Olhando pro teto enquanto ainda tento me adaptar à mudança de fuso horário minha mente viaja e pára no filme Incêndios, do diretor Denis Villeuneuve. Apesar da película em questão se passar no Líbano, eu estou em um modesto quarto de hotel à beira de uma estrada na pequena cidade de Radymno, fronteira da Polônia com a Ucrânia.
Foi por aqui que passaram mais de 6 milhões de refugiados desta guerra iniciada por Putin há pouco mais de um ano. Como os homens entre 18 e 60 anos precisam ficar no país para lutar, a maior parte das pessoas que deixam o país é formada por mulheres e crianças.
E é aí que a história de Incêndios e a realidade da guerra na Ucrânia se cruzam da maneira mais trágica possível.
Para além dos tiros e bombas, o filme de 2011 revela de maneira chocante uma das consequências tão trágicas quanto insuspeitas de uma guerra. Foi com uma dessas situações, que se perdem no noticiário em meio às declarações presidenciais, negociações de armamento e conquistas de território, que me deparei nos primeiros dias de minha estadia aqui próximo à fronteira com a Ucrânia.
Na verdade, há uma combinação de fatores que resume essa que é uma das consequências mais aterradoras desse conflito. Se o fato de famílias serem partidas ao meio e mulheres serem obrigadas a deixar seu país, muitas vezes carregando crianças de colo, não fosse trágico o suficiente, uma enviada da ONU especializada em violência sexual apresenta uma constatação horripilante.
Segundo Pramilla Pratten, já seriam mais de uma centena de casos de estupro registrados desde o início da invasão. Ela ainda afirmou que o número de ocorrências não deve corresponder a realidade, e da pior maneira possível: esse é um tipo de crime com alta taxa de subnotificação, uma vez que ainda envolve os estigmas de vergonha e culpa entre as vítimas.
O Tribunal Criminal Internacional já abriu investigação sobre o caso, mas o drama não termina aí. Muitas das mulheres que são vítimas dessa violência e que deixam a Ucrânia para encontrar refúgio na Polônia saem de um país onde as leis de acesso ao aborto e medidas contraceptivas são algumas das mais liberais da Europa e entram em outro país com um governo ultraconservador onde o acesso a cuidados de saúde reprodutiva é um dos mais restritivos de toda a Europa.
A Polônia, inclusive, é conhecida hoje por caminhar na contramão do mundo em termos de acesso ao aborto. O país é um dos únicos Estados membros da União Europeia que não legalizou a prática. Apesar das leis atuais ainda permitirem o aborto em gravidez de até 12 semanas proveniente de um crime, a realidade é que na prática isso pouco ocorre, um vez que há muitas exigências requeridas. Resultado: alguns grupos clandestinos de médicos estariam sendo formados para garantir a essas mulheres o mínimo de apoio nessas situações. ONGs locais afirmam que a procura por ajuda é cada vez maior. Como falei anteriormente, estou na Polônia acompanhando as ações da VVolunteer, agência especializada em preparar grupos de voluntários para atuar em cenários de crises humanitárias no Brasil e no mundo. Por aqui, são 11 mulheres de diferentes perfis e regiões do Brasil.
E eu sou o único homem.
Seriam as mulheres mais empáticas que os homens no mundo todo? Seria um reflexo ao fato do drama por aqui afetar ainda mais diretamente a elas (como acontece com vulneráveis em quase todo cenário de instabilidade ou opressão)?
De qualquer maneira, é apropriado indicar, e perceber, que as mulheres, maiores vítimas em situações como essa, são também aquelas que mais se propõem a ajudar. Observando-as em campo, isso fica muito claro. No olhar carinhoso para uma mãe, no gesto de cuidado com os idosos ou ao disfarçar o aperto no coração durante o trato com as crianças. É o olhar feminino tão necessário na ajuda humanitária. Vítimas do problema, agentes da solução. Como diria a escritora Isabel Allende: “Por um mundo mais feminino.”