‘Assim como outras mulheres, usei a culinária para enfrentar o racismo’; leia artigo


Escritora e ex-participante do programa Masterchef afirma que culinária é um dos caminhos para um mundo melhor

Por Margarida Arcebispo*
Atualização:

Ao receber o convite para escrever este artigo, um filme passou pela minha cabeça. Me sinto orgulhosa em fazer parte de um povo persistente e resistente, pessoas que historicamente usam artimanhas para resistir e existir.

Mamãe contava que vovô, aos nove anos de idade, viveu escravizado em uma fazenda em Minas Gerais. Ali, naquela fazenda, existia uma sala de aula onde os professores, por ordem do patrão, lecionavam apenas para os filhos de fazendeiros e de crianças pobres, porém brancas - estes no futuro poderiam ser “empregados de dentro da casa”, os que trabalhavam na casa grande, portanto nos serviços menos pesados.

Vovô, esperto como era, descobriu um buraquinho na parede da sala de aula e mesmo sabendo que poderia ser punido, se escondia e assistia às aulas por uma frestinha da porta - e foi assim que se alfabetizou!

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Para Margarida Arcebispo, a culinária é uma arte de combate ao racismo  Foto: Felipe Iruatã/Estadão

Não foi diferente com minha família, que por imposição do fazendeiro não tinha o direito de estudar. Se éramos alfabetizados é porque mamãe sabia ler e escrever, o que aprendeu com o vovô.

Aos 14 anos de idade, empregada doméstica e morando em São Paulo, frequentei pela primeira vez uma sala de aula, em um projeto de alfabetização de adultos que durou seis meses. Eu pude enfim receber meu diploma da quarta série. Feliz, com o diploma nas mãos, perguntei para a minha patroa: “agora que já tenho um diploma, o que mais tenho que fazer para ser uma professora?”.

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Ela me respondeu: “não adianta você querer ser uma professora, Margarida, as escolas não aceitam professores pretos! O que você tem de fazer é corte e costura, bordado ou ser uma cozinheira.”

Esta resposta teria me ofendido se nenhuma das sugestões fossem do meu agrado, afinal nós pessoas negras temos a liberdade de escolher qualquer profissão - inclusive temos o direito de não pensar só na remuneração, mas também na satisfação pessoal.

E a culinária sempre me fascinou. Lembro da mamãe cozinhando, eu subia em um banquinho observando e admirando tudo o que ela fazia. Eu poderia ter escolhido outra profissão, mas escolhi ser cozinheira e foi cozinhando que passei grande parte da minha vida.

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Cozinhando e escrevendo, cozinhando e também ensinando. Hoje eu crio conteúdo na internet, e, em 2022, lancei o livro Margarida Maria Arcebispo: Memórias e Receitas, que conta as histórias da minha vida e das receitas que aprendi a fazer trepada no banquinho observando a mamãe.

Eu sou muito mais do que disseram que eu podia ser e quero convidar você que está lendo para me conhecer mais de perto. Assim como outras mulheres, usei a culinária como arma para enfrentar o racismo e construir um mundo melhor para mim e para as pessoas que vieram depois de mim - esta é a minha herança!

* Margarida Arcebispo é cozinheira e autora da autobiografia Margarida Maria Arcebispo: Memórias e Receitas. Também foi participante do programa Masterchef, da Band

Ao receber o convite para escrever este artigo, um filme passou pela minha cabeça. Me sinto orgulhosa em fazer parte de um povo persistente e resistente, pessoas que historicamente usam artimanhas para resistir e existir.

Mamãe contava que vovô, aos nove anos de idade, viveu escravizado em uma fazenda em Minas Gerais. Ali, naquela fazenda, existia uma sala de aula onde os professores, por ordem do patrão, lecionavam apenas para os filhos de fazendeiros e de crianças pobres, porém brancas - estes no futuro poderiam ser “empregados de dentro da casa”, os que trabalhavam na casa grande, portanto nos serviços menos pesados.

Vovô, esperto como era, descobriu um buraquinho na parede da sala de aula e mesmo sabendo que poderia ser punido, se escondia e assistia às aulas por uma frestinha da porta - e foi assim que se alfabetizou!

Para Margarida Arcebispo, a culinária é uma arte de combate ao racismo  Foto: Felipe Iruatã/Estadão

Não foi diferente com minha família, que por imposição do fazendeiro não tinha o direito de estudar. Se éramos alfabetizados é porque mamãe sabia ler e escrever, o que aprendeu com o vovô.

Aos 14 anos de idade, empregada doméstica e morando em São Paulo, frequentei pela primeira vez uma sala de aula, em um projeto de alfabetização de adultos que durou seis meses. Eu pude enfim receber meu diploma da quarta série. Feliz, com o diploma nas mãos, perguntei para a minha patroa: “agora que já tenho um diploma, o que mais tenho que fazer para ser uma professora?”.

Ela me respondeu: “não adianta você querer ser uma professora, Margarida, as escolas não aceitam professores pretos! O que você tem de fazer é corte e costura, bordado ou ser uma cozinheira.”

Esta resposta teria me ofendido se nenhuma das sugestões fossem do meu agrado, afinal nós pessoas negras temos a liberdade de escolher qualquer profissão - inclusive temos o direito de não pensar só na remuneração, mas também na satisfação pessoal.

E a culinária sempre me fascinou. Lembro da mamãe cozinhando, eu subia em um banquinho observando e admirando tudo o que ela fazia. Eu poderia ter escolhido outra profissão, mas escolhi ser cozinheira e foi cozinhando que passei grande parte da minha vida.

Cozinhando e escrevendo, cozinhando e também ensinando. Hoje eu crio conteúdo na internet, e, em 2022, lancei o livro Margarida Maria Arcebispo: Memórias e Receitas, que conta as histórias da minha vida e das receitas que aprendi a fazer trepada no banquinho observando a mamãe.

Eu sou muito mais do que disseram que eu podia ser e quero convidar você que está lendo para me conhecer mais de perto. Assim como outras mulheres, usei a culinária como arma para enfrentar o racismo e construir um mundo melhor para mim e para as pessoas que vieram depois de mim - esta é a minha herança!

* Margarida Arcebispo é cozinheira e autora da autobiografia Margarida Maria Arcebispo: Memórias e Receitas. Também foi participante do programa Masterchef, da Band

Ao receber o convite para escrever este artigo, um filme passou pela minha cabeça. Me sinto orgulhosa em fazer parte de um povo persistente e resistente, pessoas que historicamente usam artimanhas para resistir e existir.

Mamãe contava que vovô, aos nove anos de idade, viveu escravizado em uma fazenda em Minas Gerais. Ali, naquela fazenda, existia uma sala de aula onde os professores, por ordem do patrão, lecionavam apenas para os filhos de fazendeiros e de crianças pobres, porém brancas - estes no futuro poderiam ser “empregados de dentro da casa”, os que trabalhavam na casa grande, portanto nos serviços menos pesados.

Vovô, esperto como era, descobriu um buraquinho na parede da sala de aula e mesmo sabendo que poderia ser punido, se escondia e assistia às aulas por uma frestinha da porta - e foi assim que se alfabetizou!

Para Margarida Arcebispo, a culinária é uma arte de combate ao racismo  Foto: Felipe Iruatã/Estadão

Não foi diferente com minha família, que por imposição do fazendeiro não tinha o direito de estudar. Se éramos alfabetizados é porque mamãe sabia ler e escrever, o que aprendeu com o vovô.

Aos 14 anos de idade, empregada doméstica e morando em São Paulo, frequentei pela primeira vez uma sala de aula, em um projeto de alfabetização de adultos que durou seis meses. Eu pude enfim receber meu diploma da quarta série. Feliz, com o diploma nas mãos, perguntei para a minha patroa: “agora que já tenho um diploma, o que mais tenho que fazer para ser uma professora?”.

Ela me respondeu: “não adianta você querer ser uma professora, Margarida, as escolas não aceitam professores pretos! O que você tem de fazer é corte e costura, bordado ou ser uma cozinheira.”

Esta resposta teria me ofendido se nenhuma das sugestões fossem do meu agrado, afinal nós pessoas negras temos a liberdade de escolher qualquer profissão - inclusive temos o direito de não pensar só na remuneração, mas também na satisfação pessoal.

E a culinária sempre me fascinou. Lembro da mamãe cozinhando, eu subia em um banquinho observando e admirando tudo o que ela fazia. Eu poderia ter escolhido outra profissão, mas escolhi ser cozinheira e foi cozinhando que passei grande parte da minha vida.

Cozinhando e escrevendo, cozinhando e também ensinando. Hoje eu crio conteúdo na internet, e, em 2022, lancei o livro Margarida Maria Arcebispo: Memórias e Receitas, que conta as histórias da minha vida e das receitas que aprendi a fazer trepada no banquinho observando a mamãe.

Eu sou muito mais do que disseram que eu podia ser e quero convidar você que está lendo para me conhecer mais de perto. Assim como outras mulheres, usei a culinária como arma para enfrentar o racismo e construir um mundo melhor para mim e para as pessoas que vieram depois de mim - esta é a minha herança!

* Margarida Arcebispo é cozinheira e autora da autobiografia Margarida Maria Arcebispo: Memórias e Receitas. Também foi participante do programa Masterchef, da Band

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