Aluna acusa professora de transfobia na Bahia; docente diz ser vítima de calúnia e difamação


Caso é investigado pela Polícia Civil baiana e reitoria também apura os fatos ocorridos em sala de aula

Por José Maria Tomazela

Uma discussão em sala de aula entre uma professora e uma aluna da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mais antiga universidade do Brasil, virou caso de polícia. A estudante Luísa Liz dos Reis, uma jovem trans de 25 anos, acusa a professora de transfobia e racismo. Já a docente Jan Alyne Barbosa Prado se diz vítima de calúnia e difamação. O caso é investigado pela Polícia Civil baiana. A reitoria da universidade informou que apura os fatos.

Um áudio registrou a discussão entre aluna e professora na terça-feira, 12, durante uma aula da disciplina de Produção e Circulação de Conteúdo e Mídias Digitais. A professora pede que a sala se concentre no debate do tema proposto. Dirigindo-se a Liz, ela afirma que a estudante não esteve presente na aula passada e não teria lido o texto. A aluna a rebate e reclama de ter sido excluída do debate.

Na discussão, a professora diz que Liz parece “chateado” (no masculino), o que revoltou a estudante trans. “A sua curadoria está tão distinta que você não consegue nem me enxergar como mulher”, reclamou.

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A aula prosseguiu sem discussões por algum tempo, mas logo a estudante volta a interromper a professora, lembrando o uso do adjetivo com erro de gênero. O debate se torna acalorado e envolve toda a classe.

Suposta transfobia ocorreu durante aula na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Foto: UFBA/Divugação

Quando a docente pede que a aluna pare de interrompê-la, Liz afirma que está participando da aula. “Eu acho que a senhora não vai me impedir de estar criticamente contribuindo com a aula”, disse. Em seguida, ameaça abrir um processo contra a professora. “A senhora é professora, mas sou aluna. E o meu direito como aluno eu estou exercendo, que é participar criticamente.”

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Com o clima de exaltação na classe, a professora saiu e voltou com um funcionário ao qual reclamou que a estudante deveria ser retirada pois não a deixava dar a aula. Liz se revoltou ainda mais e chamou a professora de violenta.

Conforme o áudio, no momento em que a professora saiu, ela chegou a dizer que, ainda que estivesse “comendo cocô”, a professora deveria levá-la em consideração. A docente optou então por encerrar a aula. No áudio, é possível ouvir a aluna gritando que a professora é “transfóbica e racista”.

Denúncia à polícia

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Liz fez denúncia contra a professora no colegiado da Faculdade de Comunicação e, depois, procurou a Polícia Civil. A denúncia de transfobia e racismo está sendo investigada pela 7.ª Delegacia Territorial do Rio Vermelho, em Salvador. No boletim de ocorrência, ao qual a reportagem teve acesso, a vítima afirma que a professora “destituiu a imagem da mesma a chamando de ‘figura’ e que estava em surto psicótico, tratando a mesma como uma criminosa”.

Liz Reis, que é cantora, compositora e professora de canto lírico, contou ao Estadão que as aulas começaram dia 15 de agosto, quando ela estava em São Paulo, em um intercâmbio. “Embora não tenha podido ir, acompanhei as aulas e li todos os textos, inclusive o da professora.”

Ela disse que, para a aula do dia 12, levou material com textos de referências na área de curadoria que estava sendo abordado. “Em dado momento, ela (professora) parou minha colocação e perguntou se eu li o texto, botando em prova o esforço acadêmico que eu tinha fazendo.”

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Ao confirmar a leitura, a professora perguntou como ela se chamava. “E eu respondi, ‘meu nome é Luisa Liz’. Ela disse, ‘eu acho que você está chateado’, assim, no masculino. Mas isso foi só o início. Ela já começou a me impedir de me expor e de exercer o direito criticamente até de errar. Não sou só uma mulher transexual, é só um marcador a mais. Ali eu era uma aluna. Quando ela não conseguiu acompanhar meu pensamento crítico que estava condizente com o que estava sendo dito, ela entrou em colapso e começa ali a violência ao dizer que não li o texto.”

Colegas de Liz que acompanhavam a entrevista disseram que a estudante passou a ser ignorada pela docente. “Ela começa a olhar para outro grupo da classe e começa a tratar com desdém o posicionamento de Liz na sala de aula, se dirigindo de forma contrária ao que Liz estava expondo. Nós, colegas, estávamos ao redor, percebendo uma tentativa de silenciamento, com ela olhando para um lugar distante de onde a Liz estava.”

Liz disse que vai apresentar denúncia também ao Ministério Público. Depois do episódio, ela não voltou às aulas. “Estamos em mobilização porque não aceitamos esse tipo de comportamento”, disse.

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Alunos da Faculdade de Comunicação da UFBA fizeram um protesto, nesta quarta-feira, 13, contra a professora em frente ao local onde acontecia a inauguração do Instituto de Humanidades, na presença do reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira. O reitor reforçou as ações da instituição para apurar o caso. “Uma atitude homofóbica e racista agride o espírito da universidade, agride as pessoas que estão aqui. É importante ter a clareza que o enfrentamento destas atitudes encontrarão sempre todo o acolhimento”, disse.

Erro não intencional

A professora Jan Alyne Barbosa Prado é doutora em comunicação e cultura contemporânea e pós-doutora pela Universidade de Bremen na Alemanha. Ao Estadão, ela disse que era a primeira vez que a aluna comparecia à sua aula e ainda não a conhecia, por isso não conseguiu identificar seu gênero. “Errei o pronome, de forma totalmente não intencional. Eu jamais trataria uma pessoa da forma que ela não gostaria de ser tratada.”

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Segundo ela, depois do ocorrido, tomou conhecimento de que outros professores também se confundiram com o gênero da aluna. “Nesses outros casos, não houve consequências e as aulas prosseguiram normalmente.”

Conforme a docente, Liz trouxe para a sala coisas que não tinham conexão com o programa da disciplina e tentou interferir na condução da aula. “Ela queria trazer autores que não coincidiam com a proposição da disciplina. Ficou claro que ela não tinha lido o texto, então ela se exaltou. Como ela não estava me deixando seguir com a aula, eu tive de sair para chamar um servidor e pedi apoio a ele para convidá-la a sair da sala, já que estava interferindo a todo momento na aula”, disse.

Segundo a professora, o áudio da aula deixa claro que não houve qualquer ação racista ou transfóbica da parte dela como docente. Houve, acredita, excessos por parte da aluna. “Sei que ela entrou com um boletim de ocorrência contra mim, me acusando de coisas que não aconteceram, como o áudio comprova. Ainda estou vendo como serão encaminhadas as questões jurídicas. São coisas complexas e demandam algum tempo e ponderação para decidir como agir”, disse.

A Congregação da Faculdade de Comunicação disse em nota que a aluna recebeu acolhimento. “É importante ressaltar que repudiamos qualquer tipo de manifestação preconceituosa e discriminatória, bem como atitudes que ferem a liberdade de cátedra, sendo assegurado sempre o amplo direito de defesa, dentro dos contextos adequados. Repudiamos todo e qualquer julgamento prévio, ofensa ou agressão às partes sem apuração dos fatos. É princípio basilar garantir o contraditório em condições isonômicos”, afirmou.

Também em nota a UFBA disse que é reconhecida por seu empenho institucional em se tornar cada dia mais diversa e inclusiva. A universidade é a mais antiga do Brasil, fundada em 1808, por D. João VI, como Escola de Cirurgia da Bahia. “O atual perfil de nossa comunidade é o resultado de uma década e meia de ações afirmativas, que hoje norteiam a instituição. A aprovação de cotas para pessoas trans, em vagas supranumerárias, é uma das ações de inclusão celebradas recentemente pela Universidade.”

A nota destaca que qualquer forma de assédio é considerada, não apenas uma agressão aos vitimados, mas ao próprio espírito da universidade. “Esta instituição não compactua com a transfobia ou qualquer outra forma de discriminação. Tampouco será jamais conivente com processos de execução sumária e linchamento público de qualquer de seus membros – o que se configura na medida em que, de forma antidemocrática, lhes seja negado direito à ampla defesa e contraditório.”

Lembrou ainda que a apuração dos fatos “requerem uma temporalidade certamente maior que a das redes sociais e do noticiário, espaços nos quais versões se multiplicam de forma açodada e, tantas vezes, injustas, seja com indivíduos, seja com a instituição”.

Segundo a UFBA, em relação à acusação de transfobia supostamente ocorrida em uma aula da Facom, a estudante foi recebida no mesmo dia e também foi estabelecido diálogo com a docente. “A UFBA procederá à apuração parcimoniosa dos fatos e, verificada qualquer conduta inadequada ou irregular por parte de qualquer membro da comunidade universitária, a Administração Central não se furtará a tomar as medidas cabíveis previstas em seu regimento.”

Decisão do STF

No dia 21 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que atos ofensivos contra pessoas da comunidade LGBTI+ podem ser enquadrados como injúria racial. A decisão foi tomada no julgamento de recurso apresentado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) contra acórdão anterior. A transfobia é caracterizada por toda forma de discriminação ou violência específica contra pessoas trans, seja ela moral, verbal ou psicológica.

Uma discussão em sala de aula entre uma professora e uma aluna da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mais antiga universidade do Brasil, virou caso de polícia. A estudante Luísa Liz dos Reis, uma jovem trans de 25 anos, acusa a professora de transfobia e racismo. Já a docente Jan Alyne Barbosa Prado se diz vítima de calúnia e difamação. O caso é investigado pela Polícia Civil baiana. A reitoria da universidade informou que apura os fatos.

Um áudio registrou a discussão entre aluna e professora na terça-feira, 12, durante uma aula da disciplina de Produção e Circulação de Conteúdo e Mídias Digitais. A professora pede que a sala se concentre no debate do tema proposto. Dirigindo-se a Liz, ela afirma que a estudante não esteve presente na aula passada e não teria lido o texto. A aluna a rebate e reclama de ter sido excluída do debate.

Na discussão, a professora diz que Liz parece “chateado” (no masculino), o que revoltou a estudante trans. “A sua curadoria está tão distinta que você não consegue nem me enxergar como mulher”, reclamou.

A aula prosseguiu sem discussões por algum tempo, mas logo a estudante volta a interromper a professora, lembrando o uso do adjetivo com erro de gênero. O debate se torna acalorado e envolve toda a classe.

Suposta transfobia ocorreu durante aula na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Foto: UFBA/Divugação

Quando a docente pede que a aluna pare de interrompê-la, Liz afirma que está participando da aula. “Eu acho que a senhora não vai me impedir de estar criticamente contribuindo com a aula”, disse. Em seguida, ameaça abrir um processo contra a professora. “A senhora é professora, mas sou aluna. E o meu direito como aluno eu estou exercendo, que é participar criticamente.”

Com o clima de exaltação na classe, a professora saiu e voltou com um funcionário ao qual reclamou que a estudante deveria ser retirada pois não a deixava dar a aula. Liz se revoltou ainda mais e chamou a professora de violenta.

Conforme o áudio, no momento em que a professora saiu, ela chegou a dizer que, ainda que estivesse “comendo cocô”, a professora deveria levá-la em consideração. A docente optou então por encerrar a aula. No áudio, é possível ouvir a aluna gritando que a professora é “transfóbica e racista”.

Denúncia à polícia

Liz fez denúncia contra a professora no colegiado da Faculdade de Comunicação e, depois, procurou a Polícia Civil. A denúncia de transfobia e racismo está sendo investigada pela 7.ª Delegacia Territorial do Rio Vermelho, em Salvador. No boletim de ocorrência, ao qual a reportagem teve acesso, a vítima afirma que a professora “destituiu a imagem da mesma a chamando de ‘figura’ e que estava em surto psicótico, tratando a mesma como uma criminosa”.

Liz Reis, que é cantora, compositora e professora de canto lírico, contou ao Estadão que as aulas começaram dia 15 de agosto, quando ela estava em São Paulo, em um intercâmbio. “Embora não tenha podido ir, acompanhei as aulas e li todos os textos, inclusive o da professora.”

Ela disse que, para a aula do dia 12, levou material com textos de referências na área de curadoria que estava sendo abordado. “Em dado momento, ela (professora) parou minha colocação e perguntou se eu li o texto, botando em prova o esforço acadêmico que eu tinha fazendo.”

Ao confirmar a leitura, a professora perguntou como ela se chamava. “E eu respondi, ‘meu nome é Luisa Liz’. Ela disse, ‘eu acho que você está chateado’, assim, no masculino. Mas isso foi só o início. Ela já começou a me impedir de me expor e de exercer o direito criticamente até de errar. Não sou só uma mulher transexual, é só um marcador a mais. Ali eu era uma aluna. Quando ela não conseguiu acompanhar meu pensamento crítico que estava condizente com o que estava sendo dito, ela entrou em colapso e começa ali a violência ao dizer que não li o texto.”

Colegas de Liz que acompanhavam a entrevista disseram que a estudante passou a ser ignorada pela docente. “Ela começa a olhar para outro grupo da classe e começa a tratar com desdém o posicionamento de Liz na sala de aula, se dirigindo de forma contrária ao que Liz estava expondo. Nós, colegas, estávamos ao redor, percebendo uma tentativa de silenciamento, com ela olhando para um lugar distante de onde a Liz estava.”

Liz disse que vai apresentar denúncia também ao Ministério Público. Depois do episódio, ela não voltou às aulas. “Estamos em mobilização porque não aceitamos esse tipo de comportamento”, disse.

Alunos da Faculdade de Comunicação da UFBA fizeram um protesto, nesta quarta-feira, 13, contra a professora em frente ao local onde acontecia a inauguração do Instituto de Humanidades, na presença do reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira. O reitor reforçou as ações da instituição para apurar o caso. “Uma atitude homofóbica e racista agride o espírito da universidade, agride as pessoas que estão aqui. É importante ter a clareza que o enfrentamento destas atitudes encontrarão sempre todo o acolhimento”, disse.

Erro não intencional

A professora Jan Alyne Barbosa Prado é doutora em comunicação e cultura contemporânea e pós-doutora pela Universidade de Bremen na Alemanha. Ao Estadão, ela disse que era a primeira vez que a aluna comparecia à sua aula e ainda não a conhecia, por isso não conseguiu identificar seu gênero. “Errei o pronome, de forma totalmente não intencional. Eu jamais trataria uma pessoa da forma que ela não gostaria de ser tratada.”

Segundo ela, depois do ocorrido, tomou conhecimento de que outros professores também se confundiram com o gênero da aluna. “Nesses outros casos, não houve consequências e as aulas prosseguiram normalmente.”

Conforme a docente, Liz trouxe para a sala coisas que não tinham conexão com o programa da disciplina e tentou interferir na condução da aula. “Ela queria trazer autores que não coincidiam com a proposição da disciplina. Ficou claro que ela não tinha lido o texto, então ela se exaltou. Como ela não estava me deixando seguir com a aula, eu tive de sair para chamar um servidor e pedi apoio a ele para convidá-la a sair da sala, já que estava interferindo a todo momento na aula”, disse.

Segundo a professora, o áudio da aula deixa claro que não houve qualquer ação racista ou transfóbica da parte dela como docente. Houve, acredita, excessos por parte da aluna. “Sei que ela entrou com um boletim de ocorrência contra mim, me acusando de coisas que não aconteceram, como o áudio comprova. Ainda estou vendo como serão encaminhadas as questões jurídicas. São coisas complexas e demandam algum tempo e ponderação para decidir como agir”, disse.

A Congregação da Faculdade de Comunicação disse em nota que a aluna recebeu acolhimento. “É importante ressaltar que repudiamos qualquer tipo de manifestação preconceituosa e discriminatória, bem como atitudes que ferem a liberdade de cátedra, sendo assegurado sempre o amplo direito de defesa, dentro dos contextos adequados. Repudiamos todo e qualquer julgamento prévio, ofensa ou agressão às partes sem apuração dos fatos. É princípio basilar garantir o contraditório em condições isonômicos”, afirmou.

Também em nota a UFBA disse que é reconhecida por seu empenho institucional em se tornar cada dia mais diversa e inclusiva. A universidade é a mais antiga do Brasil, fundada em 1808, por D. João VI, como Escola de Cirurgia da Bahia. “O atual perfil de nossa comunidade é o resultado de uma década e meia de ações afirmativas, que hoje norteiam a instituição. A aprovação de cotas para pessoas trans, em vagas supranumerárias, é uma das ações de inclusão celebradas recentemente pela Universidade.”

A nota destaca que qualquer forma de assédio é considerada, não apenas uma agressão aos vitimados, mas ao próprio espírito da universidade. “Esta instituição não compactua com a transfobia ou qualquer outra forma de discriminação. Tampouco será jamais conivente com processos de execução sumária e linchamento público de qualquer de seus membros – o que se configura na medida em que, de forma antidemocrática, lhes seja negado direito à ampla defesa e contraditório.”

Lembrou ainda que a apuração dos fatos “requerem uma temporalidade certamente maior que a das redes sociais e do noticiário, espaços nos quais versões se multiplicam de forma açodada e, tantas vezes, injustas, seja com indivíduos, seja com a instituição”.

Segundo a UFBA, em relação à acusação de transfobia supostamente ocorrida em uma aula da Facom, a estudante foi recebida no mesmo dia e também foi estabelecido diálogo com a docente. “A UFBA procederá à apuração parcimoniosa dos fatos e, verificada qualquer conduta inadequada ou irregular por parte de qualquer membro da comunidade universitária, a Administração Central não se furtará a tomar as medidas cabíveis previstas em seu regimento.”

Decisão do STF

No dia 21 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que atos ofensivos contra pessoas da comunidade LGBTI+ podem ser enquadrados como injúria racial. A decisão foi tomada no julgamento de recurso apresentado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) contra acórdão anterior. A transfobia é caracterizada por toda forma de discriminação ou violência específica contra pessoas trans, seja ela moral, verbal ou psicológica.

Uma discussão em sala de aula entre uma professora e uma aluna da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mais antiga universidade do Brasil, virou caso de polícia. A estudante Luísa Liz dos Reis, uma jovem trans de 25 anos, acusa a professora de transfobia e racismo. Já a docente Jan Alyne Barbosa Prado se diz vítima de calúnia e difamação. O caso é investigado pela Polícia Civil baiana. A reitoria da universidade informou que apura os fatos.

Um áudio registrou a discussão entre aluna e professora na terça-feira, 12, durante uma aula da disciplina de Produção e Circulação de Conteúdo e Mídias Digitais. A professora pede que a sala se concentre no debate do tema proposto. Dirigindo-se a Liz, ela afirma que a estudante não esteve presente na aula passada e não teria lido o texto. A aluna a rebate e reclama de ter sido excluída do debate.

Na discussão, a professora diz que Liz parece “chateado” (no masculino), o que revoltou a estudante trans. “A sua curadoria está tão distinta que você não consegue nem me enxergar como mulher”, reclamou.

A aula prosseguiu sem discussões por algum tempo, mas logo a estudante volta a interromper a professora, lembrando o uso do adjetivo com erro de gênero. O debate se torna acalorado e envolve toda a classe.

Suposta transfobia ocorreu durante aula na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Foto: UFBA/Divugação

Quando a docente pede que a aluna pare de interrompê-la, Liz afirma que está participando da aula. “Eu acho que a senhora não vai me impedir de estar criticamente contribuindo com a aula”, disse. Em seguida, ameaça abrir um processo contra a professora. “A senhora é professora, mas sou aluna. E o meu direito como aluno eu estou exercendo, que é participar criticamente.”

Com o clima de exaltação na classe, a professora saiu e voltou com um funcionário ao qual reclamou que a estudante deveria ser retirada pois não a deixava dar a aula. Liz se revoltou ainda mais e chamou a professora de violenta.

Conforme o áudio, no momento em que a professora saiu, ela chegou a dizer que, ainda que estivesse “comendo cocô”, a professora deveria levá-la em consideração. A docente optou então por encerrar a aula. No áudio, é possível ouvir a aluna gritando que a professora é “transfóbica e racista”.

Denúncia à polícia

Liz fez denúncia contra a professora no colegiado da Faculdade de Comunicação e, depois, procurou a Polícia Civil. A denúncia de transfobia e racismo está sendo investigada pela 7.ª Delegacia Territorial do Rio Vermelho, em Salvador. No boletim de ocorrência, ao qual a reportagem teve acesso, a vítima afirma que a professora “destituiu a imagem da mesma a chamando de ‘figura’ e que estava em surto psicótico, tratando a mesma como uma criminosa”.

Liz Reis, que é cantora, compositora e professora de canto lírico, contou ao Estadão que as aulas começaram dia 15 de agosto, quando ela estava em São Paulo, em um intercâmbio. “Embora não tenha podido ir, acompanhei as aulas e li todos os textos, inclusive o da professora.”

Ela disse que, para a aula do dia 12, levou material com textos de referências na área de curadoria que estava sendo abordado. “Em dado momento, ela (professora) parou minha colocação e perguntou se eu li o texto, botando em prova o esforço acadêmico que eu tinha fazendo.”

Ao confirmar a leitura, a professora perguntou como ela se chamava. “E eu respondi, ‘meu nome é Luisa Liz’. Ela disse, ‘eu acho que você está chateado’, assim, no masculino. Mas isso foi só o início. Ela já começou a me impedir de me expor e de exercer o direito criticamente até de errar. Não sou só uma mulher transexual, é só um marcador a mais. Ali eu era uma aluna. Quando ela não conseguiu acompanhar meu pensamento crítico que estava condizente com o que estava sendo dito, ela entrou em colapso e começa ali a violência ao dizer que não li o texto.”

Colegas de Liz que acompanhavam a entrevista disseram que a estudante passou a ser ignorada pela docente. “Ela começa a olhar para outro grupo da classe e começa a tratar com desdém o posicionamento de Liz na sala de aula, se dirigindo de forma contrária ao que Liz estava expondo. Nós, colegas, estávamos ao redor, percebendo uma tentativa de silenciamento, com ela olhando para um lugar distante de onde a Liz estava.”

Liz disse que vai apresentar denúncia também ao Ministério Público. Depois do episódio, ela não voltou às aulas. “Estamos em mobilização porque não aceitamos esse tipo de comportamento”, disse.

Alunos da Faculdade de Comunicação da UFBA fizeram um protesto, nesta quarta-feira, 13, contra a professora em frente ao local onde acontecia a inauguração do Instituto de Humanidades, na presença do reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira. O reitor reforçou as ações da instituição para apurar o caso. “Uma atitude homofóbica e racista agride o espírito da universidade, agride as pessoas que estão aqui. É importante ter a clareza que o enfrentamento destas atitudes encontrarão sempre todo o acolhimento”, disse.

Erro não intencional

A professora Jan Alyne Barbosa Prado é doutora em comunicação e cultura contemporânea e pós-doutora pela Universidade de Bremen na Alemanha. Ao Estadão, ela disse que era a primeira vez que a aluna comparecia à sua aula e ainda não a conhecia, por isso não conseguiu identificar seu gênero. “Errei o pronome, de forma totalmente não intencional. Eu jamais trataria uma pessoa da forma que ela não gostaria de ser tratada.”

Segundo ela, depois do ocorrido, tomou conhecimento de que outros professores também se confundiram com o gênero da aluna. “Nesses outros casos, não houve consequências e as aulas prosseguiram normalmente.”

Conforme a docente, Liz trouxe para a sala coisas que não tinham conexão com o programa da disciplina e tentou interferir na condução da aula. “Ela queria trazer autores que não coincidiam com a proposição da disciplina. Ficou claro que ela não tinha lido o texto, então ela se exaltou. Como ela não estava me deixando seguir com a aula, eu tive de sair para chamar um servidor e pedi apoio a ele para convidá-la a sair da sala, já que estava interferindo a todo momento na aula”, disse.

Segundo a professora, o áudio da aula deixa claro que não houve qualquer ação racista ou transfóbica da parte dela como docente. Houve, acredita, excessos por parte da aluna. “Sei que ela entrou com um boletim de ocorrência contra mim, me acusando de coisas que não aconteceram, como o áudio comprova. Ainda estou vendo como serão encaminhadas as questões jurídicas. São coisas complexas e demandam algum tempo e ponderação para decidir como agir”, disse.

A Congregação da Faculdade de Comunicação disse em nota que a aluna recebeu acolhimento. “É importante ressaltar que repudiamos qualquer tipo de manifestação preconceituosa e discriminatória, bem como atitudes que ferem a liberdade de cátedra, sendo assegurado sempre o amplo direito de defesa, dentro dos contextos adequados. Repudiamos todo e qualquer julgamento prévio, ofensa ou agressão às partes sem apuração dos fatos. É princípio basilar garantir o contraditório em condições isonômicos”, afirmou.

Também em nota a UFBA disse que é reconhecida por seu empenho institucional em se tornar cada dia mais diversa e inclusiva. A universidade é a mais antiga do Brasil, fundada em 1808, por D. João VI, como Escola de Cirurgia da Bahia. “O atual perfil de nossa comunidade é o resultado de uma década e meia de ações afirmativas, que hoje norteiam a instituição. A aprovação de cotas para pessoas trans, em vagas supranumerárias, é uma das ações de inclusão celebradas recentemente pela Universidade.”

A nota destaca que qualquer forma de assédio é considerada, não apenas uma agressão aos vitimados, mas ao próprio espírito da universidade. “Esta instituição não compactua com a transfobia ou qualquer outra forma de discriminação. Tampouco será jamais conivente com processos de execução sumária e linchamento público de qualquer de seus membros – o que se configura na medida em que, de forma antidemocrática, lhes seja negado direito à ampla defesa e contraditório.”

Lembrou ainda que a apuração dos fatos “requerem uma temporalidade certamente maior que a das redes sociais e do noticiário, espaços nos quais versões se multiplicam de forma açodada e, tantas vezes, injustas, seja com indivíduos, seja com a instituição”.

Segundo a UFBA, em relação à acusação de transfobia supostamente ocorrida em uma aula da Facom, a estudante foi recebida no mesmo dia e também foi estabelecido diálogo com a docente. “A UFBA procederá à apuração parcimoniosa dos fatos e, verificada qualquer conduta inadequada ou irregular por parte de qualquer membro da comunidade universitária, a Administração Central não se furtará a tomar as medidas cabíveis previstas em seu regimento.”

Decisão do STF

No dia 21 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que atos ofensivos contra pessoas da comunidade LGBTI+ podem ser enquadrados como injúria racial. A decisão foi tomada no julgamento de recurso apresentado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) contra acórdão anterior. A transfobia é caracterizada por toda forma de discriminação ou violência específica contra pessoas trans, seja ela moral, verbal ou psicológica.

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