Metralhadoras Browning calibre .50, como as que foram furtadas de um quartel do Exército em Barueri, na Grande São Paulo, na semana passada, são armas usadas em guerras e com alto poder destrutivo, sendo capaz de disparar até 550 tiros por minuto, segundo especificações técnicas do armamento. As Forças Armadas investigam como 13 unidades desse tipo foram furtadas do arsenal do Comando Militar do Sudeste, que mantém centenas de militares aquartelados enquanto realiza a apuração.
O Exército diz que o equipamento estava inservível e que havia sido recolhido para manutenção, mas não esclareceu a natureza do problema do armamento e se o defeito é corrigível a ponto de ser consertado e usado por criminosos.
Por seu alto poder de fogo, metralhadoras .50 passaram a ser cobiçadas por organizações criminosas organizadas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), que possuem armeiros especializados. Elas estiveram presentes em ocorrências marcantes, como o assassinato do Rei da Fronteira, o megatraficante Jorge Rafaat Toumani, entre o Brasil e o Paraguai, em 2016. Na oportunidade, o armamento foi encontrado acoplado no interior de um veículo adaptado para o ataque, que focava na disputa pelo controle de rotas de tráfico de drogas entre os dois países.
Documentos técnicos das Forças Armadas apontam que a .50 pesa 38,1 quilos, sem contar outros 20 quilos do tripé que acomoda o armamento no solo. Ela tem 1,75 metro de comprimento e atinge alvos com eficácia a mais de um quilômetro de distância. É considerada não portátil por não ser transportada de forma ativa facilmente, mas, além do solo, pode ser instalada em veículos terrestres e aquáticos e possui suportes voltados a alvos aéreos a baixa altitude.
O armamento é usado pelos Estados Unidos desde a década de 1930. Foi intensamente empregado durante a 2ª Guerra Mundial, de acordo com documentos do Departamento de Defesa americano, além de outros combates como a Guerra do Vietnã e os embates em solo iraquiano e afegão. Tem o uso disseminado entre nações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e também foi adquirido pelo Exército do Brasil. Por sua característica de confiabilidade, segue sendo usado por diferentes tropas ao redor do mundo.
Para entender o caso
Em comunicados, as Forças Armadas brasileiras destacam que continuam a usar esse tipo de armamento. “O 14º Grupo de Artilharia de Campanha, Grupo Fernão Dias, realizou, no período de 17 a 19 de julho de 2018, o exercício de longa duração do Curso de Formação de Cabos 2018. O exercício foi iniciado com a realização da marcha a pé de 24 km e, dentre as oficinas, foram ministradas as instruções de orientação, tiro com metralhadora .50 e patrulhas”, informou o Exército na oportunidade.
“Nos dias 5 e 6 de maio (de 2021), foi realizado, nas instalações da Seção de Instrução de Blindados (SIBld) do 13º BIB e Campo de Instrução General Calasans (CIGC), o Estágio de Nivelamento e Padronização sobre o emprego da metralhadora Mtr Browning .50 pol para as organizações militares diretamente subordinadas da 5ª Brigada de Cavalaria Blindada”, descreveu outro comunicado sobre atividade realizada em Ponta Grossa, no Paraná.
A metralhadora é usada até em caças A-29 Super Tucano, produzidos pela Embraer e que integram a frota da Força Aérea Brasileira (FAB). Cada aeronave possui duas metralhadoras .50 como parte do armamento à disposição da operação militar. O equipamento tem como vantagem operacional a capacidade de perfurar blindagens, principalmente as de caráter civil, como as que estão presente em modelos de carro-forte de transportadoras de valores.
Vantagem tática para quadrilhas
O gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, disse que o preço de uma metralhadora .50 como as roubadas do Exército em Barueri ultrapassa R$ 200 mil no mercado ilegal, “justamente por sua escassez (já que só é usada por Forças Armadas) e potência”. Organizações criminosas do País chegavam a importar, na década de 1990 e 2000, o equipamento de países vizinhos, como a Colômbia, de onde conseguiam obter o material de forma ilegal.
“É muito buscada, pois dá uma grande vantagem tática para as quadrilhas”, completou. Além do caso contra o Rei da Fronteira, o armamento foi usado em um roubo milionário da transportadora Prosegur em Ciudad del Este em 2017, lembrou ele. “Listar estes episódios ajuda a dar a dimensão de qual estrago uma única arma desta pode causar, e com isso consegue-se tentar dimensionar o impacto de 13 delas na mão do crime.”
Em 2018, a Delegacia de Roubo e Furto de Cargas do Rio apreendeu uma Browning .50, enquanto o equipamento estava sendo negociado por traficantes. Na oportunidade, a Polícia Civil classificou a apreensão como a maior do Estado.
O último grande desvio em unidades militares ocorreu em 2009, citou Langeani. Foram sete fuzis 7,62mm, de um batalhão de Caçapava, e “o Exército demorou meses para concluir a recuperação”. Além das 13 metralhadoras .50, oito fuzis 7,62 mm também foram levados na ocorrência da semana passada em Barueri.
“As armas (de 2009) já estavam espalhadas pelo Vale do Paraíba e litoral norte, mostrando como o tempo é crucial para conseguir sucesso na recuperação, que naquele caso só foi feita com ajuda da Polícia Civil de São Paulo e Polícia Federal. É preciso deixar claro que este não é um problema que afeta e prejudica o Exército, mas é um desvio que gera implicações para segurança pública e defesa do Brasil como um todo.”
Em razão do peso do material, o especialista destacou que pode ter sido necessário uma logística profissional para o roubo.
“Ainda assim, é praticamente impossível que um crime como este seja realizado sem o apoio de integrantes do Exército (o que ajuda a explicar o aquartelamento de todo pessoal). Neste caso, é preciso ter em mente, que se feita de uma única vez, a retirada desta quantidade de armas, demandaria no mínimo uma caminhonete ou caminhão, já que estamos falando de mais de meia tonelada de armas transportadas, em uma carga de grande volume, já que cada metralhadora .50 desta mede aproximadamente 1,70m e pesa entre 40 e 60 quilos.”
Sobre o fato de estarem em manutenção, Langeani pontuou que isso não reduz a gravidade da ocorrência. O crime organizado, disse ele, tem em seus quadros armeiros (geralmente recrutados das polícias e forças armadas) com capacidade de fazer com que estas armas voltem a ser operacionais.
“O caso serve de alerta sobre a qualidade da guarda de armas do Exército. A unidade do Exército em São Paulo que realiza destruição de armas (22 D SUP) fica no mesmo complexo de Barueri de onde as armas sumiram. Se havia intenção de inutilizar estas armas, isto deveria ter sido feito de forma célere, reduzindo o risco de apropriação destes equipamentos pelo crime.”
Exército diz investigar o caso; secretário de SP fala em ‘evitar consequências catastróficas’
Em nota emitida na sexta-feira, o Comando Militar do Sudeste disse ter realizado uma inspeção no dia 10 de outubro, “quando foi verificada uma discrepância no controle” do armamento citado, “inservíveis que foram recolhidos para manutenção”. “Imediatamente, foram tomadas todas as providências administrativas com o objetivo de apurar as circunstâncias do fato, sendo instaurado um Inquérito Policial Militar.”
Pelo Twitter, o secretário de Segurança de SP, Guilherme Derrite, disse lamentar a ocorrência de furto do que chamou de “13 armas antiaéreas” do arsenal do Exército. “Nós da segurança de São Paulo não vamos medir esforços para auxiliar nas buscas do armamento e evitar as consequências catastróficas que isso pode gerar a favor do crime e contra segurança da população.”
A reportagem voltou a questionar o Exército e a SSP neste domingo, mas foi informado que não havia atualização da ocorrência. /COLABOROU ROBERTO GODOY