Fotografia, fotojornalismo e outras histórias

O genocídio em Ruanda completa 20 anos


Por Armando Favaro
Ruanda, 19/6/1994. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

No prazo de 100 dias, entre abril e junho de 1994, um número calculado entre 800 mil  e 1 milhão de pessoas morreram assassinadas em Ruanda. O genocídio, termo adotado depois de várias discussões em comitês da ONU, foi um dos capítulos mais sangrentos da segunda metade do século XX e afetou quase um terço da população do pequeno país centro africano.

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O massacre foi perpetrado por extremistas hutus contra tutsis e hutus moderados. O estopim foi a morte do presidente Juvenal Habyarimana, que teve seu avião alvejado, num crime até hoje não resolvido. Sem o presidente, os radicais do governo se apropriaram da administração e eliminaram opositores. A extinção tutsi virou política de Estado, campanha promovida com incentivos e ameaças e enfatizada em discursos na rádio e na TV

Apurou-se que o genocídio foi financiado, pelo menos parcialmente, com o dinheiro apropriado de programas internacionais de ajuda, tais como os financiados pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Estima-se que 134 milhões de dólares foram gastos na preparação do genocídio em Ruanda -- uma das nações mais pobres da terra -- sendo que 4,6 milhões de dólares foram gastos somente em facões, enxadas, machados, lâminas e martelos.

Durante o episódio, matança era conhecida como 'trabalho' e as armas descritas como 'ferramentas', diz um relatório publicado pela ONG Human Rights Watch sobre o massacre, onde quase todas as mulheres foram estupradas.

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22/5/1994 - Corpos de civis ruandeses em uma estrada na capital Kigali. Foto: REUTERS
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Ernestine Mukakarange*, nascida em Mwogo, na região de Bugesera, em Ruada:

"Da minha família, daqueles com quem eu cresci eu sou a única sobrevivente. Vi meus irmãos morrerem na minha frente. Meus irmãos morreram e eu também, porque fiquei deficiente. Mataram meus dois irmãos, depois cortaram-lhes as cabeças e os jogaram no rio. Eu fui atacada em seguida. Eles me bateram muito, mas antes disso me violentaram, ainda tenho as marcas. Depois do estupro quiseram me envenenar, mas alguns não deixaram e começaram a bater em mim. Foi assim que fiquei deficiente, pisaram no meu ventre e nos meus seios dizendo 'vamos ver como os tutsis são quando dão à luz'. Isso deixou em mim verdadeiras sequelas. Me bateram com martelo e deram pauladas na minha cabeça. No final me amarraram e me jogaram no rio."

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22/4/1994 - Dezenas de corpos são colocados no chão na cidade de Kibeho, em Ruanda, antes de serem enterrados em uma vala comum. Foto: REUTERS
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Alice Mukarurinda*, casada e mãe de cinco filhos. Vive em Nyamata:

"No começo da guerra, com a morte do presidente, eles destruíram nossa casa e nos perseguiram. Nessa época, fazia um ano que eu estava casada, ou seja, eu era uma jovem esposa e só tinha um filho que estava com nove meses. Nós fugimos, meus pais e os pais do meu marido. Fomos para a igreja em Natrama, pois achávamos que poderíamos nos refugiar lá. Dois dias depois os milicianos apareceram. A igreja estava lotada de refugiados, havia muitas pessoas. Logo chegaram vários ônibus cheios de militares e foram para a igreja. Eu estava com meu filho e mais algumas pessoas fora da igreja. Eles encharcaram colchões com gasolina, atearam fogo e jogaram dentro da igreja lotada. Eu estava fora e fugi para uma plantação de feijão. Toda a minha família morreu queimada dentro da igreja. Depois de um tempo eu voltei e vi muitas pessoas mortas e algumas agonizando. Tinha o pântano e o rio Akanyaru, um rio muito profundo, mas fomos obrigados a atravessá-lo para fugir. Eu corria com o meu filho nas costas. Foi no dia 29 de abril que eles me mutilaram. Chegaram, eram muitos, todos armados de facões. Me viram escondida no mato e um deles me bateu com um pau na minha cabeça, eu caí e continuaram batendo. Me movimentei e peguei meu filho nos braços e fechei os olhos. Eles eram muitos. Me bateram no rosto e enfiaram uma lança no meu ombro. Um deles pegou o meu filho e atirou-o ao ar e cortou-o ao meio. Caiu metade de um lado e metade do outro. Quando vi aquilo me desesperei e foi aí que cortaram meu braço. Desmaiei e acordei com uma idosa pedindo para eu ter força. Eu estava nua, havia sido violentada. A idosa pegou uma tanga, enrolou meu filho e disse: 'vamos sair daqui, vamos encontrar alguém para enterrar a criança.'"

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26/3/2014 - Alice Mukarurinda e Emmanuel Ndayisaba na cidade de Nyamata. Ela perdeu a família e um braço. Ele matou dezenas de pessoas. Apesar de virem de lados opostos no passado, hoje são amigos. Foto: Ben Curtis/AP

 

Edison Habimana*, agricultor:

"Em 1994, eu matei mais de 80 pessoas. Digamos entre 90 e 100. Não se sabe onde vão os sentimentos, eles nos abandonam quando matamos. O amor e a alegria saíram do meu corpo naquele momento. Foi assim o genocídio. Quando matávamos, achávamos que ia ser bom para o nosso futuro. A gente matava uma pessoa, depois outra e assim chegava fácil a dez, depois 20, depois 40. Matamos porque éramos jovens e o governo disse 'matem essas pessoas e vocês vão ficar com os bens delas. Nós lhes daremos terras, roças, as casas delas e assim vocês vão ficar bem'. É difícil a gente ter vergonha. É preciso ficar calmo. Você não sabe por onde começar, vai aos poucos, ganha coragem."

 

20/5/1994 - Refugiados tutsis tentam se proteger do frio em um acampamento no sul de Ruanda.       Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

23/6/1994 - Criança tenta mamar em sua mãe que agoniza ao lado de dezenas de corpos que serão enterrados numa vala comum. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

6/4/2014 - Crianças ruandesas participam de um culto de domingo na igreja Saint-Famille, palco de muitas mortes durante o genocídio de 1994, na capital Kigali, em Ruanda. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto:  Noor Khamis/REUTERS

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

05/04/2014 - Alphonsine Mukamfizi, 42 anos, sobrevivente do genocídio. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Crânios humanos em exposição no Genocide Memorial Centre Kigali. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

https://www.youtube.com/watch?v=2f0ar-WgyIs

 

 

Ruanda, 19/6/1994. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

No prazo de 100 dias, entre abril e junho de 1994, um número calculado entre 800 mil  e 1 milhão de pessoas morreram assassinadas em Ruanda. O genocídio, termo adotado depois de várias discussões em comitês da ONU, foi um dos capítulos mais sangrentos da segunda metade do século XX e afetou quase um terço da população do pequeno país centro africano.

O massacre foi perpetrado por extremistas hutus contra tutsis e hutus moderados. O estopim foi a morte do presidente Juvenal Habyarimana, que teve seu avião alvejado, num crime até hoje não resolvido. Sem o presidente, os radicais do governo se apropriaram da administração e eliminaram opositores. A extinção tutsi virou política de Estado, campanha promovida com incentivos e ameaças e enfatizada em discursos na rádio e na TV

Apurou-se que o genocídio foi financiado, pelo menos parcialmente, com o dinheiro apropriado de programas internacionais de ajuda, tais como os financiados pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Estima-se que 134 milhões de dólares foram gastos na preparação do genocídio em Ruanda -- uma das nações mais pobres da terra -- sendo que 4,6 milhões de dólares foram gastos somente em facões, enxadas, machados, lâminas e martelos.

Durante o episódio, matança era conhecida como 'trabalho' e as armas descritas como 'ferramentas', diz um relatório publicado pela ONG Human Rights Watch sobre o massacre, onde quase todas as mulheres foram estupradas.

 

22/5/1994 - Corpos de civis ruandeses em uma estrada na capital Kigali. Foto: REUTERS

 

Ernestine Mukakarange*, nascida em Mwogo, na região de Bugesera, em Ruada:

"Da minha família, daqueles com quem eu cresci eu sou a única sobrevivente. Vi meus irmãos morrerem na minha frente. Meus irmãos morreram e eu também, porque fiquei deficiente. Mataram meus dois irmãos, depois cortaram-lhes as cabeças e os jogaram no rio. Eu fui atacada em seguida. Eles me bateram muito, mas antes disso me violentaram, ainda tenho as marcas. Depois do estupro quiseram me envenenar, mas alguns não deixaram e começaram a bater em mim. Foi assim que fiquei deficiente, pisaram no meu ventre e nos meus seios dizendo 'vamos ver como os tutsis são quando dão à luz'. Isso deixou em mim verdadeiras sequelas. Me bateram com martelo e deram pauladas na minha cabeça. No final me amarraram e me jogaram no rio."

 

22/4/1994 - Dezenas de corpos são colocados no chão na cidade de Kibeho, em Ruanda, antes de serem enterrados em uma vala comum. Foto: REUTERS

 

Alice Mukarurinda*, casada e mãe de cinco filhos. Vive em Nyamata:

"No começo da guerra, com a morte do presidente, eles destruíram nossa casa e nos perseguiram. Nessa época, fazia um ano que eu estava casada, ou seja, eu era uma jovem esposa e só tinha um filho que estava com nove meses. Nós fugimos, meus pais e os pais do meu marido. Fomos para a igreja em Natrama, pois achávamos que poderíamos nos refugiar lá. Dois dias depois os milicianos apareceram. A igreja estava lotada de refugiados, havia muitas pessoas. Logo chegaram vários ônibus cheios de militares e foram para a igreja. Eu estava com meu filho e mais algumas pessoas fora da igreja. Eles encharcaram colchões com gasolina, atearam fogo e jogaram dentro da igreja lotada. Eu estava fora e fugi para uma plantação de feijão. Toda a minha família morreu queimada dentro da igreja. Depois de um tempo eu voltei e vi muitas pessoas mortas e algumas agonizando. Tinha o pântano e o rio Akanyaru, um rio muito profundo, mas fomos obrigados a atravessá-lo para fugir. Eu corria com o meu filho nas costas. Foi no dia 29 de abril que eles me mutilaram. Chegaram, eram muitos, todos armados de facões. Me viram escondida no mato e um deles me bateu com um pau na minha cabeça, eu caí e continuaram batendo. Me movimentei e peguei meu filho nos braços e fechei os olhos. Eles eram muitos. Me bateram no rosto e enfiaram uma lança no meu ombro. Um deles pegou o meu filho e atirou-o ao ar e cortou-o ao meio. Caiu metade de um lado e metade do outro. Quando vi aquilo me desesperei e foi aí que cortaram meu braço. Desmaiei e acordei com uma idosa pedindo para eu ter força. Eu estava nua, havia sido violentada. A idosa pegou uma tanga, enrolou meu filho e disse: 'vamos sair daqui, vamos encontrar alguém para enterrar a criança.'"

 

26/3/2014 - Alice Mukarurinda e Emmanuel Ndayisaba na cidade de Nyamata. Ela perdeu a família e um braço. Ele matou dezenas de pessoas. Apesar de virem de lados opostos no passado, hoje são amigos. Foto: Ben Curtis/AP

 

Edison Habimana*, agricultor:

"Em 1994, eu matei mais de 80 pessoas. Digamos entre 90 e 100. Não se sabe onde vão os sentimentos, eles nos abandonam quando matamos. O amor e a alegria saíram do meu corpo naquele momento. Foi assim o genocídio. Quando matávamos, achávamos que ia ser bom para o nosso futuro. A gente matava uma pessoa, depois outra e assim chegava fácil a dez, depois 20, depois 40. Matamos porque éramos jovens e o governo disse 'matem essas pessoas e vocês vão ficar com os bens delas. Nós lhes daremos terras, roças, as casas delas e assim vocês vão ficar bem'. É difícil a gente ter vergonha. É preciso ficar calmo. Você não sabe por onde começar, vai aos poucos, ganha coragem."

 

20/5/1994 - Refugiados tutsis tentam se proteger do frio em um acampamento no sul de Ruanda.       Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

23/6/1994 - Criança tenta mamar em sua mãe que agoniza ao lado de dezenas de corpos que serão enterrados numa vala comum. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

6/4/2014 - Crianças ruandesas participam de um culto de domingo na igreja Saint-Famille, palco de muitas mortes durante o genocídio de 1994, na capital Kigali, em Ruanda. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto:  Noor Khamis/REUTERS

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

05/04/2014 - Alphonsine Mukamfizi, 42 anos, sobrevivente do genocídio. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Crânios humanos em exposição no Genocide Memorial Centre Kigali. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

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Ruanda, 19/6/1994. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

No prazo de 100 dias, entre abril e junho de 1994, um número calculado entre 800 mil  e 1 milhão de pessoas morreram assassinadas em Ruanda. O genocídio, termo adotado depois de várias discussões em comitês da ONU, foi um dos capítulos mais sangrentos da segunda metade do século XX e afetou quase um terço da população do pequeno país centro africano.

O massacre foi perpetrado por extremistas hutus contra tutsis e hutus moderados. O estopim foi a morte do presidente Juvenal Habyarimana, que teve seu avião alvejado, num crime até hoje não resolvido. Sem o presidente, os radicais do governo se apropriaram da administração e eliminaram opositores. A extinção tutsi virou política de Estado, campanha promovida com incentivos e ameaças e enfatizada em discursos na rádio e na TV

Apurou-se que o genocídio foi financiado, pelo menos parcialmente, com o dinheiro apropriado de programas internacionais de ajuda, tais como os financiados pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Estima-se que 134 milhões de dólares foram gastos na preparação do genocídio em Ruanda -- uma das nações mais pobres da terra -- sendo que 4,6 milhões de dólares foram gastos somente em facões, enxadas, machados, lâminas e martelos.

Durante o episódio, matança era conhecida como 'trabalho' e as armas descritas como 'ferramentas', diz um relatório publicado pela ONG Human Rights Watch sobre o massacre, onde quase todas as mulheres foram estupradas.

 

22/5/1994 - Corpos de civis ruandeses em uma estrada na capital Kigali. Foto: REUTERS

 

Ernestine Mukakarange*, nascida em Mwogo, na região de Bugesera, em Ruada:

"Da minha família, daqueles com quem eu cresci eu sou a única sobrevivente. Vi meus irmãos morrerem na minha frente. Meus irmãos morreram e eu também, porque fiquei deficiente. Mataram meus dois irmãos, depois cortaram-lhes as cabeças e os jogaram no rio. Eu fui atacada em seguida. Eles me bateram muito, mas antes disso me violentaram, ainda tenho as marcas. Depois do estupro quiseram me envenenar, mas alguns não deixaram e começaram a bater em mim. Foi assim que fiquei deficiente, pisaram no meu ventre e nos meus seios dizendo 'vamos ver como os tutsis são quando dão à luz'. Isso deixou em mim verdadeiras sequelas. Me bateram com martelo e deram pauladas na minha cabeça. No final me amarraram e me jogaram no rio."

 

22/4/1994 - Dezenas de corpos são colocados no chão na cidade de Kibeho, em Ruanda, antes de serem enterrados em uma vala comum. Foto: REUTERS

 

Alice Mukarurinda*, casada e mãe de cinco filhos. Vive em Nyamata:

"No começo da guerra, com a morte do presidente, eles destruíram nossa casa e nos perseguiram. Nessa época, fazia um ano que eu estava casada, ou seja, eu era uma jovem esposa e só tinha um filho que estava com nove meses. Nós fugimos, meus pais e os pais do meu marido. Fomos para a igreja em Natrama, pois achávamos que poderíamos nos refugiar lá. Dois dias depois os milicianos apareceram. A igreja estava lotada de refugiados, havia muitas pessoas. Logo chegaram vários ônibus cheios de militares e foram para a igreja. Eu estava com meu filho e mais algumas pessoas fora da igreja. Eles encharcaram colchões com gasolina, atearam fogo e jogaram dentro da igreja lotada. Eu estava fora e fugi para uma plantação de feijão. Toda a minha família morreu queimada dentro da igreja. Depois de um tempo eu voltei e vi muitas pessoas mortas e algumas agonizando. Tinha o pântano e o rio Akanyaru, um rio muito profundo, mas fomos obrigados a atravessá-lo para fugir. Eu corria com o meu filho nas costas. Foi no dia 29 de abril que eles me mutilaram. Chegaram, eram muitos, todos armados de facões. Me viram escondida no mato e um deles me bateu com um pau na minha cabeça, eu caí e continuaram batendo. Me movimentei e peguei meu filho nos braços e fechei os olhos. Eles eram muitos. Me bateram no rosto e enfiaram uma lança no meu ombro. Um deles pegou o meu filho e atirou-o ao ar e cortou-o ao meio. Caiu metade de um lado e metade do outro. Quando vi aquilo me desesperei e foi aí que cortaram meu braço. Desmaiei e acordei com uma idosa pedindo para eu ter força. Eu estava nua, havia sido violentada. A idosa pegou uma tanga, enrolou meu filho e disse: 'vamos sair daqui, vamos encontrar alguém para enterrar a criança.'"

 

26/3/2014 - Alice Mukarurinda e Emmanuel Ndayisaba na cidade de Nyamata. Ela perdeu a família e um braço. Ele matou dezenas de pessoas. Apesar de virem de lados opostos no passado, hoje são amigos. Foto: Ben Curtis/AP

 

Edison Habimana*, agricultor:

"Em 1994, eu matei mais de 80 pessoas. Digamos entre 90 e 100. Não se sabe onde vão os sentimentos, eles nos abandonam quando matamos. O amor e a alegria saíram do meu corpo naquele momento. Foi assim o genocídio. Quando matávamos, achávamos que ia ser bom para o nosso futuro. A gente matava uma pessoa, depois outra e assim chegava fácil a dez, depois 20, depois 40. Matamos porque éramos jovens e o governo disse 'matem essas pessoas e vocês vão ficar com os bens delas. Nós lhes daremos terras, roças, as casas delas e assim vocês vão ficar bem'. É difícil a gente ter vergonha. É preciso ficar calmo. Você não sabe por onde começar, vai aos poucos, ganha coragem."

 

20/5/1994 - Refugiados tutsis tentam se proteger do frio em um acampamento no sul de Ruanda.       Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

23/6/1994 - Criança tenta mamar em sua mãe que agoniza ao lado de dezenas de corpos que serão enterrados numa vala comum. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

6/4/2014 - Crianças ruandesas participam de um culto de domingo na igreja Saint-Famille, palco de muitas mortes durante o genocídio de 1994, na capital Kigali, em Ruanda. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto:  Noor Khamis/REUTERS

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

05/04/2014 - Alphonsine Mukamfizi, 42 anos, sobrevivente do genocídio. Foto: Ben Curtis/AP

 

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Ruanda, 19/6/1994. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

No prazo de 100 dias, entre abril e junho de 1994, um número calculado entre 800 mil  e 1 milhão de pessoas morreram assassinadas em Ruanda. O genocídio, termo adotado depois de várias discussões em comitês da ONU, foi um dos capítulos mais sangrentos da segunda metade do século XX e afetou quase um terço da população do pequeno país centro africano.

O massacre foi perpetrado por extremistas hutus contra tutsis e hutus moderados. O estopim foi a morte do presidente Juvenal Habyarimana, que teve seu avião alvejado, num crime até hoje não resolvido. Sem o presidente, os radicais do governo se apropriaram da administração e eliminaram opositores. A extinção tutsi virou política de Estado, campanha promovida com incentivos e ameaças e enfatizada em discursos na rádio e na TV

Apurou-se que o genocídio foi financiado, pelo menos parcialmente, com o dinheiro apropriado de programas internacionais de ajuda, tais como os financiados pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Estima-se que 134 milhões de dólares foram gastos na preparação do genocídio em Ruanda -- uma das nações mais pobres da terra -- sendo que 4,6 milhões de dólares foram gastos somente em facões, enxadas, machados, lâminas e martelos.

Durante o episódio, matança era conhecida como 'trabalho' e as armas descritas como 'ferramentas', diz um relatório publicado pela ONG Human Rights Watch sobre o massacre, onde quase todas as mulheres foram estupradas.

 

22/5/1994 - Corpos de civis ruandeses em uma estrada na capital Kigali. Foto: REUTERS

 

Ernestine Mukakarange*, nascida em Mwogo, na região de Bugesera, em Ruada:

"Da minha família, daqueles com quem eu cresci eu sou a única sobrevivente. Vi meus irmãos morrerem na minha frente. Meus irmãos morreram e eu também, porque fiquei deficiente. Mataram meus dois irmãos, depois cortaram-lhes as cabeças e os jogaram no rio. Eu fui atacada em seguida. Eles me bateram muito, mas antes disso me violentaram, ainda tenho as marcas. Depois do estupro quiseram me envenenar, mas alguns não deixaram e começaram a bater em mim. Foi assim que fiquei deficiente, pisaram no meu ventre e nos meus seios dizendo 'vamos ver como os tutsis são quando dão à luz'. Isso deixou em mim verdadeiras sequelas. Me bateram com martelo e deram pauladas na minha cabeça. No final me amarraram e me jogaram no rio."

 

22/4/1994 - Dezenas de corpos são colocados no chão na cidade de Kibeho, em Ruanda, antes de serem enterrados em uma vala comum. Foto: REUTERS

 

Alice Mukarurinda*, casada e mãe de cinco filhos. Vive em Nyamata:

"No começo da guerra, com a morte do presidente, eles destruíram nossa casa e nos perseguiram. Nessa época, fazia um ano que eu estava casada, ou seja, eu era uma jovem esposa e só tinha um filho que estava com nove meses. Nós fugimos, meus pais e os pais do meu marido. Fomos para a igreja em Natrama, pois achávamos que poderíamos nos refugiar lá. Dois dias depois os milicianos apareceram. A igreja estava lotada de refugiados, havia muitas pessoas. Logo chegaram vários ônibus cheios de militares e foram para a igreja. Eu estava com meu filho e mais algumas pessoas fora da igreja. Eles encharcaram colchões com gasolina, atearam fogo e jogaram dentro da igreja lotada. Eu estava fora e fugi para uma plantação de feijão. Toda a minha família morreu queimada dentro da igreja. Depois de um tempo eu voltei e vi muitas pessoas mortas e algumas agonizando. Tinha o pântano e o rio Akanyaru, um rio muito profundo, mas fomos obrigados a atravessá-lo para fugir. Eu corria com o meu filho nas costas. Foi no dia 29 de abril que eles me mutilaram. Chegaram, eram muitos, todos armados de facões. Me viram escondida no mato e um deles me bateu com um pau na minha cabeça, eu caí e continuaram batendo. Me movimentei e peguei meu filho nos braços e fechei os olhos. Eles eram muitos. Me bateram no rosto e enfiaram uma lança no meu ombro. Um deles pegou o meu filho e atirou-o ao ar e cortou-o ao meio. Caiu metade de um lado e metade do outro. Quando vi aquilo me desesperei e foi aí que cortaram meu braço. Desmaiei e acordei com uma idosa pedindo para eu ter força. Eu estava nua, havia sido violentada. A idosa pegou uma tanga, enrolou meu filho e disse: 'vamos sair daqui, vamos encontrar alguém para enterrar a criança.'"

 

26/3/2014 - Alice Mukarurinda e Emmanuel Ndayisaba na cidade de Nyamata. Ela perdeu a família e um braço. Ele matou dezenas de pessoas. Apesar de virem de lados opostos no passado, hoje são amigos. Foto: Ben Curtis/AP

 

Edison Habimana*, agricultor:

"Em 1994, eu matei mais de 80 pessoas. Digamos entre 90 e 100. Não se sabe onde vão os sentimentos, eles nos abandonam quando matamos. O amor e a alegria saíram do meu corpo naquele momento. Foi assim o genocídio. Quando matávamos, achávamos que ia ser bom para o nosso futuro. A gente matava uma pessoa, depois outra e assim chegava fácil a dez, depois 20, depois 40. Matamos porque éramos jovens e o governo disse 'matem essas pessoas e vocês vão ficar com os bens delas. Nós lhes daremos terras, roças, as casas delas e assim vocês vão ficar bem'. É difícil a gente ter vergonha. É preciso ficar calmo. Você não sabe por onde começar, vai aos poucos, ganha coragem."

 

20/5/1994 - Refugiados tutsis tentam se proteger do frio em um acampamento no sul de Ruanda.       Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

23/6/1994 - Criança tenta mamar em sua mãe que agoniza ao lado de dezenas de corpos que serão enterrados numa vala comum. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

6/4/2014 - Crianças ruandesas participam de um culto de domingo na igreja Saint-Famille, palco de muitas mortes durante o genocídio de 1994, na capital Kigali, em Ruanda. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto:  Noor Khamis/REUTERS

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

05/04/2014 - Alphonsine Mukamfizi, 42 anos, sobrevivente do genocídio. Foto: Ben Curtis/AP

 

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Ruanda, 19/6/1994. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

No prazo de 100 dias, entre abril e junho de 1994, um número calculado entre 800 mil  e 1 milhão de pessoas morreram assassinadas em Ruanda. O genocídio, termo adotado depois de várias discussões em comitês da ONU, foi um dos capítulos mais sangrentos da segunda metade do século XX e afetou quase um terço da população do pequeno país centro africano.

O massacre foi perpetrado por extremistas hutus contra tutsis e hutus moderados. O estopim foi a morte do presidente Juvenal Habyarimana, que teve seu avião alvejado, num crime até hoje não resolvido. Sem o presidente, os radicais do governo se apropriaram da administração e eliminaram opositores. A extinção tutsi virou política de Estado, campanha promovida com incentivos e ameaças e enfatizada em discursos na rádio e na TV

Apurou-se que o genocídio foi financiado, pelo menos parcialmente, com o dinheiro apropriado de programas internacionais de ajuda, tais como os financiados pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Estima-se que 134 milhões de dólares foram gastos na preparação do genocídio em Ruanda -- uma das nações mais pobres da terra -- sendo que 4,6 milhões de dólares foram gastos somente em facões, enxadas, machados, lâminas e martelos.

Durante o episódio, matança era conhecida como 'trabalho' e as armas descritas como 'ferramentas', diz um relatório publicado pela ONG Human Rights Watch sobre o massacre, onde quase todas as mulheres foram estupradas.

 

22/5/1994 - Corpos de civis ruandeses em uma estrada na capital Kigali. Foto: REUTERS

 

Ernestine Mukakarange*, nascida em Mwogo, na região de Bugesera, em Ruada:

"Da minha família, daqueles com quem eu cresci eu sou a única sobrevivente. Vi meus irmãos morrerem na minha frente. Meus irmãos morreram e eu também, porque fiquei deficiente. Mataram meus dois irmãos, depois cortaram-lhes as cabeças e os jogaram no rio. Eu fui atacada em seguida. Eles me bateram muito, mas antes disso me violentaram, ainda tenho as marcas. Depois do estupro quiseram me envenenar, mas alguns não deixaram e começaram a bater em mim. Foi assim que fiquei deficiente, pisaram no meu ventre e nos meus seios dizendo 'vamos ver como os tutsis são quando dão à luz'. Isso deixou em mim verdadeiras sequelas. Me bateram com martelo e deram pauladas na minha cabeça. No final me amarraram e me jogaram no rio."

 

22/4/1994 - Dezenas de corpos são colocados no chão na cidade de Kibeho, em Ruanda, antes de serem enterrados em uma vala comum. Foto: REUTERS

 

Alice Mukarurinda*, casada e mãe de cinco filhos. Vive em Nyamata:

"No começo da guerra, com a morte do presidente, eles destruíram nossa casa e nos perseguiram. Nessa época, fazia um ano que eu estava casada, ou seja, eu era uma jovem esposa e só tinha um filho que estava com nove meses. Nós fugimos, meus pais e os pais do meu marido. Fomos para a igreja em Natrama, pois achávamos que poderíamos nos refugiar lá. Dois dias depois os milicianos apareceram. A igreja estava lotada de refugiados, havia muitas pessoas. Logo chegaram vários ônibus cheios de militares e foram para a igreja. Eu estava com meu filho e mais algumas pessoas fora da igreja. Eles encharcaram colchões com gasolina, atearam fogo e jogaram dentro da igreja lotada. Eu estava fora e fugi para uma plantação de feijão. Toda a minha família morreu queimada dentro da igreja. Depois de um tempo eu voltei e vi muitas pessoas mortas e algumas agonizando. Tinha o pântano e o rio Akanyaru, um rio muito profundo, mas fomos obrigados a atravessá-lo para fugir. Eu corria com o meu filho nas costas. Foi no dia 29 de abril que eles me mutilaram. Chegaram, eram muitos, todos armados de facões. Me viram escondida no mato e um deles me bateu com um pau na minha cabeça, eu caí e continuaram batendo. Me movimentei e peguei meu filho nos braços e fechei os olhos. Eles eram muitos. Me bateram no rosto e enfiaram uma lança no meu ombro. Um deles pegou o meu filho e atirou-o ao ar e cortou-o ao meio. Caiu metade de um lado e metade do outro. Quando vi aquilo me desesperei e foi aí que cortaram meu braço. Desmaiei e acordei com uma idosa pedindo para eu ter força. Eu estava nua, havia sido violentada. A idosa pegou uma tanga, enrolou meu filho e disse: 'vamos sair daqui, vamos encontrar alguém para enterrar a criança.'"

 

26/3/2014 - Alice Mukarurinda e Emmanuel Ndayisaba na cidade de Nyamata. Ela perdeu a família e um braço. Ele matou dezenas de pessoas. Apesar de virem de lados opostos no passado, hoje são amigos. Foto: Ben Curtis/AP

 

Edison Habimana*, agricultor:

"Em 1994, eu matei mais de 80 pessoas. Digamos entre 90 e 100. Não se sabe onde vão os sentimentos, eles nos abandonam quando matamos. O amor e a alegria saíram do meu corpo naquele momento. Foi assim o genocídio. Quando matávamos, achávamos que ia ser bom para o nosso futuro. A gente matava uma pessoa, depois outra e assim chegava fácil a dez, depois 20, depois 40. Matamos porque éramos jovens e o governo disse 'matem essas pessoas e vocês vão ficar com os bens delas. Nós lhes daremos terras, roças, as casas delas e assim vocês vão ficar bem'. É difícil a gente ter vergonha. É preciso ficar calmo. Você não sabe por onde começar, vai aos poucos, ganha coragem."

 

20/5/1994 - Refugiados tutsis tentam se proteger do frio em um acampamento no sul de Ruanda.       Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

23/6/1994 - Criança tenta mamar em sua mãe que agoniza ao lado de dezenas de corpos que serão enterrados numa vala comum. Foto: Corinne Dufka/REUTERS

 

6/4/2014 - Crianças ruandesas participam de um culto de domingo na igreja Saint-Famille, palco de muitas mortes durante o genocídio de 1994, na capital Kigali, em Ruanda. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto:  Noor Khamis/REUTERS

 

5/4/2014 - Kigali Genocide Memorial Museum. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

05/04/2014 - Alphonsine Mukamfizi, 42 anos, sobrevivente do genocídio. Foto: Ben Curtis/AP

 

5/4/2014 - Crânios humanos em exposição no Genocide Memorial Centre Kigali. Foto: Noor Khamis/REUTERS

 

https://www.youtube.com/watch?v=2f0ar-WgyIs

 

 

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