Caro leitor,
Disposto a assumir a liderança da oposição a Jair Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva fez nesta quarta-feira, 10, um discurso sob medida para se mostrar como contraponto ao presidente. Chamou Bolsonaro de “fanfarrão”, disse que o País está “desgovernado” e, como previsto, adotou a retórica da “salvação” nacional. “Não tenham medo de mim”, afirmou.
Nesse retorno à cena política, reabilitado para se candidatar em 2022, Lula foi aconselhado por advogados a não ressuscitar a “jararaca” e a exibir o figurino “paz e amor”. Pregou mais vacina, criticou a autorização para compra de armas e garantiunão ter “viés ideológico”. Chegou mesmo a se definir como um “conciliador”, apesar da “língua ferina”, que conversa “com todo mundo”.
Lula não admitiu ser candidato, mas cometeu ato falho ao falar sobre o temor do mercado com sua volta. Afirmou que, se quisessem “entregar” a soberania do País e outras coisas mais, não precisariam contar com ele. “Não votem em mim”, emendou, aparentemente sem perceber a “confissão”.
Depois de ser surpreendido na segunda-feira, 6, pela decisão do ministro Edson Fachin, o relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal que anulou todas as condenações contra ele, em Curitiba, o ex-presidente se debruçou com mais entusiasmo sobre pesquisas. As últimas indicaram que seu atual potencial de votos é maior do que o de Bolsonaro.
Tudo o que Lula deseja, agora, é destruir o ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro, que o condenou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá. A avaliação de seus advogados é que, na retomada do julgamento do Supremo, ficará provada a parcialidade de Moro ao agir como "assistente da acusação", e não como juiz. Se isso ocorrer, os processos contra o ex-presidente não serão apenas transferidos de Curitiba para Brasília, como determinou Fachin, mas virarão pó.
Uma ala do PT conseguiu convencer Lula a não aparecer, neste primeiro pronunciamento após o veredicto de Fachin, como um pote mágoa. Foi em conversas sobre o tom do discurso desta quarta-feira que aliados lembraramda “jararaca”. Em março de 2016, depois que Moro determinou sua condução coercitiva para prestar depoimento à Polícia Federal, o ex-presidente não conteve a fúria. “Se quiseram matar a jararaca, não fizeram direito, pois não bateram na cabeça, bateram no rabo. A jararaca está viva”, anunciou ele à época.
Sob o argumento de que os maiores adversários de Bolsonaro são a pandemia e a economia, o PT se movimenta agora para conquistar protagonismo na disputa de narrativas. Tem pronto, por exemplo, um Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, produzido em parceria com a Fundação Perseu Abramo. Para o PT, o País vive sob "tutela militar do poder civil" e precisa de uma mudança "estrutural", embalada por um projeto de desenvolvimento que crie empregos e tenha maior presença do poder público.
Com o futuro ainda incerto, Lula não admitiu com todas as letras que está em campanha, mas seu discurso é de candidato. Não foi à toa que ele escolheu o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo - berço do PT e de onde saiu em direção à prisão de Curitiba, em abril de 2018 -, para se reposicionar no jogo como "vítima" de perseguição judicial.
Ainda que possa haver uma reviravolta de última hora, a anulação das condenações impostas pela Lava Jato a Lula é definida nos bastidores do Supremo como "prego sem cabeça", que não se tira.
Na prática, o quadro obriga o PT a rediscutir o cenário eleitoral. No início do mês passado, a contragosto da cúpula do partido, Lula havia dado sinal verde para o ex-prefeito Fernando Haddad viajar pelo País e pôr na rua a campanha. O ex-presidente diz que Haddad, derrotado por Bolsonaro na eleição de 2018, é hoje o "melhor nome" para representar o PT, com o passaporte de 47 milhões de votos. Ele próprio, no entanto, decidiu retomar as viagens, principalmente ao Nordeste - região onde o PT perdeu eleitores para Bolsonaro -, após tomar a vacina contra o coronavírus. Aos 75 anos, Lula deve receber a primeira dose na próxima semana.
Em recente reunião com dirigentes de partidos que pregam a construção de uma "frente ampla" para derrotar Bolsonaro, Lula avisou que o PT terá candidato próprio, em 2022. Defendeu a unidade da esquerda, mas com o PT na cabeça da chapa, e um "pacto de não agressão". Não foi só: disse não acreditar numa frente tipo geleia geral, como a que vem sendo proposta, com um pé no centro, porque todos querem lançar concorrentes no primeiro turno. Nesta quarta-feira, ele criticou Ciro Gomes (PDT), que, no seu entender, precisa “se reeducar”, e Luciano Huck, para quem o petista é “figurinha carimbada”.
A portas fechadas, o ex-presidente observou que não basta vencer Bolsonaro. No seu diagnóstico, o desafio é "encontrar saídas" para superar a grave crise e conseguir governar o Brasil.
Nessa nova fase, porém, Lula não pode mais apresentar fisionomia sectária nem retórica para "dentro", se quiser se aproximar dos eleitores perdidos, da classe média, dos indecisos e daqueles que dizem votar em Bolsonaro por falta de opção. Não se trata apenas de aposentar o "nós contra eles", que por muitos anos marcou a tradicional polarização com o PSDB.
O alicerce para construir uma aliança que ultrapasse as fileiras petistas depende agora de um discurso mais arejado e menos ressentido. A "jararaca" está viva, mas não deve dar as caras por enquanto.