A queda do avião da Voepass em Vinhedo, no interior de São Paulo, na sexta-feira, 9, pode ter implicações civis e criminais. As causas do acidente que deixou 62 mortos estão sendo investigadas pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), ligado à Força Aérea Brasileira (FAB). Já a Polícia Federal e a Polícia Civil apuram se houve crime. Independentemente do estabelecimento de culpa, a companhia aérea operadora do voo tem responsabilidade direta pelos passageiros, conforme a lei.
O objetivo da investigação do Cenipa não é apontar culpados, mas sim determinar as causas do acidente, do ponto de vista técnico. A primeira fase desta análise foi feita no local do acidente. A segunda fase, que começa agora, consiste em analisar os dados do voo. O centro de investigação da FAB promete um relatório preliminar em até 30 dias.
“Neste estágio serão examinadas as atividades relacionadas ao voo, o ambiente operacional e os fatores humanos, bem como um estudo pormenorizado de componentes, equipamentos, sistemas, infraestruturas, entre outros”, informou a FAB em nota enviada à imprensa.
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Conforme a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), tanto a aeronave quanto os quatro tripulantes estavam aptos a operar e com a documentação em dia.
Superintendente regional da PF em São Paulo, Rodrigo Sanfurgo disse nesta segunda-feira que vai requisitar as informações obtidas pelo Cenipa para conduzir as próprias investigações criminais. O trabalho, em conjunto com a Polícia Civil, é determinar se houve crime e se há culpado por esse crime. O crime de homicídio, por exemplo, pode ser doloso ou culposo (quando não há intenção de matar).
“Não sabemos ainda se houve crime e, muito menos, quem cometeu”, frisou o advogado Gustavo Kloh, professor de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Mas a investigação pode apontar a responsabilidade criminal, por exemplo, se houve erro ou omissão, por parte do dono da companhia aérea, do operador aéreo, do engenheiro responsável pela manutenção da aeronave, do piloto, entre outros. Ou pode concluir que não houve crime algum, mas sim uma fatalidade.”
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Em 2006, o voo Gol 1907 se chocou com um avião Legacy e caiu na Amazônia, matando as 154 pessoas a bordo. O Cenipa concluiu que o acidente foi causado por falha dos operadores de voo, que teriam colocado o Legacy em uma rota errada, mas também dos pilotos do Legacy. Ainda assim, a responsabilidade civil pelas mortes dos passageiros foi assumida pela Gol.
Um ano depois, o voo TAM 3054, ao tentar pousar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, não conseguiu frear, ultrapassou os limites da pista, planou sobre a Avenida Washington Luís e colidiu com o prédio da TAM Express e com um posto de gasolina. Até hoje, é o acidente aéreo com o maior número de mortes (199) da história da aviação brasileira.
Naquele caso, o relatório do Cenipa concluiu que houve falha do piloto no momento do pouso e também do aeroporto, pela falta de ranhuras na pista de pouso. O pagamento de indenizações ficou a cargo da TAM. As empresas aéreas, em geral, têm seguros específicos para este fim.
A responsabilidade civil das companhias aéreas em caso de acidente é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) e à regulamentação da própria Anac, além de tratados internacionais, explica o advogado Leonardo Rosenbaum, do escritório Rosenbaum Advogados, especializado em direito do passageiro aéreo.
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“A responsabilidade civil das companhias aéreas em caso de acidente é amplamente regulada por diferentes diplomas legais, entre eles o CDC, que estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, neste caso a companhia aérea, e pelos danos causados aos consumidores, independentemente de culpa”, explicou Rosenbaum.
Já o Código Aeronáutico, segundo ele, também trata da responsabilidade do transportador, especificando que ele deve indenizar os danos decorrentes de morte ou lesão dos passageiros. A Anac regulamenta outros aspectos da aviação civil, incluindo os padrões de segurança e a responsabilidade das companhias aéreas. A resolução da Anac detalha direitos dos passageiros e obrigações das companhias aéreas em situação de sinistro.
Com base nessa legislação, os parentes dos passageiros mortos podem pedir judicialmente indenização por dano material e moral, diz a advogada Roberta Andreoli, presidente da Comissão de Direito Aeronáutico da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional São Paulo. Há também a possibilidade de firmar acordos extrajudicialmente com a companhia aérea.
No caso do dano material, o advogado requisita um valor que corresponda ao rendimento médio que o morto teria ao longo da vida para sustentar sua família. Já o dano moral é devido em relação ao sofrimento causado, ao abalo psicológico provocado.
No caso específico do acidente, o voo era operado pela Voepass, mas quem vendeu as passagens foi a Latam – num acordo comum entre companhias aéreas (codeshare). Neste caso, a determinação da responsabilidade civil pelo acidente dependerá da avaliação do juiz à frente do caso.
Da mesma forma, se a passagem fosse vendida por algum site ou agência de turismo, os especialistas divergem. Kloh acredita que eles poderiam ser igualmente responsabilizados, enquanto Roberta Andreoli avalia que não. Outra hipótese seria processar o fabricante da aeronave ou de peças específicas se for constatado um problema sistêmico.
Procurada, a Voepass não falou. Já a Latam informou que acordos comerciais de codeshare (código compartilhado), como aconteceu entre a Latam e a Voepass, são frequentes na aviação brasileira e mundial.
Segundo a nota, a operadora do voo é responsável por toda a gestão técnica e operacional, incluindo o atendimento aos passageiros no aeroporto, o próprio voo e as suas eventuais contingências. “Não se trata, portanto, de ‘transferência’ ou ‘terceirização’ de operações. Antes de selecionar no site e comprar sua passagem, o cliente é informado sobre qual é a companhia responsável por aquele voo e o modelo da aeronave”, afirmou.
Indenização de desastre incluiu até aldeia indígena
Nos últimos grandes acidentes aéreos em solo brasileiro, as famílias conseguiram garantir indenizações, ainda que isso tenha demorado alguns anos.
No caso do voo Gol 1907, que caiu na Amazônia em 2006, a responsabilidade civil pelas mortes dos passageiros foi assumida pela Gol. Em 2009, a companhia aérea indenizou um grupo de 45 parentes das vítimas que havia entrado na Justiça com ação conjunta, num total de R$ 46 milhões, segundo informou na época o escritório de advocacia Leonardo Amarante, que representou o grupo. Os valores pagos a cada família são calculados conforme a expectativa de vida, grau de instrução e salário que a vítima recebia em vida.
No mesmo ano, a Gol informou que já havia fechado acordos com parentes de outras 106 vítimas do acidente, mas que não divulgaria os valores, atendendo a pedidos das próprias famílias.
Em 2016, em acordo mediado pelo Ministério Público Federal (MPF), por danos materiais, ambientais e imateriais, a Gol pagou R$ 4 milhões a indígenas da etnia Kayapó que vivem na terra Capoto-Jarina, onde o avião caiu. Os indígenas foram os primeiros a chegar ao local do acidente, em meio à mata fechada.
Segundo a cosmologia dos indígenas, a área onde o avião caiu se transformou em um sítio sagrado, conhecido como “cidade dos espíritos”, e não pode mais ser usada para outros fins. O dinheiro foi pago ao Instituto Raoni, que o empregou em benefícios para aldeias e comunidades.
No caso do acidente da TAM, o relatório do Cenipa concluiu que houve falha do piloto no momento do pouso e também do aeroporto, pela falta de ranhuras na pista de pouso, que teriam ajudado a frear a aeronave em meio. Em 2017, a companhia aérea confirmou que já havia pago indenizações para parentes de 197 das 199 vítimas.
Neste mesmo ano, entretanto, a Airbus, fabricante do avião fechou acordo em paralelo, no total de R$ 30 milhões, com um grupo de parentes de vítimas que tinham acionado a empresa francesa judicialmente. Embora ela não tenha sido apontada como culpada, havia a suspeita de que o acidente teria sido provocado por conta de um problema mecânico.
Ex-procurador do caso TAM sugere concentrar na esfera federal
Para Rodrigo de Grandis, ex-procurador da República que atuou no acidente da TAM em 2007, a investigação do caso Voepass, entre outras consequências jurídicas, deve apurar eventual crime contra a segurança do transporte aéreo, que admite as forma dolosa e culposa. “Os últimos grandes acidentes aéreos no Brasil, casos da Gol e da TAM, motivaram ações penais com base nesse crime”, diz.
Ele explica que o crime de atentado à segurança de transporte aéreo é um delito de perigo, ou seja, se consuma só com a produção de uma situação de perigo ou de dano. “O resultado morte ou lesão corporal é dispensável para a configuração do delito, servindo no entanto para agravar a pena, dando forma qualificada ao crime.”
De Grandis, hoje advogado e professor de Direito Penal na FGV-SP, lembra que, em regra, crimes de homicídio e lesão corporal são investigados pela Polícia Civil e processados perante a Justiça Estadual. Mas o crime de atentado à segurança de transporte aéreo é de competência federal, pelo fato de que o bem jurídico tutelado é a segurança de serviço público cuja exploração é de competência da União.
Ele recorda ainda que, no acidente da TAM, o inquérito acabou se concentrando na esfera federal. Na época, o MPF ofereceu denúncias contra dois diretores da empresa aérea e contra a então dirigente da Anac, mas todos foram absolvidos no processo.
“Na tragédia de Vinhedo, tanto a Polícia Civil como a Polícia Federal instauraram inquéritos policiais. O ideal, a meu ver, seria concentrar as investigações nas mãos da PF, em função de eventual crime federal, evitando a possibilidade de decisões conflitantes”, explica.
Segundo ele, o Código de Processo Penal prevê que, em caso de condenação criminal, haja reparação pelos autores do dano material ou moral produzido.