Bento XVI, um papa com perfil entre renovador e tradicionalista


Alemão Joseph Ratzinger falava dez línguas e tinha sete doutorados honorários

Por Claudio Vieira
Atualização:

O obituário de um papa normalmente trata dos fatos e palavras que marcaram seu pontificado. Apontado por muitos como conservador, o de Bento XVI, ficará marcado por uma inovação em 700 anos: a renúncia. Apesar da pressão provocada pelos escândalos de abuso sexual e do vazamento de correspondência particular (o Vatileaks), o que ele manteve como motivação até o fim foi a declaração oficial de 11 fevereiro de 2013: a fragilidade de sua idade avançada e as exigências físicas e mentais do cargo. Ficará para a história como um papa contraditório, entre renovador e tradicionalista, mas de vontade férrea, que nunca renunciou a suas ideias.

Bento XVI morreu neste sábado, 31, aos 95 anos. Nos últimos dias, o Vaticano já havia informado que o pontífice emérito estava com a saúde frágil, por causa da idade avançada, e o papa Francisco pediu orações por ele. O velório de Bento XVI começará na segunda-feira, 2, no Vaticano. Francisco celebrará o funeral do papa emérito na quinta-feira, 5, na Praça de São Pedro.

Ainda em 2010, teve início o planejamento da renúncia ao trono de Pedro, quando começou a dizer que, quando um pontífice tem consciência de que lhe falta condição física ou espiritual para o cargo, tem o dever de se demitir. Assistente, discípulo e amigo, Stephan Horn revelou em um documentário italiano (Bento XVI, a hora da verdade, em tradução livre) que a viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude em julho daquele ano era uma preocupação. “O médico pessoal disse que ele não poderia viajar ao Brasil para participar. Portanto, seria melhor renunciar um pouco antes.”

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Bento XVI celebra missa no Vaticano durante o seu papado Foto: CELSO JUNIOR/ESTADÃO

O que poucos sabem é que esta não foi a primeira renúncia na vida de Joseph Ratzinger, nascido em Marktl am Inn, na Baviera (Alemanha), em 16 de abril de 1927, um Sábado de Aleluia. Ele passou a adolescência em um seminário regional onde viu os nazistas dominarem seu país e levá-lo à guerra. Evitou fazer parte daquilo – arrolado no Exército, desertou.

Depois da guerra, voltou aos estudos de Teologia. Padre por pouco tempo em Munique, lecionou em universidades alemãs até concluir o doutorado. Professor em Tübingen, renunciou à cátedra diante da agitação estudantil em 1968. Mas ele mesmo nessa época poderia ser colocado entre os “agitadores”: esteve entre os jovens teólogos que sacudiram Roma no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Foi dos que lutaram contra os tradicionalistas.

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Mas data dessa época também a contradição que marcaria sua vida e seu papado. Em 1966, identificou o que achava ser as primeiras tendências inquietantes na renovação da Igreja. Um “certo espírito partidário” levava para a igreja o dilema do século: reforma ou revolução. Sentiu então a fé ameaçada e não titubeou.

Nos anos seguintes, se mostrou crítico à mudança litúrgica de Paulo VI – via na ruptura com a chamada missa tridentina (em latim) uma ameaça à fé e à unidade da Igreja. Dizia que não havia como mudar a forma de orar dos fiéis sem alterar sua crença. Mas seria o mesmo Paulo VI que o tornaria cardeal de Munique, em 1977.

João Paulo II

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Mas o papa que marcaria a história do novo cardeal alemão seria aquele que o nomeou em novembro de 1981 para a poderosa Congregação para a Doutrina da Fé: o polonês Karol Woytila. Sob João Paulo II, caberia a Ratzinger ser o guardião da ortodoxia e o principal aliado contra o avanço de ideias marxistas na Igreja Católica, notadamente as da chamada Teologia da Libertação. Foi nessa época que entrou em confronto direto contra o brasileiro Leonardo Boff, que teve um de seus livros condenados em 1985 e acabou obrigado a cumprir um ano de “silêncio obsequioso”. Posteriormente, Boff se sentiu pressionado a deixar a hierarquia católica, e sempre o fato a João Paulo II e ao agora papa emérito falecido, apesar de considerá-lo “uma pessoa finíssima, elegante, muito gentil, que nunca levanta a voz”.

E assim Bento XVI seguiu criando muitos inimigos, renunciando a visões consideradas mais “progressistas”, em prol da ideia que a caridade, e não a ação política, é a principal forma de transformação social que a Igreja pode oferecer. Não fez concessão aos que pregavam a ruptura com a tradição como continuidade do aggiornamento do Concílio Vaticano II. Não mudou o veto à comunhão dos descasados nem aos “viri probati” (ordenação de casados) – nem pensou em abrir brechas para isso, ao contrário do seu sucessor, o papa Francisco.

Foi do mesmo escritório em que trabalhava diariamente no Vaticano que transformou a antiga Inquisição no principal polo de combate a ideologias, incluindo o liberalismo. Sempre viu no marxismo a versão materialista da esperança cristã que, no lugar de Deus, busca a redenção no partido. Para ele, a “adoração ateísta” sacrificava à ideologia o humanismo. Mas foi na mesma Congregação para a Doutrina da Fé que recebeu o encargo de cuidar de um problema que marcou seu pontificado: o abuso sexual.

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Recentemente, o cardeal da Cracóvia Stanisław Dziwisz, braço direito de Woytila, veio a público para defendê-lo das acusações de que não se preocupou com o problema, chegando mesmo a acobertar casos. “Ele viu que o problema não era apenas o flagelo vivido pelas vítimas, mas também as reações erradas dos superiores. E viu que embora houvesse procedimentos e leis na Igreja, nem sempre foram aplicados pelos bispos.” Qual seria o caminho: João Paulo II passou a investigação para o homem de sua “máxima confiança” no Vaticano: Ratzinger. “Foi para evitar a tentação de colocar esses assuntos dolorosos debaixo do tapete.”

No entanto, esses assuntos realmente não ficaram debaixo do tapete. E ganharam destaque sobretudo nos Estados Unidos, a partir de 2001, quando o Boston Globe começou a revelar uma série de acusações de acobertamento, que renderia uma série de reportagens e anos depois o filme vencedor do Oscar, Spotlight. As acusações atingiram diretamente a Igreja, na figura do cardeal Bernard Law, que acabou transferido para Roma por João Paulo II em 2004. O problema, que ainda causa constrangimentos hoje a Francisco, acabaria ficando em segundo plano com a longa doença e posterior morte de Woytila, em 2005 – sob os gritos de “santo súbito”.

Bento XVI

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Foi em meio à comoção popular que ocorreu o conclave. Só três votantes não haviam sido nomeados por Woytila e o discurso de Ratzinger chamou a atenção, sob o espírito de dar continuidade à linha adotada até aquele momento. Foi assim que, após quatro votações, Ratzinger se tornou Bento XVI. “Queridos irmãos e irmãs, depois do grande João Paulo II, os cardeais escolheram a mim -- um simples, humilde trabalhador da vinha do Senhor.”

Mas os anos de seu pontificado não foram tranquilos. As queixas de abuso sexual por sacerdotes reacenderam – e ganharam uma força nunca antes vista. A situação passou a causar “profunda tristeza” ao papa, como relataram assessores próximos. A isso se uniria o que foi visto como uma traição pessoal: a revelação de seus documentos pelo mordomo pessoal, Paolo Gabriele. A advogada dele, Cristiana Arru, alegou que as informações deveriam ser divulgadas para revelar mentiras no Vaticano. “Meu cliente pensou que o papa não estava sendo informado sobre alguns assuntos importantes que estavam acontecendo.” O mesmo ocorreu com desvios no Banco do Vaticano, outra dor de cabeça para o papa.

Rainha Elizabeth recebeu Bento XVI no Palácio de Holyroodhouse, em Edinburgh, no Reino Unido Foto: David Cheskin/AP
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Bento XVI foi o homem que pediu a Deus que tivesse piedade da Igreja. “Senhor, frequentemente a Tua Igreja se parece com uma barca que está para afundar.” Pressionado, renunciou e abriu espaço para um reformador na Igreja Católica, o papa Francisco.

A relação entre dois papas, algo que não era visto sem atritos há séculos, chamava a atenção nos poucos e cordiais encontros públicos. “É como ter um avô com quem conversar”, disse por várias vezes Francisco, que fazia questão de visitá-lo com certa regularidade. O pensamento de correligionários do pontífice alemão foi, porém, por várias vezes apresentado como um empecilho a propostas renovadoras de Francisco. Apesar de não vir a público mais, Bento XVI renunciou a silenciar totalmente. Nos últimos anos, talvez o que tenha criado mais “barulho” seja sua alegação, em carta, de que a revolução sexual dos anos 1960 está no cerne dos atuais escândalos sexuais da Igreja.

Ratzinger, homem que falava dez línguas e tinha sete doutorados honorários, se imaginava aposentado, lendo e escrevendo livros em uma vila na Baviera. Terminou seus anos em um convento no Vaticano. Secretário particular do papa emérito, o monsenhor Georg Gänswein relatou à TV italiana, há três anos, que por muitas vezes chegaram a conversar sobre a hora da morte. “Ele pensa e se prepara, porque preparar-se para a morte significa preparar-se para o encontro com Deus, que é o encontro decisivo.”

O obituário de um papa normalmente trata dos fatos e palavras que marcaram seu pontificado. Apontado por muitos como conservador, o de Bento XVI, ficará marcado por uma inovação em 700 anos: a renúncia. Apesar da pressão provocada pelos escândalos de abuso sexual e do vazamento de correspondência particular (o Vatileaks), o que ele manteve como motivação até o fim foi a declaração oficial de 11 fevereiro de 2013: a fragilidade de sua idade avançada e as exigências físicas e mentais do cargo. Ficará para a história como um papa contraditório, entre renovador e tradicionalista, mas de vontade férrea, que nunca renunciou a suas ideias.

Bento XVI morreu neste sábado, 31, aos 95 anos. Nos últimos dias, o Vaticano já havia informado que o pontífice emérito estava com a saúde frágil, por causa da idade avançada, e o papa Francisco pediu orações por ele. O velório de Bento XVI começará na segunda-feira, 2, no Vaticano. Francisco celebrará o funeral do papa emérito na quinta-feira, 5, na Praça de São Pedro.

Ainda em 2010, teve início o planejamento da renúncia ao trono de Pedro, quando começou a dizer que, quando um pontífice tem consciência de que lhe falta condição física ou espiritual para o cargo, tem o dever de se demitir. Assistente, discípulo e amigo, Stephan Horn revelou em um documentário italiano (Bento XVI, a hora da verdade, em tradução livre) que a viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude em julho daquele ano era uma preocupação. “O médico pessoal disse que ele não poderia viajar ao Brasil para participar. Portanto, seria melhor renunciar um pouco antes.”

Bento XVI celebra missa no Vaticano durante o seu papado Foto: CELSO JUNIOR/ESTADÃO

O que poucos sabem é que esta não foi a primeira renúncia na vida de Joseph Ratzinger, nascido em Marktl am Inn, na Baviera (Alemanha), em 16 de abril de 1927, um Sábado de Aleluia. Ele passou a adolescência em um seminário regional onde viu os nazistas dominarem seu país e levá-lo à guerra. Evitou fazer parte daquilo – arrolado no Exército, desertou.

Depois da guerra, voltou aos estudos de Teologia. Padre por pouco tempo em Munique, lecionou em universidades alemãs até concluir o doutorado. Professor em Tübingen, renunciou à cátedra diante da agitação estudantil em 1968. Mas ele mesmo nessa época poderia ser colocado entre os “agitadores”: esteve entre os jovens teólogos que sacudiram Roma no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Foi dos que lutaram contra os tradicionalistas.

Mas data dessa época também a contradição que marcaria sua vida e seu papado. Em 1966, identificou o que achava ser as primeiras tendências inquietantes na renovação da Igreja. Um “certo espírito partidário” levava para a igreja o dilema do século: reforma ou revolução. Sentiu então a fé ameaçada e não titubeou.

Nos anos seguintes, se mostrou crítico à mudança litúrgica de Paulo VI – via na ruptura com a chamada missa tridentina (em latim) uma ameaça à fé e à unidade da Igreja. Dizia que não havia como mudar a forma de orar dos fiéis sem alterar sua crença. Mas seria o mesmo Paulo VI que o tornaria cardeal de Munique, em 1977.

João Paulo II

Mas o papa que marcaria a história do novo cardeal alemão seria aquele que o nomeou em novembro de 1981 para a poderosa Congregação para a Doutrina da Fé: o polonês Karol Woytila. Sob João Paulo II, caberia a Ratzinger ser o guardião da ortodoxia e o principal aliado contra o avanço de ideias marxistas na Igreja Católica, notadamente as da chamada Teologia da Libertação. Foi nessa época que entrou em confronto direto contra o brasileiro Leonardo Boff, que teve um de seus livros condenados em 1985 e acabou obrigado a cumprir um ano de “silêncio obsequioso”. Posteriormente, Boff se sentiu pressionado a deixar a hierarquia católica, e sempre o fato a João Paulo II e ao agora papa emérito falecido, apesar de considerá-lo “uma pessoa finíssima, elegante, muito gentil, que nunca levanta a voz”.

E assim Bento XVI seguiu criando muitos inimigos, renunciando a visões consideradas mais “progressistas”, em prol da ideia que a caridade, e não a ação política, é a principal forma de transformação social que a Igreja pode oferecer. Não fez concessão aos que pregavam a ruptura com a tradição como continuidade do aggiornamento do Concílio Vaticano II. Não mudou o veto à comunhão dos descasados nem aos “viri probati” (ordenação de casados) – nem pensou em abrir brechas para isso, ao contrário do seu sucessor, o papa Francisco.

Foi do mesmo escritório em que trabalhava diariamente no Vaticano que transformou a antiga Inquisição no principal polo de combate a ideologias, incluindo o liberalismo. Sempre viu no marxismo a versão materialista da esperança cristã que, no lugar de Deus, busca a redenção no partido. Para ele, a “adoração ateísta” sacrificava à ideologia o humanismo. Mas foi na mesma Congregação para a Doutrina da Fé que recebeu o encargo de cuidar de um problema que marcou seu pontificado: o abuso sexual.

Recentemente, o cardeal da Cracóvia Stanisław Dziwisz, braço direito de Woytila, veio a público para defendê-lo das acusações de que não se preocupou com o problema, chegando mesmo a acobertar casos. “Ele viu que o problema não era apenas o flagelo vivido pelas vítimas, mas também as reações erradas dos superiores. E viu que embora houvesse procedimentos e leis na Igreja, nem sempre foram aplicados pelos bispos.” Qual seria o caminho: João Paulo II passou a investigação para o homem de sua “máxima confiança” no Vaticano: Ratzinger. “Foi para evitar a tentação de colocar esses assuntos dolorosos debaixo do tapete.”

No entanto, esses assuntos realmente não ficaram debaixo do tapete. E ganharam destaque sobretudo nos Estados Unidos, a partir de 2001, quando o Boston Globe começou a revelar uma série de acusações de acobertamento, que renderia uma série de reportagens e anos depois o filme vencedor do Oscar, Spotlight. As acusações atingiram diretamente a Igreja, na figura do cardeal Bernard Law, que acabou transferido para Roma por João Paulo II em 2004. O problema, que ainda causa constrangimentos hoje a Francisco, acabaria ficando em segundo plano com a longa doença e posterior morte de Woytila, em 2005 – sob os gritos de “santo súbito”.

Bento XVI

Foi em meio à comoção popular que ocorreu o conclave. Só três votantes não haviam sido nomeados por Woytila e o discurso de Ratzinger chamou a atenção, sob o espírito de dar continuidade à linha adotada até aquele momento. Foi assim que, após quatro votações, Ratzinger se tornou Bento XVI. “Queridos irmãos e irmãs, depois do grande João Paulo II, os cardeais escolheram a mim -- um simples, humilde trabalhador da vinha do Senhor.”

Mas os anos de seu pontificado não foram tranquilos. As queixas de abuso sexual por sacerdotes reacenderam – e ganharam uma força nunca antes vista. A situação passou a causar “profunda tristeza” ao papa, como relataram assessores próximos. A isso se uniria o que foi visto como uma traição pessoal: a revelação de seus documentos pelo mordomo pessoal, Paolo Gabriele. A advogada dele, Cristiana Arru, alegou que as informações deveriam ser divulgadas para revelar mentiras no Vaticano. “Meu cliente pensou que o papa não estava sendo informado sobre alguns assuntos importantes que estavam acontecendo.” O mesmo ocorreu com desvios no Banco do Vaticano, outra dor de cabeça para o papa.

Rainha Elizabeth recebeu Bento XVI no Palácio de Holyroodhouse, em Edinburgh, no Reino Unido Foto: David Cheskin/AP

Bento XVI foi o homem que pediu a Deus que tivesse piedade da Igreja. “Senhor, frequentemente a Tua Igreja se parece com uma barca que está para afundar.” Pressionado, renunciou e abriu espaço para um reformador na Igreja Católica, o papa Francisco.

A relação entre dois papas, algo que não era visto sem atritos há séculos, chamava a atenção nos poucos e cordiais encontros públicos. “É como ter um avô com quem conversar”, disse por várias vezes Francisco, que fazia questão de visitá-lo com certa regularidade. O pensamento de correligionários do pontífice alemão foi, porém, por várias vezes apresentado como um empecilho a propostas renovadoras de Francisco. Apesar de não vir a público mais, Bento XVI renunciou a silenciar totalmente. Nos últimos anos, talvez o que tenha criado mais “barulho” seja sua alegação, em carta, de que a revolução sexual dos anos 1960 está no cerne dos atuais escândalos sexuais da Igreja.

Ratzinger, homem que falava dez línguas e tinha sete doutorados honorários, se imaginava aposentado, lendo e escrevendo livros em uma vila na Baviera. Terminou seus anos em um convento no Vaticano. Secretário particular do papa emérito, o monsenhor Georg Gänswein relatou à TV italiana, há três anos, que por muitas vezes chegaram a conversar sobre a hora da morte. “Ele pensa e se prepara, porque preparar-se para a morte significa preparar-se para o encontro com Deus, que é o encontro decisivo.”

O obituário de um papa normalmente trata dos fatos e palavras que marcaram seu pontificado. Apontado por muitos como conservador, o de Bento XVI, ficará marcado por uma inovação em 700 anos: a renúncia. Apesar da pressão provocada pelos escândalos de abuso sexual e do vazamento de correspondência particular (o Vatileaks), o que ele manteve como motivação até o fim foi a declaração oficial de 11 fevereiro de 2013: a fragilidade de sua idade avançada e as exigências físicas e mentais do cargo. Ficará para a história como um papa contraditório, entre renovador e tradicionalista, mas de vontade férrea, que nunca renunciou a suas ideias.

Bento XVI morreu neste sábado, 31, aos 95 anos. Nos últimos dias, o Vaticano já havia informado que o pontífice emérito estava com a saúde frágil, por causa da idade avançada, e o papa Francisco pediu orações por ele. O velório de Bento XVI começará na segunda-feira, 2, no Vaticano. Francisco celebrará o funeral do papa emérito na quinta-feira, 5, na Praça de São Pedro.

Ainda em 2010, teve início o planejamento da renúncia ao trono de Pedro, quando começou a dizer que, quando um pontífice tem consciência de que lhe falta condição física ou espiritual para o cargo, tem o dever de se demitir. Assistente, discípulo e amigo, Stephan Horn revelou em um documentário italiano (Bento XVI, a hora da verdade, em tradução livre) que a viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude em julho daquele ano era uma preocupação. “O médico pessoal disse que ele não poderia viajar ao Brasil para participar. Portanto, seria melhor renunciar um pouco antes.”

Bento XVI celebra missa no Vaticano durante o seu papado Foto: CELSO JUNIOR/ESTADÃO

O que poucos sabem é que esta não foi a primeira renúncia na vida de Joseph Ratzinger, nascido em Marktl am Inn, na Baviera (Alemanha), em 16 de abril de 1927, um Sábado de Aleluia. Ele passou a adolescência em um seminário regional onde viu os nazistas dominarem seu país e levá-lo à guerra. Evitou fazer parte daquilo – arrolado no Exército, desertou.

Depois da guerra, voltou aos estudos de Teologia. Padre por pouco tempo em Munique, lecionou em universidades alemãs até concluir o doutorado. Professor em Tübingen, renunciou à cátedra diante da agitação estudantil em 1968. Mas ele mesmo nessa época poderia ser colocado entre os “agitadores”: esteve entre os jovens teólogos que sacudiram Roma no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Foi dos que lutaram contra os tradicionalistas.

Mas data dessa época também a contradição que marcaria sua vida e seu papado. Em 1966, identificou o que achava ser as primeiras tendências inquietantes na renovação da Igreja. Um “certo espírito partidário” levava para a igreja o dilema do século: reforma ou revolução. Sentiu então a fé ameaçada e não titubeou.

Nos anos seguintes, se mostrou crítico à mudança litúrgica de Paulo VI – via na ruptura com a chamada missa tridentina (em latim) uma ameaça à fé e à unidade da Igreja. Dizia que não havia como mudar a forma de orar dos fiéis sem alterar sua crença. Mas seria o mesmo Paulo VI que o tornaria cardeal de Munique, em 1977.

João Paulo II

Mas o papa que marcaria a história do novo cardeal alemão seria aquele que o nomeou em novembro de 1981 para a poderosa Congregação para a Doutrina da Fé: o polonês Karol Woytila. Sob João Paulo II, caberia a Ratzinger ser o guardião da ortodoxia e o principal aliado contra o avanço de ideias marxistas na Igreja Católica, notadamente as da chamada Teologia da Libertação. Foi nessa época que entrou em confronto direto contra o brasileiro Leonardo Boff, que teve um de seus livros condenados em 1985 e acabou obrigado a cumprir um ano de “silêncio obsequioso”. Posteriormente, Boff se sentiu pressionado a deixar a hierarquia católica, e sempre o fato a João Paulo II e ao agora papa emérito falecido, apesar de considerá-lo “uma pessoa finíssima, elegante, muito gentil, que nunca levanta a voz”.

E assim Bento XVI seguiu criando muitos inimigos, renunciando a visões consideradas mais “progressistas”, em prol da ideia que a caridade, e não a ação política, é a principal forma de transformação social que a Igreja pode oferecer. Não fez concessão aos que pregavam a ruptura com a tradição como continuidade do aggiornamento do Concílio Vaticano II. Não mudou o veto à comunhão dos descasados nem aos “viri probati” (ordenação de casados) – nem pensou em abrir brechas para isso, ao contrário do seu sucessor, o papa Francisco.

Foi do mesmo escritório em que trabalhava diariamente no Vaticano que transformou a antiga Inquisição no principal polo de combate a ideologias, incluindo o liberalismo. Sempre viu no marxismo a versão materialista da esperança cristã que, no lugar de Deus, busca a redenção no partido. Para ele, a “adoração ateísta” sacrificava à ideologia o humanismo. Mas foi na mesma Congregação para a Doutrina da Fé que recebeu o encargo de cuidar de um problema que marcou seu pontificado: o abuso sexual.

Recentemente, o cardeal da Cracóvia Stanisław Dziwisz, braço direito de Woytila, veio a público para defendê-lo das acusações de que não se preocupou com o problema, chegando mesmo a acobertar casos. “Ele viu que o problema não era apenas o flagelo vivido pelas vítimas, mas também as reações erradas dos superiores. E viu que embora houvesse procedimentos e leis na Igreja, nem sempre foram aplicados pelos bispos.” Qual seria o caminho: João Paulo II passou a investigação para o homem de sua “máxima confiança” no Vaticano: Ratzinger. “Foi para evitar a tentação de colocar esses assuntos dolorosos debaixo do tapete.”

No entanto, esses assuntos realmente não ficaram debaixo do tapete. E ganharam destaque sobretudo nos Estados Unidos, a partir de 2001, quando o Boston Globe começou a revelar uma série de acusações de acobertamento, que renderia uma série de reportagens e anos depois o filme vencedor do Oscar, Spotlight. As acusações atingiram diretamente a Igreja, na figura do cardeal Bernard Law, que acabou transferido para Roma por João Paulo II em 2004. O problema, que ainda causa constrangimentos hoje a Francisco, acabaria ficando em segundo plano com a longa doença e posterior morte de Woytila, em 2005 – sob os gritos de “santo súbito”.

Bento XVI

Foi em meio à comoção popular que ocorreu o conclave. Só três votantes não haviam sido nomeados por Woytila e o discurso de Ratzinger chamou a atenção, sob o espírito de dar continuidade à linha adotada até aquele momento. Foi assim que, após quatro votações, Ratzinger se tornou Bento XVI. “Queridos irmãos e irmãs, depois do grande João Paulo II, os cardeais escolheram a mim -- um simples, humilde trabalhador da vinha do Senhor.”

Mas os anos de seu pontificado não foram tranquilos. As queixas de abuso sexual por sacerdotes reacenderam – e ganharam uma força nunca antes vista. A situação passou a causar “profunda tristeza” ao papa, como relataram assessores próximos. A isso se uniria o que foi visto como uma traição pessoal: a revelação de seus documentos pelo mordomo pessoal, Paolo Gabriele. A advogada dele, Cristiana Arru, alegou que as informações deveriam ser divulgadas para revelar mentiras no Vaticano. “Meu cliente pensou que o papa não estava sendo informado sobre alguns assuntos importantes que estavam acontecendo.” O mesmo ocorreu com desvios no Banco do Vaticano, outra dor de cabeça para o papa.

Rainha Elizabeth recebeu Bento XVI no Palácio de Holyroodhouse, em Edinburgh, no Reino Unido Foto: David Cheskin/AP

Bento XVI foi o homem que pediu a Deus que tivesse piedade da Igreja. “Senhor, frequentemente a Tua Igreja se parece com uma barca que está para afundar.” Pressionado, renunciou e abriu espaço para um reformador na Igreja Católica, o papa Francisco.

A relação entre dois papas, algo que não era visto sem atritos há séculos, chamava a atenção nos poucos e cordiais encontros públicos. “É como ter um avô com quem conversar”, disse por várias vezes Francisco, que fazia questão de visitá-lo com certa regularidade. O pensamento de correligionários do pontífice alemão foi, porém, por várias vezes apresentado como um empecilho a propostas renovadoras de Francisco. Apesar de não vir a público mais, Bento XVI renunciou a silenciar totalmente. Nos últimos anos, talvez o que tenha criado mais “barulho” seja sua alegação, em carta, de que a revolução sexual dos anos 1960 está no cerne dos atuais escândalos sexuais da Igreja.

Ratzinger, homem que falava dez línguas e tinha sete doutorados honorários, se imaginava aposentado, lendo e escrevendo livros em uma vila na Baviera. Terminou seus anos em um convento no Vaticano. Secretário particular do papa emérito, o monsenhor Georg Gänswein relatou à TV italiana, há três anos, que por muitas vezes chegaram a conversar sobre a hora da morte. “Ele pensa e se prepara, porque preparar-se para a morte significa preparar-se para o encontro com Deus, que é o encontro decisivo.”

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