção de André Paes Leme respeita essas indicações complexas e disciplina o trânsito veloz, indispensável para que os intérpretes migrem de composições veristas para atuar como narradores, transmitir rubricas de localização ou travar com a plateia uma relação direta. Há no espetáculo um trabalho excepcionalmente bem-feito de modulação de vozes e mecânica de deslocamentos para que cada cena tenha ao mesmo tempo um dado novo e um componente ambíguo que dissolverá o valor informativo dessa novidade. Embora a proposta seja do texto - por exemplo, o homem afirma que quer ter mais um filho e a cena termina com a rubrica "não se tocam" -, é o tratamento preciso e quase suave do espetáculo, evitando a ênfase nas negações, que evidencia a incerteza ética da polis a que se refere a peça.Sobriedade e distanciamento intencional de estereótipos de emotividade são traços gerais de composição do espetáculo e recobrem desde a cenografia rigorosa de Carlos Alberto Nunes até o trabalho dos intérpretes. Tons escuros e neutros, zonas de obscuridade ou iluminação suave e vozes moduladas para não ultrapassar um determinado volume funcionam também como signo da face oculta da cidade que a investigação tentará aclarar. Atuando sob essa orientação monacal que exige acrobacias técnicas para passar de uma a outra função no espetáculo, e não permite exibicionismos individuais, o elenco de Hamelin comporta-se como a imagem idealizada do antiquíssimo coro grego. Cumpre, antes de tudo, a função coral de mimetizar, como um conjunto unido, a dolorida confusão da cidade moderna.

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