Análise - Um abraço de afogados?


Texto publicado originalmente no Estadão Noite

Por André Rehbein Sathler e Valdemir Pires
Atualização:

A expressão em inglês moral hazard, usualmente traduzida como risco moral, conceitua a situação em que uma pessoa, ou entidade, assume mais riscos do que seria o normal, porque outra pessoa, ou entidade, desavisada, compartilha o custo desses riscos. De certo modo, esse padrão foi vivenciado nas relações intergovernamentais brasileiras nas décadas de 1980 e 1990, com os entes subnacionais (Estados e municípios) assumindo dívidas crescentes, na convicção de que a União compartilharia os custos, em caso de insolvência.  A única forma de se romper com o risco moral é colocar um freio definitivo à prática que se busca coibir, e isso foi feito, no caso, com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e de normas mais técnicas e mais rígidas para se lidar com o endividamento de entes subnacionais.  A LRF criou um espaço institucional crível e se tornou a referência a ancorar as relações intergovernamentais, mitigando instabilidade intrínseca ao modelo federativo proposto pela Constituição de 1988. A nova institucionalidade reguladora do endividamento estadual teve como objetivo evitar que as dívidas estaduais assumissem proporções desmesuradas e continuassem a ser propagadoras de ondas de desequilíbrio financeiro para o sistema econômico como um todo. Com a LRF, vislumbrou-se a perspectiva de sustentabilidade intertemporal à política fiscal, via adoção de limites determinados. Negociações, como as atualmente em curso, fora do espaço institucional e contornando o arcabouço legal, são tentativas de acomodar interesses divergentes por meio justamente das relações intergovernamentais, com a União se ‘voluntariando’ para ser novamente a principal fonte de financiamento dos Estados. Em discussão, extraoficialmente, por exemplo, o possível apoio dos governadores à recriação da CPMF. Ademais, quando as negociações acontecem no espaço não institucional, baseiam-se em poder real e são opacas à população, contrariando o princípio da transparência. As próprias disparidades entre os diferentes Estados fazem com que um tratamento igual para unidades completamente desiguais atrele a qualquer negociação efeitos desbalanceados sobre os entes federados.  Ao apresentar o Plano, o Ministério da Fazenda afirma que “em 1999, o problema era de sustentabilidade. Atualmente, é fundamentalmente de fluxo”. A bem da verdade, há que se considerar que os Estados precisariam passar por reestruturações fiscais e financeiras profundas, muito mais complexas do que as contrapartidas apresentadas como exigências pela União, as quais já serão difíceis de serem aceitas pelo Congresso. O Plano acena, por exemplo, com a possibilidade de a União aceitar ativos pertencentes aos Estados (empresas públicas e participações acionárias majoritárias), para futura alienação. Não cita o fato de que há um limite à reestruturação via patrimonial, tendo em vista medidas que foram tomadas once for all (ativos já foram vendidos, empresas privatizadas nos ajustes pré-LRF). Finalmente, vale destacar que a proposta não resolve definitivamente o problema. O endividamento estadual não deixa de ser uma forma de driblar a restrição orçamentária em tempos de recessão. Com isso, camufla-se a real capacidade de prestação de serviços públicos pelos Estados. Além disso, a dívida presente compromete a disponibilidade de recursos fiscais no futuro, envolvendo claramente um conflito intergeracional, agravado pela postergação pretendida (prazo de alongamento da dívida). Pelo lado das receitas, os Estados podem pouco para alavancar crescimento da economia. E o desempenho do PIB é fundamental para a trajetória de estabilização da dívida, inclusive porque a arrecadação do principal imposto estadual, o ICMS, é fortemente vinculada ao desempenho econômico, bem como as transferências obrigatórias. Some-se a isso o fato de que os Estados são pressionados por despesas que crescem vegetativamente, com o aumento populacional.  Portanto, na forma proposta, o socorro aos Estados pode ser apenas uma gota no oceano, o mesmo em que morrerão afogados a União e os Estados. A alternativa (simplesmente manter como está para ver como os Estados ficam), entretanto, não parece financeiramente viável, nem politicamente sustentável.

* André Rehbein Sathler, economista, é Doutor em Filosofia e Coordenador do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados 

** Valdemir Pires, economista, professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Unesp

A expressão em inglês moral hazard, usualmente traduzida como risco moral, conceitua a situação em que uma pessoa, ou entidade, assume mais riscos do que seria o normal, porque outra pessoa, ou entidade, desavisada, compartilha o custo desses riscos. De certo modo, esse padrão foi vivenciado nas relações intergovernamentais brasileiras nas décadas de 1980 e 1990, com os entes subnacionais (Estados e municípios) assumindo dívidas crescentes, na convicção de que a União compartilharia os custos, em caso de insolvência.  A única forma de se romper com o risco moral é colocar um freio definitivo à prática que se busca coibir, e isso foi feito, no caso, com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e de normas mais técnicas e mais rígidas para se lidar com o endividamento de entes subnacionais.  A LRF criou um espaço institucional crível e se tornou a referência a ancorar as relações intergovernamentais, mitigando instabilidade intrínseca ao modelo federativo proposto pela Constituição de 1988. A nova institucionalidade reguladora do endividamento estadual teve como objetivo evitar que as dívidas estaduais assumissem proporções desmesuradas e continuassem a ser propagadoras de ondas de desequilíbrio financeiro para o sistema econômico como um todo. Com a LRF, vislumbrou-se a perspectiva de sustentabilidade intertemporal à política fiscal, via adoção de limites determinados. Negociações, como as atualmente em curso, fora do espaço institucional e contornando o arcabouço legal, são tentativas de acomodar interesses divergentes por meio justamente das relações intergovernamentais, com a União se ‘voluntariando’ para ser novamente a principal fonte de financiamento dos Estados. Em discussão, extraoficialmente, por exemplo, o possível apoio dos governadores à recriação da CPMF. Ademais, quando as negociações acontecem no espaço não institucional, baseiam-se em poder real e são opacas à população, contrariando o princípio da transparência. As próprias disparidades entre os diferentes Estados fazem com que um tratamento igual para unidades completamente desiguais atrele a qualquer negociação efeitos desbalanceados sobre os entes federados.  Ao apresentar o Plano, o Ministério da Fazenda afirma que “em 1999, o problema era de sustentabilidade. Atualmente, é fundamentalmente de fluxo”. A bem da verdade, há que se considerar que os Estados precisariam passar por reestruturações fiscais e financeiras profundas, muito mais complexas do que as contrapartidas apresentadas como exigências pela União, as quais já serão difíceis de serem aceitas pelo Congresso. O Plano acena, por exemplo, com a possibilidade de a União aceitar ativos pertencentes aos Estados (empresas públicas e participações acionárias majoritárias), para futura alienação. Não cita o fato de que há um limite à reestruturação via patrimonial, tendo em vista medidas que foram tomadas once for all (ativos já foram vendidos, empresas privatizadas nos ajustes pré-LRF). Finalmente, vale destacar que a proposta não resolve definitivamente o problema. O endividamento estadual não deixa de ser uma forma de driblar a restrição orçamentária em tempos de recessão. Com isso, camufla-se a real capacidade de prestação de serviços públicos pelos Estados. Além disso, a dívida presente compromete a disponibilidade de recursos fiscais no futuro, envolvendo claramente um conflito intergeracional, agravado pela postergação pretendida (prazo de alongamento da dívida). Pelo lado das receitas, os Estados podem pouco para alavancar crescimento da economia. E o desempenho do PIB é fundamental para a trajetória de estabilização da dívida, inclusive porque a arrecadação do principal imposto estadual, o ICMS, é fortemente vinculada ao desempenho econômico, bem como as transferências obrigatórias. Some-se a isso o fato de que os Estados são pressionados por despesas que crescem vegetativamente, com o aumento populacional.  Portanto, na forma proposta, o socorro aos Estados pode ser apenas uma gota no oceano, o mesmo em que morrerão afogados a União e os Estados. A alternativa (simplesmente manter como está para ver como os Estados ficam), entretanto, não parece financeiramente viável, nem politicamente sustentável.

* André Rehbein Sathler, economista, é Doutor em Filosofia e Coordenador do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados 

** Valdemir Pires, economista, professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Unesp

A expressão em inglês moral hazard, usualmente traduzida como risco moral, conceitua a situação em que uma pessoa, ou entidade, assume mais riscos do que seria o normal, porque outra pessoa, ou entidade, desavisada, compartilha o custo desses riscos. De certo modo, esse padrão foi vivenciado nas relações intergovernamentais brasileiras nas décadas de 1980 e 1990, com os entes subnacionais (Estados e municípios) assumindo dívidas crescentes, na convicção de que a União compartilharia os custos, em caso de insolvência.  A única forma de se romper com o risco moral é colocar um freio definitivo à prática que se busca coibir, e isso foi feito, no caso, com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e de normas mais técnicas e mais rígidas para se lidar com o endividamento de entes subnacionais.  A LRF criou um espaço institucional crível e se tornou a referência a ancorar as relações intergovernamentais, mitigando instabilidade intrínseca ao modelo federativo proposto pela Constituição de 1988. A nova institucionalidade reguladora do endividamento estadual teve como objetivo evitar que as dívidas estaduais assumissem proporções desmesuradas e continuassem a ser propagadoras de ondas de desequilíbrio financeiro para o sistema econômico como um todo. Com a LRF, vislumbrou-se a perspectiva de sustentabilidade intertemporal à política fiscal, via adoção de limites determinados. Negociações, como as atualmente em curso, fora do espaço institucional e contornando o arcabouço legal, são tentativas de acomodar interesses divergentes por meio justamente das relações intergovernamentais, com a União se ‘voluntariando’ para ser novamente a principal fonte de financiamento dos Estados. Em discussão, extraoficialmente, por exemplo, o possível apoio dos governadores à recriação da CPMF. Ademais, quando as negociações acontecem no espaço não institucional, baseiam-se em poder real e são opacas à população, contrariando o princípio da transparência. As próprias disparidades entre os diferentes Estados fazem com que um tratamento igual para unidades completamente desiguais atrele a qualquer negociação efeitos desbalanceados sobre os entes federados.  Ao apresentar o Plano, o Ministério da Fazenda afirma que “em 1999, o problema era de sustentabilidade. Atualmente, é fundamentalmente de fluxo”. A bem da verdade, há que se considerar que os Estados precisariam passar por reestruturações fiscais e financeiras profundas, muito mais complexas do que as contrapartidas apresentadas como exigências pela União, as quais já serão difíceis de serem aceitas pelo Congresso. O Plano acena, por exemplo, com a possibilidade de a União aceitar ativos pertencentes aos Estados (empresas públicas e participações acionárias majoritárias), para futura alienação. Não cita o fato de que há um limite à reestruturação via patrimonial, tendo em vista medidas que foram tomadas once for all (ativos já foram vendidos, empresas privatizadas nos ajustes pré-LRF). Finalmente, vale destacar que a proposta não resolve definitivamente o problema. O endividamento estadual não deixa de ser uma forma de driblar a restrição orçamentária em tempos de recessão. Com isso, camufla-se a real capacidade de prestação de serviços públicos pelos Estados. Além disso, a dívida presente compromete a disponibilidade de recursos fiscais no futuro, envolvendo claramente um conflito intergeracional, agravado pela postergação pretendida (prazo de alongamento da dívida). Pelo lado das receitas, os Estados podem pouco para alavancar crescimento da economia. E o desempenho do PIB é fundamental para a trajetória de estabilização da dívida, inclusive porque a arrecadação do principal imposto estadual, o ICMS, é fortemente vinculada ao desempenho econômico, bem como as transferências obrigatórias. Some-se a isso o fato de que os Estados são pressionados por despesas que crescem vegetativamente, com o aumento populacional.  Portanto, na forma proposta, o socorro aos Estados pode ser apenas uma gota no oceano, o mesmo em que morrerão afogados a União e os Estados. A alternativa (simplesmente manter como está para ver como os Estados ficam), entretanto, não parece financeiramente viável, nem politicamente sustentável.

* André Rehbein Sathler, economista, é Doutor em Filosofia e Coordenador do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados 

** Valdemir Pires, economista, professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Unesp

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