RIO - Na virada do século 17 para o 18, o idioma oficial na Amazônia não era o português, mas o nheengatu. Também conhecida como língua geral, ela foi criada a partir do tupi antigo e era falada por todos os indígenas de diferentes etnias da região. Apesar de inicialmente ter sido usado também por colonizadores, sobretudo os religiosos, o idioma foi depois perseguido e banido pelos portugueses.
Para resgatar a língua, culturalmente tão importante na história do Brasil, um grupo de professores e escritores amazonenses criou a Academia da Língua Nheengatu, que reivindicará mais espaço para o idioma nas comunidades indígenas, na academia e também na internet.
Composto por 21 membros, o grupo quer agregar as três diferentes ortografias da língua que surgiram nas regiões do Baixo Rio Negro, Baixo Rio Amazonas, no Amazonas, e na Bacia do Tapajós, no Pará. Seu estatuto estabelece várias atividades, como produzir e atualizar continuamente um dicionário unificado da Língua Geral Amazônica no Brasil; criar, alimentar e atualizar uma biblioteca digital de materiais históricos e atuais, científicos e didáticos sobre o nheengatu; promover a produção de material didático para o ensino da língua nas comunidades indígenas.
“O nheengatu é a língua franca da Amazônia, carrega essa identidade amazônica, é uma forma de resistência dos povos indígenas. Por conta da perseguição, da repressão, ela ficou escondida nas comunidades do interior”, diz o escritor e professor George Borari, diretor da academia.
O principal aliado para o resgate do idioma é a tecnologia. Duas das mais importantes iniciativas já estão disponíveis. Uma é Nheengatu App. Criado pela estudante Suellen Tobler, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), o aplicativo é uma plataforma de ensino da língua indígena, lançado com apoio do governo do Pará, de professores universitários e lideranças indígenas.
Outra iniciativa inédita é o Projeto Motorola. Desde 2021, todos os smartphones da empresa contam com nheengatu entre suas opções de língua. A ideia da academia surgiu dos encontros de especialistas e professores de nheengatu para a elaboração do vocabulário e da grafia a ser usada nos serviços de telefonia da empresa.
As origens do nheengatu remontam ao século 17 e à odisseia dos tupinambás. Esses indígenas, originalmente do litoral do Nordeste, começaram a ocupar o interior ao fugir dos colonizadores e se estabeleceram na região do atual Maranhão, de onde se expandiram rio acima. Como formavam uma nação poderosa, impuseram a língua às demais etnias às margens do Amazonas.
As missões jesuíticas também reuniam indígenas de diferentes etnias. Isso favorecia a mistura. Aos poucos, palavras de outras línguas locais, bem como portuguesas, foram incorporadas. Os colonizadores, em menor número, também usavam o idioma para falar com os indígenas.
“Os índios de diferentes etnias eram reunidos pelos missionários em aldeamentos, levados para diferentes vilas como escravos; foi assim que a língua começou a se formar”, explicou o linguista Eduardo Navarro, da USP, professor de nheengatu. Segundo ele, a língua foi dominando totalmente a Amazônia, até ser mais falada que o português.
A partir do século 18, Portugal entrou em nova disputa de terras com a Espanha. Para garantir a posse dos territórios, era preciso demonstrar que a língua falada era o português. Isso fez com que o nheengatu fosse proibido. A violenta repressão à Cabanagem, a revolta popular deflagrada em 1835 na região, sepultou definitivamente a língua, que era falada pelos revoltosos. O início do ciclo da borracha e a entrada em massa de nordestinos na região pôs fim ao uso corrente do nheengatu.
Hoje, estima-se que existam de 20 mil a 30 mil falantes do idioma, todos na região amazônica. Desde 2002, o nheengatu é uma das línguas oficiais em São Gabriel da Cachoeira (AM). Pelo menos cem professores de nheengatu já foram formados na UFOPA.
“O brasileiro é um povo que não se valoriza; que olha para fora, não para dentro; que não conhece seus próprios idiomas”, afirma o escritor e professor Yagurê Yamâ, do povo indígena Maraguá, que é um dos fundadores da academia. “Estamos aqui para lutar e romper essa barreira, para que o brasileiro possa se enxergar, se encontrar, valorizar sua natureza e sua brasilidade.”