A história do diplomata americano que liga Hemingway a Bolsonaro e Biden a Dilma


Autor de documento entregue por Biden para Dilma sobre a tortura na ditadura, Mowinckel, o ‘homem da CIA em Ipanema’, era um personagem mais sério do que os brasileiros acreditavam

Por Marcelo Godoy

Caro leitor,

o diplomata americano John Wallendahl Mowinckel sabia exatamente por que devia escrever um memorando para o então embaixador dos EUA no Brasil, William Manning Rountree, aconselhando o chefe a cobrar do governo brasileiro a punição pública dos militares que sequestraram, torturaram e mataram o ex-deputado federal Rubens Paiva. Era 11 de fevereiro de 1971. A existência desse documento – e a de Mowinckel – liga histórias das vidas de personagens inesperados: a do presidente eleito americano Joe Biden à da ex-presidente Dilma Rousseff e a do presidente Jair Bolsonaro à do escritor Ernest Hemingway.

O primeiro-tenente John Mowinckel serviu como oficialno OSS am ações secretas durante a 2.ª Guerra Mundial Foto: Acervo pessoal
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Em seu discurso da vitória, Biden afirmou que os Estados Unidos devem voltar a "liderar pela força de seu exemplo e não pelo exemplo da força". Se Jair Bolsonaro quiser saber o que isso quer dizer para o democrata que se elegeu senador em 1972, um ano depois de Mowinckel escrever seu memorando, devia consultar a coleção de 43 documentos entregues por Biden, então vice-presidente americano, a Dilma Rousseff, em 17 de junho de 2014, para serem anexados à Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

A CNV foi um dos motivos do descontentamento com o PT dos generais que sustentaram Michel Temer e apoiam Bolsonaro. O presidente e o vice Hamilton Mourão não se cansam de elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador que comandou o Destacamento de Operações de Informações do 2.º Exército. Se recusam a usar a palavra ditadura para qualificar o regime dos militares. Sabem que o mundo mudou, que o ex-secretário de comunicação de Dilma, o jornalista Thomas Traumann, é sobrinho de Wes Barthelmes, assessor do partido democrata que cuidou de Biden e seus discursos após a mulher e a filha de 18 meses do democrata morrerem em um acidente de carro, em 1972. Mas ainda usam a desculpa do "combate ao comunismo".

O documento de Mowinckel entregue por Biden começa assim: “A continuidade do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, após sua prisão duas ou três semanas atrás, está causando profunda preocupação em muitos de seus amigos e conhecidos (...)” O diplomata prosseguiu sem deixar nenhuma dúvida sobre o que ocorrera: “Paiva morreu sob interrogatório por ataque cardíaco ou outras causas. Quando isso se tornar conhecido (como eventualmente será), é certo de que seus amigos irão gerar uma violenta e emocional campanha contra o governo brasileiro por todos os meios possíveis – imprensa internacional, cartas para os senadores Fulbright, Church, Kennedy etc”.

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Memorando feito por Mowinckel para o embaixador americano entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff em 2014 Foto: Acervo pessoal

Mowinckel sabia o que estava escrevendo. O democrata James William Fulbright foi o mais longevo (de 1959 a 1974) chefe do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Enfrentou o ultradireitista senador Joseph McCarthy, opôs-se ao envolvimento americano no Vietnã e defendia o multilateralismo nas relações exteriores. Causaria calafrios no chanceler Ernesto Araújo e na família Bolsonaro. Edward Kennedy, outro citado, foi quem liderou as investigações sobre o envolvimento americano no golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile, enquanto Frank Church conduzia audiências no Senado sobre violações dos direitos humanos e investigava as operações encobertas ilegais da CIA ao redor do mundo, no chamado Church Committee. Os três foram colegas influentes de bancada de um jovem senador eleito pelo Estado de Delaware: Joe Biden. 

No Brasil, não levaram Mowinckel a sério, ainda que fosse conhecido em Ipanema, como o homem da CIA no bairro, conforme escreveu Ruy Castro. O perfil de Mowinckel ocupa menos de uma página de Ela é Carioca, a enciclopédia de Ipanema do escritor. Castro o descreve como um espião festivo, bronzeado e de sunga, cuja principal contribuição ao Rio teria sido introduzir o bullshot, a combinação de suco de tomate com vodka “ideal para bebuns com síndrome de abstinência matinal”. Ele conta ainda que David Atlee Phillips, o chefe da CIA no Brasil, desprezava os serviços de Mowinckel, pois ele viveria passando informações óbvias. Pode ser que fosse óbvio para Phillips o relato do incômodo memorando que Biden entregou à CNV e do qual ele fora um dos destinatários em 1971.

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Oembaixador Americano Charles Elbrick, sequestrado por guerrilheiros brasileiros em 1969 Foto: Acervo Estadão

Melhor que fosse assim, que ninguém o conhecesse ao certo no País seu passado e seus papéis. Em Ipanema, o diplomata desfrutou da amizade de esquerdistas e chegou a ser cogitado, segundo Castro conta em seu livro, como alvo do sequestro que Fernando Gabeira e seus companheiro do MR-8 preparavam em 1969. Pelo relato de Castro, o grupo teria desistido de Mowinckel e resolveu apanhar o embaixador Charles Burke Elbrick.

A informação é polêmica. Quem participou do sequestro, como o jornalista Franklin Martins,  então militante do MR-8, a desmente e afirma categoricamente que a organização sempre teve como alvo único o embaixador. Desde o começo. Nunca se pensou em sequestrar outra pessoa. E, se alguém pensou, foi apenas papo de bar. Além de Martins, outros antigos militantes do MR-8 consultados pelo coluna dizem o mesmo. Quando tudo terminou, foi Mowinckel e o encarregado de negócios, William Belton, os primeiros funcionários da embaixada a se encontrarem com Elbrick em sua casa, na Rua São Clemente.

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Talvez uma circunstância fizesse Mowinckel se movimentar como alguém inofensivo, um simples boêmio, meio metido a 007, que falava português e promovia feijoadas. É que antes de ser diplomata, ele fora jornalista e trabalhara como correspondente para a U.S. News and World Report na Europa. Foi só em 1953 que ele entrou no U.S. Foreign Service, indo trabalhar na United States Information Agency (USIA). Agência criada pelo presidente Dwight Eisenhower, ela era a responsável pela chamada Guerra Fria Cultural e não vacilava em lançar mão de operações secretas para cumprir seus objetivos políticos. 

Em 1967, Mowinckel chegou ao Brasil para ser o adido cultural da embaixada. Parecia sopa no mel viver naqueles anos no Rio para alguém que atuou 15 quilômetros atrás de Omaha Beach, em junho de 1944, na invasão da Normandia, como primeiro-tenente do OSS (Office of Strategic Services, a agência antecessora da CIA). Sua missão era apoiar a resistência francesa e impedir a chegada de reforços alemães na praia. Formado em 1943 em Princeton, ele falava seis línguas quando foi recrutado para o mundo das ações secretas durante a guerra após se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais. Foi um dos 120 voluntários do Sussex Plan, que lançou agentes de paraquedas na França ocupada para preparar a invasão do dia 6, ação que lhe valeu a Bronze Star e a Croix de Guerre.

A ficha de Mowinckel em Princeton: formado em Línguas em 1943, ele se alistou no Corpo de Fuzileiros Navais Foto: Acervo pessoal
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Dois meses depois do Dia-D, em 20 de agosto, Mowinckel estava no Hotel Grand Veneur, em Paris, com seu chefe, o coronel David Bruce – mais tarde embaixador americano na França –, quando o escritor Ernest Hemingway apareceu. Com a ajuda de dois resistentes franceses, Hemingway conduzia amarrado um soldado alemão franzino e aterrorizado. O historiador britânico Antony Beevor assim descreve a cena em livro Paris After the Liberation 1944-1949:

"Hemingway pediu ajuda a Mowinckel para levar o prisioneiro até seu quarto, onde ele queria interrogá-lo à vontade, enquanto beberia uma outra cerveja. ‘Eu vou fazê-lo falar’.” Uma vez lá, o escritor pediu a Mowinckel que jogasse o alemão na cama. “Tire as botas dele. Vamos queimar os dedos dele com essa vela”, disse Hemingway para o tenente da OSS. Mais uma vez, Mowinckel não teve dúvidas sobre o que fazer: "Vá para o inferno", respondeu para o escritor. E o soldado alemão acabou solto.

Ainda em Paris, o futuro diplomata participaria da captura do Hotel Crillon, o quartel-general alemão. Entrou ali com um outro oficial e desarmou 176 alemães que preferiram se entregar aos americanos do que aos resistentes franceses, conforme contam Dominique Lapierre e Larry Collins em Paris brûle-t-il? Uma semana antes do fim da guerra, infiltrou-se de novo nas linhas alemãs e quase foi morto pela SS antes de cumprir sua última missão: fazer contato com as tropas soviéticas na Áustria. Foi por isso condecorado com a Silver Star.

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Mowinckel teve de descascar outro abacaxi antes de desembarcar no Rio. Era 1964 quando ele foi transferido de Paris, onde estava desde 1962, para Leopoldville (atual Kinshasa, na República Democrática do Congo), durante a crise dos reféns americanos em poder da guerrilha esquerdista no leste do país. Em memorando ao presidente Lyndon Johnson, Carl T. Roman, então chefe do USIA, descreveu o diplomata, ao anunciar que ele assumiria as operações no país africano, como uma pessoa "experiente e um dos mais capazes oficiais da agência". E assim Mowinckel viu nascer o regime de Mobutu Seko, o ditador que governaria o Congo até 1997

Reprodução da reportagem na revista Manchete assinada por Mowinckel sobre a Amazônia Foto: Acervo pessoal

Além de ensinar drinks aos brasileiros, o diplomata voltou a exercitar o jornalismo no Rio. Em 20 de março de 1970, chegava às bancas a edição da revista Manchete que trazia como capa a reportagem Viagem Fantástica pela Transamazônica, assinada pelo americano. Acima de seu nome, o título interno dizia: "As luzes se acendem na Amazônia". E, no texto, ele escreveu: “Quem viaja pela Amazônia sente-se como um Vasco da Gama do século 20, descortinando continentes perdidos e inexplorados. A Transamazônica será em breve um monumento ao espírito criador e à coragem do homem."

Mowinckel não sabia então dos planos do MR-8. Assim como também não sabia que foi em razão das ligações com dois jovens integrantes dessa organização –  Luiz Rodolfo Viveiros de Castro e Carlos Alberto Muniz – que Rubens Paiva fora preso por militares da Aeronáutica. Eles haviam detido antes Cecília Viveiros de Castro (mãe de Luiz Rodolfo), no Aeroporto do Galeão, após ela chegar do Chile, onde fora visitar o filho exilado. Conforme contaram à coluna dois oficiais veteranos do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa),  Paiva foi conduzido à 3ª Zona Aérea e, de lá, ao DOI do 1º Exército, onde morreu sob tortura. Diante do cadáver excelente, os militares do Exército tiveram a ideia de simular uma fuga do deputado para justificar seu desaparecimento, enquanto se livravam do corpo.

Mowinckel dizia nem mesmo conhecer quem era Rubens Paiva, conforme escreveu em seu memorando, antes de se informar sobre o caso. Ele afirmou: "Esse é outro exemplo da enorme irresponsabilidade das táticas militares e das trapalhadas das forças de segurança brasileiras. A diferença é que, desta vez, quando os fatos se tornarem conhecidos, não será possível varrê-los para debaixo do tapete. A confirmação de sua morte desencadeará um fedor do inferno e mais uma vez envergonhará o governo dos Estados Unidos por suas relações com o governo brasileiro".

O memorando de Mowinckel para o embaixador entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff Foto: Acervo pessoal

Por fim, sugeriu ao embaixador: "Na minha opinião, todos os esforços devem ser feitos por você e por outro membro menos importante da embaixada para convencer o GOB (governo brasileiro) de que algo deve ser feito para punir pelo menos alguns dos responsáveis – punidos em julgamento público. Se o GOB não fizer isso logo, é certo que os pecados do GOB vão passar para nós, causando assim mais um problema ‘in the Hill’ (referência ao Capitólio, sede do Congresso americano) e na imprensa para a administração de Nixon". 

O documento entregue por Biden mostra que o homem da Guerra Fria Cultural no Brasil defendia os interesses de seu País sem se importar com as simpatias do então presidente Richard Nixon pela ditadura do general Emilio Garrastazu Médici. Interesses nacionais devem estar acima das amizades para a burocracia americana, coisa que Bolsonaro e seus generais parecem não entender quando se recusam a cumprimentar Biden pela vitória, a exemplo do que fizeram outros líderes mundiais, arrastando o País para a ridícula posição de quem, como Donald Trump, desafia a democracia e não aceita a derrota e o fracasso eleitoral.

Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebe o presidente Jair Bolsonaro Foto: Isac Nóbrega/PR

Não se deve arriscar o futuro do Brasil e de suas relações com uma Nação amiga colocando interesses pessoais e fanatismo ideológico diante da honestidade, da honra e do dever que os ocupantes dos mais altos cargos da República devem ter. Nenhum governante – nem seus opositores – deveria se comportar como cidadão de uma República das Bananas, cujo destino é decidido pela política americana. Nem se deve abrir mão de se buscar o lugar do Brasil no mundo em troca de transformá-lo em vassalo não de um País, mas de um político derrotado.

Ou nas palavras de Thomas Shannon, o embaixador americano no Brasil na gestão de Barack Obama, em entrevista à BBC Brasil. "O presidente Bolsonaro tem um parceiro estratégico importante (EUA) onde ele está mal posicionado politicamente. É triste, porque as relações entre Brasil e Estados Unidos são importantes demais para o Brasil encontrar-se nessa posição." Para ele, a presidência Biden se baseará na defesa da "democracia, direitos humanos, direitos ambientais e civis e a importância do meio ambiente".

O recado está dado. É por tudo isso que Bolsonaro e os generais deveriam se interessar pela história de Mowinckel. O diplomata morreu em 2003. Vivia a aposentadoria em West Palm Beach, na Flórida. O jornal The New York Times dedicou-lhe um pequeno obituário. Lembrou de Omaha Beach, de Hemingway e de sua carreira diplomática em Roma, Paris, Kinshasa e Viena. Nenhum palavra sobre sua passagem pelo Brasil, onde, a exemplo do que fizera na libertação de Paris, repudiou a tortura, servindo ao seu país como quem sabe que o exemplo individual ajuda a construir a consciência de uma Nação.

Caro leitor,

o diplomata americano John Wallendahl Mowinckel sabia exatamente por que devia escrever um memorando para o então embaixador dos EUA no Brasil, William Manning Rountree, aconselhando o chefe a cobrar do governo brasileiro a punição pública dos militares que sequestraram, torturaram e mataram o ex-deputado federal Rubens Paiva. Era 11 de fevereiro de 1971. A existência desse documento – e a de Mowinckel – liga histórias das vidas de personagens inesperados: a do presidente eleito americano Joe Biden à da ex-presidente Dilma Rousseff e a do presidente Jair Bolsonaro à do escritor Ernest Hemingway.

O primeiro-tenente John Mowinckel serviu como oficialno OSS am ações secretas durante a 2.ª Guerra Mundial Foto: Acervo pessoal

Em seu discurso da vitória, Biden afirmou que os Estados Unidos devem voltar a "liderar pela força de seu exemplo e não pelo exemplo da força". Se Jair Bolsonaro quiser saber o que isso quer dizer para o democrata que se elegeu senador em 1972, um ano depois de Mowinckel escrever seu memorando, devia consultar a coleção de 43 documentos entregues por Biden, então vice-presidente americano, a Dilma Rousseff, em 17 de junho de 2014, para serem anexados à Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

A CNV foi um dos motivos do descontentamento com o PT dos generais que sustentaram Michel Temer e apoiam Bolsonaro. O presidente e o vice Hamilton Mourão não se cansam de elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador que comandou o Destacamento de Operações de Informações do 2.º Exército. Se recusam a usar a palavra ditadura para qualificar o regime dos militares. Sabem que o mundo mudou, que o ex-secretário de comunicação de Dilma, o jornalista Thomas Traumann, é sobrinho de Wes Barthelmes, assessor do partido democrata que cuidou de Biden e seus discursos após a mulher e a filha de 18 meses do democrata morrerem em um acidente de carro, em 1972. Mas ainda usam a desculpa do "combate ao comunismo".

O documento de Mowinckel entregue por Biden começa assim: “A continuidade do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, após sua prisão duas ou três semanas atrás, está causando profunda preocupação em muitos de seus amigos e conhecidos (...)” O diplomata prosseguiu sem deixar nenhuma dúvida sobre o que ocorrera: “Paiva morreu sob interrogatório por ataque cardíaco ou outras causas. Quando isso se tornar conhecido (como eventualmente será), é certo de que seus amigos irão gerar uma violenta e emocional campanha contra o governo brasileiro por todos os meios possíveis – imprensa internacional, cartas para os senadores Fulbright, Church, Kennedy etc”.

Memorando feito por Mowinckel para o embaixador americano entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff em 2014 Foto: Acervo pessoal

Mowinckel sabia o que estava escrevendo. O democrata James William Fulbright foi o mais longevo (de 1959 a 1974) chefe do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Enfrentou o ultradireitista senador Joseph McCarthy, opôs-se ao envolvimento americano no Vietnã e defendia o multilateralismo nas relações exteriores. Causaria calafrios no chanceler Ernesto Araújo e na família Bolsonaro. Edward Kennedy, outro citado, foi quem liderou as investigações sobre o envolvimento americano no golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile, enquanto Frank Church conduzia audiências no Senado sobre violações dos direitos humanos e investigava as operações encobertas ilegais da CIA ao redor do mundo, no chamado Church Committee. Os três foram colegas influentes de bancada de um jovem senador eleito pelo Estado de Delaware: Joe Biden. 

No Brasil, não levaram Mowinckel a sério, ainda que fosse conhecido em Ipanema, como o homem da CIA no bairro, conforme escreveu Ruy Castro. O perfil de Mowinckel ocupa menos de uma página de Ela é Carioca, a enciclopédia de Ipanema do escritor. Castro o descreve como um espião festivo, bronzeado e de sunga, cuja principal contribuição ao Rio teria sido introduzir o bullshot, a combinação de suco de tomate com vodka “ideal para bebuns com síndrome de abstinência matinal”. Ele conta ainda que David Atlee Phillips, o chefe da CIA no Brasil, desprezava os serviços de Mowinckel, pois ele viveria passando informações óbvias. Pode ser que fosse óbvio para Phillips o relato do incômodo memorando que Biden entregou à CNV e do qual ele fora um dos destinatários em 1971.

Oembaixador Americano Charles Elbrick, sequestrado por guerrilheiros brasileiros em 1969 Foto: Acervo Estadão

Melhor que fosse assim, que ninguém o conhecesse ao certo no País seu passado e seus papéis. Em Ipanema, o diplomata desfrutou da amizade de esquerdistas e chegou a ser cogitado, segundo Castro conta em seu livro, como alvo do sequestro que Fernando Gabeira e seus companheiro do MR-8 preparavam em 1969. Pelo relato de Castro, o grupo teria desistido de Mowinckel e resolveu apanhar o embaixador Charles Burke Elbrick.

A informação é polêmica. Quem participou do sequestro, como o jornalista Franklin Martins,  então militante do MR-8, a desmente e afirma categoricamente que a organização sempre teve como alvo único o embaixador. Desde o começo. Nunca se pensou em sequestrar outra pessoa. E, se alguém pensou, foi apenas papo de bar. Além de Martins, outros antigos militantes do MR-8 consultados pelo coluna dizem o mesmo. Quando tudo terminou, foi Mowinckel e o encarregado de negócios, William Belton, os primeiros funcionários da embaixada a se encontrarem com Elbrick em sua casa, na Rua São Clemente.

Talvez uma circunstância fizesse Mowinckel se movimentar como alguém inofensivo, um simples boêmio, meio metido a 007, que falava português e promovia feijoadas. É que antes de ser diplomata, ele fora jornalista e trabalhara como correspondente para a U.S. News and World Report na Europa. Foi só em 1953 que ele entrou no U.S. Foreign Service, indo trabalhar na United States Information Agency (USIA). Agência criada pelo presidente Dwight Eisenhower, ela era a responsável pela chamada Guerra Fria Cultural e não vacilava em lançar mão de operações secretas para cumprir seus objetivos políticos. 

Em 1967, Mowinckel chegou ao Brasil para ser o adido cultural da embaixada. Parecia sopa no mel viver naqueles anos no Rio para alguém que atuou 15 quilômetros atrás de Omaha Beach, em junho de 1944, na invasão da Normandia, como primeiro-tenente do OSS (Office of Strategic Services, a agência antecessora da CIA). Sua missão era apoiar a resistência francesa e impedir a chegada de reforços alemães na praia. Formado em 1943 em Princeton, ele falava seis línguas quando foi recrutado para o mundo das ações secretas durante a guerra após se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais. Foi um dos 120 voluntários do Sussex Plan, que lançou agentes de paraquedas na França ocupada para preparar a invasão do dia 6, ação que lhe valeu a Bronze Star e a Croix de Guerre.

A ficha de Mowinckel em Princeton: formado em Línguas em 1943, ele se alistou no Corpo de Fuzileiros Navais Foto: Acervo pessoal

Dois meses depois do Dia-D, em 20 de agosto, Mowinckel estava no Hotel Grand Veneur, em Paris, com seu chefe, o coronel David Bruce – mais tarde embaixador americano na França –, quando o escritor Ernest Hemingway apareceu. Com a ajuda de dois resistentes franceses, Hemingway conduzia amarrado um soldado alemão franzino e aterrorizado. O historiador britânico Antony Beevor assim descreve a cena em livro Paris After the Liberation 1944-1949:

"Hemingway pediu ajuda a Mowinckel para levar o prisioneiro até seu quarto, onde ele queria interrogá-lo à vontade, enquanto beberia uma outra cerveja. ‘Eu vou fazê-lo falar’.” Uma vez lá, o escritor pediu a Mowinckel que jogasse o alemão na cama. “Tire as botas dele. Vamos queimar os dedos dele com essa vela”, disse Hemingway para o tenente da OSS. Mais uma vez, Mowinckel não teve dúvidas sobre o que fazer: "Vá para o inferno", respondeu para o escritor. E o soldado alemão acabou solto.

Ainda em Paris, o futuro diplomata participaria da captura do Hotel Crillon, o quartel-general alemão. Entrou ali com um outro oficial e desarmou 176 alemães que preferiram se entregar aos americanos do que aos resistentes franceses, conforme contam Dominique Lapierre e Larry Collins em Paris brûle-t-il? Uma semana antes do fim da guerra, infiltrou-se de novo nas linhas alemãs e quase foi morto pela SS antes de cumprir sua última missão: fazer contato com as tropas soviéticas na Áustria. Foi por isso condecorado com a Silver Star.

Mowinckel teve de descascar outro abacaxi antes de desembarcar no Rio. Era 1964 quando ele foi transferido de Paris, onde estava desde 1962, para Leopoldville (atual Kinshasa, na República Democrática do Congo), durante a crise dos reféns americanos em poder da guerrilha esquerdista no leste do país. Em memorando ao presidente Lyndon Johnson, Carl T. Roman, então chefe do USIA, descreveu o diplomata, ao anunciar que ele assumiria as operações no país africano, como uma pessoa "experiente e um dos mais capazes oficiais da agência". E assim Mowinckel viu nascer o regime de Mobutu Seko, o ditador que governaria o Congo até 1997

Reprodução da reportagem na revista Manchete assinada por Mowinckel sobre a Amazônia Foto: Acervo pessoal

Além de ensinar drinks aos brasileiros, o diplomata voltou a exercitar o jornalismo no Rio. Em 20 de março de 1970, chegava às bancas a edição da revista Manchete que trazia como capa a reportagem Viagem Fantástica pela Transamazônica, assinada pelo americano. Acima de seu nome, o título interno dizia: "As luzes se acendem na Amazônia". E, no texto, ele escreveu: “Quem viaja pela Amazônia sente-se como um Vasco da Gama do século 20, descortinando continentes perdidos e inexplorados. A Transamazônica será em breve um monumento ao espírito criador e à coragem do homem."

Mowinckel não sabia então dos planos do MR-8. Assim como também não sabia que foi em razão das ligações com dois jovens integrantes dessa organização –  Luiz Rodolfo Viveiros de Castro e Carlos Alberto Muniz – que Rubens Paiva fora preso por militares da Aeronáutica. Eles haviam detido antes Cecília Viveiros de Castro (mãe de Luiz Rodolfo), no Aeroporto do Galeão, após ela chegar do Chile, onde fora visitar o filho exilado. Conforme contaram à coluna dois oficiais veteranos do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa),  Paiva foi conduzido à 3ª Zona Aérea e, de lá, ao DOI do 1º Exército, onde morreu sob tortura. Diante do cadáver excelente, os militares do Exército tiveram a ideia de simular uma fuga do deputado para justificar seu desaparecimento, enquanto se livravam do corpo.

Mowinckel dizia nem mesmo conhecer quem era Rubens Paiva, conforme escreveu em seu memorando, antes de se informar sobre o caso. Ele afirmou: "Esse é outro exemplo da enorme irresponsabilidade das táticas militares e das trapalhadas das forças de segurança brasileiras. A diferença é que, desta vez, quando os fatos se tornarem conhecidos, não será possível varrê-los para debaixo do tapete. A confirmação de sua morte desencadeará um fedor do inferno e mais uma vez envergonhará o governo dos Estados Unidos por suas relações com o governo brasileiro".

O memorando de Mowinckel para o embaixador entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff Foto: Acervo pessoal

Por fim, sugeriu ao embaixador: "Na minha opinião, todos os esforços devem ser feitos por você e por outro membro menos importante da embaixada para convencer o GOB (governo brasileiro) de que algo deve ser feito para punir pelo menos alguns dos responsáveis – punidos em julgamento público. Se o GOB não fizer isso logo, é certo que os pecados do GOB vão passar para nós, causando assim mais um problema ‘in the Hill’ (referência ao Capitólio, sede do Congresso americano) e na imprensa para a administração de Nixon". 

O documento entregue por Biden mostra que o homem da Guerra Fria Cultural no Brasil defendia os interesses de seu País sem se importar com as simpatias do então presidente Richard Nixon pela ditadura do general Emilio Garrastazu Médici. Interesses nacionais devem estar acima das amizades para a burocracia americana, coisa que Bolsonaro e seus generais parecem não entender quando se recusam a cumprimentar Biden pela vitória, a exemplo do que fizeram outros líderes mundiais, arrastando o País para a ridícula posição de quem, como Donald Trump, desafia a democracia e não aceita a derrota e o fracasso eleitoral.

Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebe o presidente Jair Bolsonaro Foto: Isac Nóbrega/PR

Não se deve arriscar o futuro do Brasil e de suas relações com uma Nação amiga colocando interesses pessoais e fanatismo ideológico diante da honestidade, da honra e do dever que os ocupantes dos mais altos cargos da República devem ter. Nenhum governante – nem seus opositores – deveria se comportar como cidadão de uma República das Bananas, cujo destino é decidido pela política americana. Nem se deve abrir mão de se buscar o lugar do Brasil no mundo em troca de transformá-lo em vassalo não de um País, mas de um político derrotado.

Ou nas palavras de Thomas Shannon, o embaixador americano no Brasil na gestão de Barack Obama, em entrevista à BBC Brasil. "O presidente Bolsonaro tem um parceiro estratégico importante (EUA) onde ele está mal posicionado politicamente. É triste, porque as relações entre Brasil e Estados Unidos são importantes demais para o Brasil encontrar-se nessa posição." Para ele, a presidência Biden se baseará na defesa da "democracia, direitos humanos, direitos ambientais e civis e a importância do meio ambiente".

O recado está dado. É por tudo isso que Bolsonaro e os generais deveriam se interessar pela história de Mowinckel. O diplomata morreu em 2003. Vivia a aposentadoria em West Palm Beach, na Flórida. O jornal The New York Times dedicou-lhe um pequeno obituário. Lembrou de Omaha Beach, de Hemingway e de sua carreira diplomática em Roma, Paris, Kinshasa e Viena. Nenhum palavra sobre sua passagem pelo Brasil, onde, a exemplo do que fizera na libertação de Paris, repudiou a tortura, servindo ao seu país como quem sabe que o exemplo individual ajuda a construir a consciência de uma Nação.

Caro leitor,

o diplomata americano John Wallendahl Mowinckel sabia exatamente por que devia escrever um memorando para o então embaixador dos EUA no Brasil, William Manning Rountree, aconselhando o chefe a cobrar do governo brasileiro a punição pública dos militares que sequestraram, torturaram e mataram o ex-deputado federal Rubens Paiva. Era 11 de fevereiro de 1971. A existência desse documento – e a de Mowinckel – liga histórias das vidas de personagens inesperados: a do presidente eleito americano Joe Biden à da ex-presidente Dilma Rousseff e a do presidente Jair Bolsonaro à do escritor Ernest Hemingway.

O primeiro-tenente John Mowinckel serviu como oficialno OSS am ações secretas durante a 2.ª Guerra Mundial Foto: Acervo pessoal

Em seu discurso da vitória, Biden afirmou que os Estados Unidos devem voltar a "liderar pela força de seu exemplo e não pelo exemplo da força". Se Jair Bolsonaro quiser saber o que isso quer dizer para o democrata que se elegeu senador em 1972, um ano depois de Mowinckel escrever seu memorando, devia consultar a coleção de 43 documentos entregues por Biden, então vice-presidente americano, a Dilma Rousseff, em 17 de junho de 2014, para serem anexados à Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

A CNV foi um dos motivos do descontentamento com o PT dos generais que sustentaram Michel Temer e apoiam Bolsonaro. O presidente e o vice Hamilton Mourão não se cansam de elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador que comandou o Destacamento de Operações de Informações do 2.º Exército. Se recusam a usar a palavra ditadura para qualificar o regime dos militares. Sabem que o mundo mudou, que o ex-secretário de comunicação de Dilma, o jornalista Thomas Traumann, é sobrinho de Wes Barthelmes, assessor do partido democrata que cuidou de Biden e seus discursos após a mulher e a filha de 18 meses do democrata morrerem em um acidente de carro, em 1972. Mas ainda usam a desculpa do "combate ao comunismo".

O documento de Mowinckel entregue por Biden começa assim: “A continuidade do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, após sua prisão duas ou três semanas atrás, está causando profunda preocupação em muitos de seus amigos e conhecidos (...)” O diplomata prosseguiu sem deixar nenhuma dúvida sobre o que ocorrera: “Paiva morreu sob interrogatório por ataque cardíaco ou outras causas. Quando isso se tornar conhecido (como eventualmente será), é certo de que seus amigos irão gerar uma violenta e emocional campanha contra o governo brasileiro por todos os meios possíveis – imprensa internacional, cartas para os senadores Fulbright, Church, Kennedy etc”.

Memorando feito por Mowinckel para o embaixador americano entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff em 2014 Foto: Acervo pessoal

Mowinckel sabia o que estava escrevendo. O democrata James William Fulbright foi o mais longevo (de 1959 a 1974) chefe do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Enfrentou o ultradireitista senador Joseph McCarthy, opôs-se ao envolvimento americano no Vietnã e defendia o multilateralismo nas relações exteriores. Causaria calafrios no chanceler Ernesto Araújo e na família Bolsonaro. Edward Kennedy, outro citado, foi quem liderou as investigações sobre o envolvimento americano no golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile, enquanto Frank Church conduzia audiências no Senado sobre violações dos direitos humanos e investigava as operações encobertas ilegais da CIA ao redor do mundo, no chamado Church Committee. Os três foram colegas influentes de bancada de um jovem senador eleito pelo Estado de Delaware: Joe Biden. 

No Brasil, não levaram Mowinckel a sério, ainda que fosse conhecido em Ipanema, como o homem da CIA no bairro, conforme escreveu Ruy Castro. O perfil de Mowinckel ocupa menos de uma página de Ela é Carioca, a enciclopédia de Ipanema do escritor. Castro o descreve como um espião festivo, bronzeado e de sunga, cuja principal contribuição ao Rio teria sido introduzir o bullshot, a combinação de suco de tomate com vodka “ideal para bebuns com síndrome de abstinência matinal”. Ele conta ainda que David Atlee Phillips, o chefe da CIA no Brasil, desprezava os serviços de Mowinckel, pois ele viveria passando informações óbvias. Pode ser que fosse óbvio para Phillips o relato do incômodo memorando que Biden entregou à CNV e do qual ele fora um dos destinatários em 1971.

Oembaixador Americano Charles Elbrick, sequestrado por guerrilheiros brasileiros em 1969 Foto: Acervo Estadão

Melhor que fosse assim, que ninguém o conhecesse ao certo no País seu passado e seus papéis. Em Ipanema, o diplomata desfrutou da amizade de esquerdistas e chegou a ser cogitado, segundo Castro conta em seu livro, como alvo do sequestro que Fernando Gabeira e seus companheiro do MR-8 preparavam em 1969. Pelo relato de Castro, o grupo teria desistido de Mowinckel e resolveu apanhar o embaixador Charles Burke Elbrick.

A informação é polêmica. Quem participou do sequestro, como o jornalista Franklin Martins,  então militante do MR-8, a desmente e afirma categoricamente que a organização sempre teve como alvo único o embaixador. Desde o começo. Nunca se pensou em sequestrar outra pessoa. E, se alguém pensou, foi apenas papo de bar. Além de Martins, outros antigos militantes do MR-8 consultados pelo coluna dizem o mesmo. Quando tudo terminou, foi Mowinckel e o encarregado de negócios, William Belton, os primeiros funcionários da embaixada a se encontrarem com Elbrick em sua casa, na Rua São Clemente.

Talvez uma circunstância fizesse Mowinckel se movimentar como alguém inofensivo, um simples boêmio, meio metido a 007, que falava português e promovia feijoadas. É que antes de ser diplomata, ele fora jornalista e trabalhara como correspondente para a U.S. News and World Report na Europa. Foi só em 1953 que ele entrou no U.S. Foreign Service, indo trabalhar na United States Information Agency (USIA). Agência criada pelo presidente Dwight Eisenhower, ela era a responsável pela chamada Guerra Fria Cultural e não vacilava em lançar mão de operações secretas para cumprir seus objetivos políticos. 

Em 1967, Mowinckel chegou ao Brasil para ser o adido cultural da embaixada. Parecia sopa no mel viver naqueles anos no Rio para alguém que atuou 15 quilômetros atrás de Omaha Beach, em junho de 1944, na invasão da Normandia, como primeiro-tenente do OSS (Office of Strategic Services, a agência antecessora da CIA). Sua missão era apoiar a resistência francesa e impedir a chegada de reforços alemães na praia. Formado em 1943 em Princeton, ele falava seis línguas quando foi recrutado para o mundo das ações secretas durante a guerra após se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais. Foi um dos 120 voluntários do Sussex Plan, que lançou agentes de paraquedas na França ocupada para preparar a invasão do dia 6, ação que lhe valeu a Bronze Star e a Croix de Guerre.

A ficha de Mowinckel em Princeton: formado em Línguas em 1943, ele se alistou no Corpo de Fuzileiros Navais Foto: Acervo pessoal

Dois meses depois do Dia-D, em 20 de agosto, Mowinckel estava no Hotel Grand Veneur, em Paris, com seu chefe, o coronel David Bruce – mais tarde embaixador americano na França –, quando o escritor Ernest Hemingway apareceu. Com a ajuda de dois resistentes franceses, Hemingway conduzia amarrado um soldado alemão franzino e aterrorizado. O historiador britânico Antony Beevor assim descreve a cena em livro Paris After the Liberation 1944-1949:

"Hemingway pediu ajuda a Mowinckel para levar o prisioneiro até seu quarto, onde ele queria interrogá-lo à vontade, enquanto beberia uma outra cerveja. ‘Eu vou fazê-lo falar’.” Uma vez lá, o escritor pediu a Mowinckel que jogasse o alemão na cama. “Tire as botas dele. Vamos queimar os dedos dele com essa vela”, disse Hemingway para o tenente da OSS. Mais uma vez, Mowinckel não teve dúvidas sobre o que fazer: "Vá para o inferno", respondeu para o escritor. E o soldado alemão acabou solto.

Ainda em Paris, o futuro diplomata participaria da captura do Hotel Crillon, o quartel-general alemão. Entrou ali com um outro oficial e desarmou 176 alemães que preferiram se entregar aos americanos do que aos resistentes franceses, conforme contam Dominique Lapierre e Larry Collins em Paris brûle-t-il? Uma semana antes do fim da guerra, infiltrou-se de novo nas linhas alemãs e quase foi morto pela SS antes de cumprir sua última missão: fazer contato com as tropas soviéticas na Áustria. Foi por isso condecorado com a Silver Star.

Mowinckel teve de descascar outro abacaxi antes de desembarcar no Rio. Era 1964 quando ele foi transferido de Paris, onde estava desde 1962, para Leopoldville (atual Kinshasa, na República Democrática do Congo), durante a crise dos reféns americanos em poder da guerrilha esquerdista no leste do país. Em memorando ao presidente Lyndon Johnson, Carl T. Roman, então chefe do USIA, descreveu o diplomata, ao anunciar que ele assumiria as operações no país africano, como uma pessoa "experiente e um dos mais capazes oficiais da agência". E assim Mowinckel viu nascer o regime de Mobutu Seko, o ditador que governaria o Congo até 1997

Reprodução da reportagem na revista Manchete assinada por Mowinckel sobre a Amazônia Foto: Acervo pessoal

Além de ensinar drinks aos brasileiros, o diplomata voltou a exercitar o jornalismo no Rio. Em 20 de março de 1970, chegava às bancas a edição da revista Manchete que trazia como capa a reportagem Viagem Fantástica pela Transamazônica, assinada pelo americano. Acima de seu nome, o título interno dizia: "As luzes se acendem na Amazônia". E, no texto, ele escreveu: “Quem viaja pela Amazônia sente-se como um Vasco da Gama do século 20, descortinando continentes perdidos e inexplorados. A Transamazônica será em breve um monumento ao espírito criador e à coragem do homem."

Mowinckel não sabia então dos planos do MR-8. Assim como também não sabia que foi em razão das ligações com dois jovens integrantes dessa organização –  Luiz Rodolfo Viveiros de Castro e Carlos Alberto Muniz – que Rubens Paiva fora preso por militares da Aeronáutica. Eles haviam detido antes Cecília Viveiros de Castro (mãe de Luiz Rodolfo), no Aeroporto do Galeão, após ela chegar do Chile, onde fora visitar o filho exilado. Conforme contaram à coluna dois oficiais veteranos do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa),  Paiva foi conduzido à 3ª Zona Aérea e, de lá, ao DOI do 1º Exército, onde morreu sob tortura. Diante do cadáver excelente, os militares do Exército tiveram a ideia de simular uma fuga do deputado para justificar seu desaparecimento, enquanto se livravam do corpo.

Mowinckel dizia nem mesmo conhecer quem era Rubens Paiva, conforme escreveu em seu memorando, antes de se informar sobre o caso. Ele afirmou: "Esse é outro exemplo da enorme irresponsabilidade das táticas militares e das trapalhadas das forças de segurança brasileiras. A diferença é que, desta vez, quando os fatos se tornarem conhecidos, não será possível varrê-los para debaixo do tapete. A confirmação de sua morte desencadeará um fedor do inferno e mais uma vez envergonhará o governo dos Estados Unidos por suas relações com o governo brasileiro".

O memorando de Mowinckel para o embaixador entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff Foto: Acervo pessoal

Por fim, sugeriu ao embaixador: "Na minha opinião, todos os esforços devem ser feitos por você e por outro membro menos importante da embaixada para convencer o GOB (governo brasileiro) de que algo deve ser feito para punir pelo menos alguns dos responsáveis – punidos em julgamento público. Se o GOB não fizer isso logo, é certo que os pecados do GOB vão passar para nós, causando assim mais um problema ‘in the Hill’ (referência ao Capitólio, sede do Congresso americano) e na imprensa para a administração de Nixon". 

O documento entregue por Biden mostra que o homem da Guerra Fria Cultural no Brasil defendia os interesses de seu País sem se importar com as simpatias do então presidente Richard Nixon pela ditadura do general Emilio Garrastazu Médici. Interesses nacionais devem estar acima das amizades para a burocracia americana, coisa que Bolsonaro e seus generais parecem não entender quando se recusam a cumprimentar Biden pela vitória, a exemplo do que fizeram outros líderes mundiais, arrastando o País para a ridícula posição de quem, como Donald Trump, desafia a democracia e não aceita a derrota e o fracasso eleitoral.

Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebe o presidente Jair Bolsonaro Foto: Isac Nóbrega/PR

Não se deve arriscar o futuro do Brasil e de suas relações com uma Nação amiga colocando interesses pessoais e fanatismo ideológico diante da honestidade, da honra e do dever que os ocupantes dos mais altos cargos da República devem ter. Nenhum governante – nem seus opositores – deveria se comportar como cidadão de uma República das Bananas, cujo destino é decidido pela política americana. Nem se deve abrir mão de se buscar o lugar do Brasil no mundo em troca de transformá-lo em vassalo não de um País, mas de um político derrotado.

Ou nas palavras de Thomas Shannon, o embaixador americano no Brasil na gestão de Barack Obama, em entrevista à BBC Brasil. "O presidente Bolsonaro tem um parceiro estratégico importante (EUA) onde ele está mal posicionado politicamente. É triste, porque as relações entre Brasil e Estados Unidos são importantes demais para o Brasil encontrar-se nessa posição." Para ele, a presidência Biden se baseará na defesa da "democracia, direitos humanos, direitos ambientais e civis e a importância do meio ambiente".

O recado está dado. É por tudo isso que Bolsonaro e os generais deveriam se interessar pela história de Mowinckel. O diplomata morreu em 2003. Vivia a aposentadoria em West Palm Beach, na Flórida. O jornal The New York Times dedicou-lhe um pequeno obituário. Lembrou de Omaha Beach, de Hemingway e de sua carreira diplomática em Roma, Paris, Kinshasa e Viena. Nenhum palavra sobre sua passagem pelo Brasil, onde, a exemplo do que fizera na libertação de Paris, repudiou a tortura, servindo ao seu país como quem sabe que o exemplo individual ajuda a construir a consciência de uma Nação.

Caro leitor,

o diplomata americano John Wallendahl Mowinckel sabia exatamente por que devia escrever um memorando para o então embaixador dos EUA no Brasil, William Manning Rountree, aconselhando o chefe a cobrar do governo brasileiro a punição pública dos militares que sequestraram, torturaram e mataram o ex-deputado federal Rubens Paiva. Era 11 de fevereiro de 1971. A existência desse documento – e a de Mowinckel – liga histórias das vidas de personagens inesperados: a do presidente eleito americano Joe Biden à da ex-presidente Dilma Rousseff e a do presidente Jair Bolsonaro à do escritor Ernest Hemingway.

O primeiro-tenente John Mowinckel serviu como oficialno OSS am ações secretas durante a 2.ª Guerra Mundial Foto: Acervo pessoal

Em seu discurso da vitória, Biden afirmou que os Estados Unidos devem voltar a "liderar pela força de seu exemplo e não pelo exemplo da força". Se Jair Bolsonaro quiser saber o que isso quer dizer para o democrata que se elegeu senador em 1972, um ano depois de Mowinckel escrever seu memorando, devia consultar a coleção de 43 documentos entregues por Biden, então vice-presidente americano, a Dilma Rousseff, em 17 de junho de 2014, para serem anexados à Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

A CNV foi um dos motivos do descontentamento com o PT dos generais que sustentaram Michel Temer e apoiam Bolsonaro. O presidente e o vice Hamilton Mourão não se cansam de elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador que comandou o Destacamento de Operações de Informações do 2.º Exército. Se recusam a usar a palavra ditadura para qualificar o regime dos militares. Sabem que o mundo mudou, que o ex-secretário de comunicação de Dilma, o jornalista Thomas Traumann, é sobrinho de Wes Barthelmes, assessor do partido democrata que cuidou de Biden e seus discursos após a mulher e a filha de 18 meses do democrata morrerem em um acidente de carro, em 1972. Mas ainda usam a desculpa do "combate ao comunismo".

O documento de Mowinckel entregue por Biden começa assim: “A continuidade do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, após sua prisão duas ou três semanas atrás, está causando profunda preocupação em muitos de seus amigos e conhecidos (...)” O diplomata prosseguiu sem deixar nenhuma dúvida sobre o que ocorrera: “Paiva morreu sob interrogatório por ataque cardíaco ou outras causas. Quando isso se tornar conhecido (como eventualmente será), é certo de que seus amigos irão gerar uma violenta e emocional campanha contra o governo brasileiro por todos os meios possíveis – imprensa internacional, cartas para os senadores Fulbright, Church, Kennedy etc”.

Memorando feito por Mowinckel para o embaixador americano entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff em 2014 Foto: Acervo pessoal

Mowinckel sabia o que estava escrevendo. O democrata James William Fulbright foi o mais longevo (de 1959 a 1974) chefe do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Enfrentou o ultradireitista senador Joseph McCarthy, opôs-se ao envolvimento americano no Vietnã e defendia o multilateralismo nas relações exteriores. Causaria calafrios no chanceler Ernesto Araújo e na família Bolsonaro. Edward Kennedy, outro citado, foi quem liderou as investigações sobre o envolvimento americano no golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile, enquanto Frank Church conduzia audiências no Senado sobre violações dos direitos humanos e investigava as operações encobertas ilegais da CIA ao redor do mundo, no chamado Church Committee. Os três foram colegas influentes de bancada de um jovem senador eleito pelo Estado de Delaware: Joe Biden. 

No Brasil, não levaram Mowinckel a sério, ainda que fosse conhecido em Ipanema, como o homem da CIA no bairro, conforme escreveu Ruy Castro. O perfil de Mowinckel ocupa menos de uma página de Ela é Carioca, a enciclopédia de Ipanema do escritor. Castro o descreve como um espião festivo, bronzeado e de sunga, cuja principal contribuição ao Rio teria sido introduzir o bullshot, a combinação de suco de tomate com vodka “ideal para bebuns com síndrome de abstinência matinal”. Ele conta ainda que David Atlee Phillips, o chefe da CIA no Brasil, desprezava os serviços de Mowinckel, pois ele viveria passando informações óbvias. Pode ser que fosse óbvio para Phillips o relato do incômodo memorando que Biden entregou à CNV e do qual ele fora um dos destinatários em 1971.

Oembaixador Americano Charles Elbrick, sequestrado por guerrilheiros brasileiros em 1969 Foto: Acervo Estadão

Melhor que fosse assim, que ninguém o conhecesse ao certo no País seu passado e seus papéis. Em Ipanema, o diplomata desfrutou da amizade de esquerdistas e chegou a ser cogitado, segundo Castro conta em seu livro, como alvo do sequestro que Fernando Gabeira e seus companheiro do MR-8 preparavam em 1969. Pelo relato de Castro, o grupo teria desistido de Mowinckel e resolveu apanhar o embaixador Charles Burke Elbrick.

A informação é polêmica. Quem participou do sequestro, como o jornalista Franklin Martins,  então militante do MR-8, a desmente e afirma categoricamente que a organização sempre teve como alvo único o embaixador. Desde o começo. Nunca se pensou em sequestrar outra pessoa. E, se alguém pensou, foi apenas papo de bar. Além de Martins, outros antigos militantes do MR-8 consultados pelo coluna dizem o mesmo. Quando tudo terminou, foi Mowinckel e o encarregado de negócios, William Belton, os primeiros funcionários da embaixada a se encontrarem com Elbrick em sua casa, na Rua São Clemente.

Talvez uma circunstância fizesse Mowinckel se movimentar como alguém inofensivo, um simples boêmio, meio metido a 007, que falava português e promovia feijoadas. É que antes de ser diplomata, ele fora jornalista e trabalhara como correspondente para a U.S. News and World Report na Europa. Foi só em 1953 que ele entrou no U.S. Foreign Service, indo trabalhar na United States Information Agency (USIA). Agência criada pelo presidente Dwight Eisenhower, ela era a responsável pela chamada Guerra Fria Cultural e não vacilava em lançar mão de operações secretas para cumprir seus objetivos políticos. 

Em 1967, Mowinckel chegou ao Brasil para ser o adido cultural da embaixada. Parecia sopa no mel viver naqueles anos no Rio para alguém que atuou 15 quilômetros atrás de Omaha Beach, em junho de 1944, na invasão da Normandia, como primeiro-tenente do OSS (Office of Strategic Services, a agência antecessora da CIA). Sua missão era apoiar a resistência francesa e impedir a chegada de reforços alemães na praia. Formado em 1943 em Princeton, ele falava seis línguas quando foi recrutado para o mundo das ações secretas durante a guerra após se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais. Foi um dos 120 voluntários do Sussex Plan, que lançou agentes de paraquedas na França ocupada para preparar a invasão do dia 6, ação que lhe valeu a Bronze Star e a Croix de Guerre.

A ficha de Mowinckel em Princeton: formado em Línguas em 1943, ele se alistou no Corpo de Fuzileiros Navais Foto: Acervo pessoal

Dois meses depois do Dia-D, em 20 de agosto, Mowinckel estava no Hotel Grand Veneur, em Paris, com seu chefe, o coronel David Bruce – mais tarde embaixador americano na França –, quando o escritor Ernest Hemingway apareceu. Com a ajuda de dois resistentes franceses, Hemingway conduzia amarrado um soldado alemão franzino e aterrorizado. O historiador britânico Antony Beevor assim descreve a cena em livro Paris After the Liberation 1944-1949:

"Hemingway pediu ajuda a Mowinckel para levar o prisioneiro até seu quarto, onde ele queria interrogá-lo à vontade, enquanto beberia uma outra cerveja. ‘Eu vou fazê-lo falar’.” Uma vez lá, o escritor pediu a Mowinckel que jogasse o alemão na cama. “Tire as botas dele. Vamos queimar os dedos dele com essa vela”, disse Hemingway para o tenente da OSS. Mais uma vez, Mowinckel não teve dúvidas sobre o que fazer: "Vá para o inferno", respondeu para o escritor. E o soldado alemão acabou solto.

Ainda em Paris, o futuro diplomata participaria da captura do Hotel Crillon, o quartel-general alemão. Entrou ali com um outro oficial e desarmou 176 alemães que preferiram se entregar aos americanos do que aos resistentes franceses, conforme contam Dominique Lapierre e Larry Collins em Paris brûle-t-il? Uma semana antes do fim da guerra, infiltrou-se de novo nas linhas alemãs e quase foi morto pela SS antes de cumprir sua última missão: fazer contato com as tropas soviéticas na Áustria. Foi por isso condecorado com a Silver Star.

Mowinckel teve de descascar outro abacaxi antes de desembarcar no Rio. Era 1964 quando ele foi transferido de Paris, onde estava desde 1962, para Leopoldville (atual Kinshasa, na República Democrática do Congo), durante a crise dos reféns americanos em poder da guerrilha esquerdista no leste do país. Em memorando ao presidente Lyndon Johnson, Carl T. Roman, então chefe do USIA, descreveu o diplomata, ao anunciar que ele assumiria as operações no país africano, como uma pessoa "experiente e um dos mais capazes oficiais da agência". E assim Mowinckel viu nascer o regime de Mobutu Seko, o ditador que governaria o Congo até 1997

Reprodução da reportagem na revista Manchete assinada por Mowinckel sobre a Amazônia Foto: Acervo pessoal

Além de ensinar drinks aos brasileiros, o diplomata voltou a exercitar o jornalismo no Rio. Em 20 de março de 1970, chegava às bancas a edição da revista Manchete que trazia como capa a reportagem Viagem Fantástica pela Transamazônica, assinada pelo americano. Acima de seu nome, o título interno dizia: "As luzes se acendem na Amazônia". E, no texto, ele escreveu: “Quem viaja pela Amazônia sente-se como um Vasco da Gama do século 20, descortinando continentes perdidos e inexplorados. A Transamazônica será em breve um monumento ao espírito criador e à coragem do homem."

Mowinckel não sabia então dos planos do MR-8. Assim como também não sabia que foi em razão das ligações com dois jovens integrantes dessa organização –  Luiz Rodolfo Viveiros de Castro e Carlos Alberto Muniz – que Rubens Paiva fora preso por militares da Aeronáutica. Eles haviam detido antes Cecília Viveiros de Castro (mãe de Luiz Rodolfo), no Aeroporto do Galeão, após ela chegar do Chile, onde fora visitar o filho exilado. Conforme contaram à coluna dois oficiais veteranos do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa),  Paiva foi conduzido à 3ª Zona Aérea e, de lá, ao DOI do 1º Exército, onde morreu sob tortura. Diante do cadáver excelente, os militares do Exército tiveram a ideia de simular uma fuga do deputado para justificar seu desaparecimento, enquanto se livravam do corpo.

Mowinckel dizia nem mesmo conhecer quem era Rubens Paiva, conforme escreveu em seu memorando, antes de se informar sobre o caso. Ele afirmou: "Esse é outro exemplo da enorme irresponsabilidade das táticas militares e das trapalhadas das forças de segurança brasileiras. A diferença é que, desta vez, quando os fatos se tornarem conhecidos, não será possível varrê-los para debaixo do tapete. A confirmação de sua morte desencadeará um fedor do inferno e mais uma vez envergonhará o governo dos Estados Unidos por suas relações com o governo brasileiro".

O memorando de Mowinckel para o embaixador entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff Foto: Acervo pessoal

Por fim, sugeriu ao embaixador: "Na minha opinião, todos os esforços devem ser feitos por você e por outro membro menos importante da embaixada para convencer o GOB (governo brasileiro) de que algo deve ser feito para punir pelo menos alguns dos responsáveis – punidos em julgamento público. Se o GOB não fizer isso logo, é certo que os pecados do GOB vão passar para nós, causando assim mais um problema ‘in the Hill’ (referência ao Capitólio, sede do Congresso americano) e na imprensa para a administração de Nixon". 

O documento entregue por Biden mostra que o homem da Guerra Fria Cultural no Brasil defendia os interesses de seu País sem se importar com as simpatias do então presidente Richard Nixon pela ditadura do general Emilio Garrastazu Médici. Interesses nacionais devem estar acima das amizades para a burocracia americana, coisa que Bolsonaro e seus generais parecem não entender quando se recusam a cumprimentar Biden pela vitória, a exemplo do que fizeram outros líderes mundiais, arrastando o País para a ridícula posição de quem, como Donald Trump, desafia a democracia e não aceita a derrota e o fracasso eleitoral.

Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebe o presidente Jair Bolsonaro Foto: Isac Nóbrega/PR

Não se deve arriscar o futuro do Brasil e de suas relações com uma Nação amiga colocando interesses pessoais e fanatismo ideológico diante da honestidade, da honra e do dever que os ocupantes dos mais altos cargos da República devem ter. Nenhum governante – nem seus opositores – deveria se comportar como cidadão de uma República das Bananas, cujo destino é decidido pela política americana. Nem se deve abrir mão de se buscar o lugar do Brasil no mundo em troca de transformá-lo em vassalo não de um País, mas de um político derrotado.

Ou nas palavras de Thomas Shannon, o embaixador americano no Brasil na gestão de Barack Obama, em entrevista à BBC Brasil. "O presidente Bolsonaro tem um parceiro estratégico importante (EUA) onde ele está mal posicionado politicamente. É triste, porque as relações entre Brasil e Estados Unidos são importantes demais para o Brasil encontrar-se nessa posição." Para ele, a presidência Biden se baseará na defesa da "democracia, direitos humanos, direitos ambientais e civis e a importância do meio ambiente".

O recado está dado. É por tudo isso que Bolsonaro e os generais deveriam se interessar pela história de Mowinckel. O diplomata morreu em 2003. Vivia a aposentadoria em West Palm Beach, na Flórida. O jornal The New York Times dedicou-lhe um pequeno obituário. Lembrou de Omaha Beach, de Hemingway e de sua carreira diplomática em Roma, Paris, Kinshasa e Viena. Nenhum palavra sobre sua passagem pelo Brasil, onde, a exemplo do que fizera na libertação de Paris, repudiou a tortura, servindo ao seu país como quem sabe que o exemplo individual ajuda a construir a consciência de uma Nação.

Caro leitor,

o diplomata americano John Wallendahl Mowinckel sabia exatamente por que devia escrever um memorando para o então embaixador dos EUA no Brasil, William Manning Rountree, aconselhando o chefe a cobrar do governo brasileiro a punição pública dos militares que sequestraram, torturaram e mataram o ex-deputado federal Rubens Paiva. Era 11 de fevereiro de 1971. A existência desse documento – e a de Mowinckel – liga histórias das vidas de personagens inesperados: a do presidente eleito americano Joe Biden à da ex-presidente Dilma Rousseff e a do presidente Jair Bolsonaro à do escritor Ernest Hemingway.

O primeiro-tenente John Mowinckel serviu como oficialno OSS am ações secretas durante a 2.ª Guerra Mundial Foto: Acervo pessoal

Em seu discurso da vitória, Biden afirmou que os Estados Unidos devem voltar a "liderar pela força de seu exemplo e não pelo exemplo da força". Se Jair Bolsonaro quiser saber o que isso quer dizer para o democrata que se elegeu senador em 1972, um ano depois de Mowinckel escrever seu memorando, devia consultar a coleção de 43 documentos entregues por Biden, então vice-presidente americano, a Dilma Rousseff, em 17 de junho de 2014, para serem anexados à Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

A CNV foi um dos motivos do descontentamento com o PT dos generais que sustentaram Michel Temer e apoiam Bolsonaro. O presidente e o vice Hamilton Mourão não se cansam de elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador que comandou o Destacamento de Operações de Informações do 2.º Exército. Se recusam a usar a palavra ditadura para qualificar o regime dos militares. Sabem que o mundo mudou, que o ex-secretário de comunicação de Dilma, o jornalista Thomas Traumann, é sobrinho de Wes Barthelmes, assessor do partido democrata que cuidou de Biden e seus discursos após a mulher e a filha de 18 meses do democrata morrerem em um acidente de carro, em 1972. Mas ainda usam a desculpa do "combate ao comunismo".

O documento de Mowinckel entregue por Biden começa assim: “A continuidade do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, após sua prisão duas ou três semanas atrás, está causando profunda preocupação em muitos de seus amigos e conhecidos (...)” O diplomata prosseguiu sem deixar nenhuma dúvida sobre o que ocorrera: “Paiva morreu sob interrogatório por ataque cardíaco ou outras causas. Quando isso se tornar conhecido (como eventualmente será), é certo de que seus amigos irão gerar uma violenta e emocional campanha contra o governo brasileiro por todos os meios possíveis – imprensa internacional, cartas para os senadores Fulbright, Church, Kennedy etc”.

Memorando feito por Mowinckel para o embaixador americano entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff em 2014 Foto: Acervo pessoal

Mowinckel sabia o que estava escrevendo. O democrata James William Fulbright foi o mais longevo (de 1959 a 1974) chefe do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Enfrentou o ultradireitista senador Joseph McCarthy, opôs-se ao envolvimento americano no Vietnã e defendia o multilateralismo nas relações exteriores. Causaria calafrios no chanceler Ernesto Araújo e na família Bolsonaro. Edward Kennedy, outro citado, foi quem liderou as investigações sobre o envolvimento americano no golpe que derrubou Salvador Allende, no Chile, enquanto Frank Church conduzia audiências no Senado sobre violações dos direitos humanos e investigava as operações encobertas ilegais da CIA ao redor do mundo, no chamado Church Committee. Os três foram colegas influentes de bancada de um jovem senador eleito pelo Estado de Delaware: Joe Biden. 

No Brasil, não levaram Mowinckel a sério, ainda que fosse conhecido em Ipanema, como o homem da CIA no bairro, conforme escreveu Ruy Castro. O perfil de Mowinckel ocupa menos de uma página de Ela é Carioca, a enciclopédia de Ipanema do escritor. Castro o descreve como um espião festivo, bronzeado e de sunga, cuja principal contribuição ao Rio teria sido introduzir o bullshot, a combinação de suco de tomate com vodka “ideal para bebuns com síndrome de abstinência matinal”. Ele conta ainda que David Atlee Phillips, o chefe da CIA no Brasil, desprezava os serviços de Mowinckel, pois ele viveria passando informações óbvias. Pode ser que fosse óbvio para Phillips o relato do incômodo memorando que Biden entregou à CNV e do qual ele fora um dos destinatários em 1971.

Oembaixador Americano Charles Elbrick, sequestrado por guerrilheiros brasileiros em 1969 Foto: Acervo Estadão

Melhor que fosse assim, que ninguém o conhecesse ao certo no País seu passado e seus papéis. Em Ipanema, o diplomata desfrutou da amizade de esquerdistas e chegou a ser cogitado, segundo Castro conta em seu livro, como alvo do sequestro que Fernando Gabeira e seus companheiro do MR-8 preparavam em 1969. Pelo relato de Castro, o grupo teria desistido de Mowinckel e resolveu apanhar o embaixador Charles Burke Elbrick.

A informação é polêmica. Quem participou do sequestro, como o jornalista Franklin Martins,  então militante do MR-8, a desmente e afirma categoricamente que a organização sempre teve como alvo único o embaixador. Desde o começo. Nunca se pensou em sequestrar outra pessoa. E, se alguém pensou, foi apenas papo de bar. Além de Martins, outros antigos militantes do MR-8 consultados pelo coluna dizem o mesmo. Quando tudo terminou, foi Mowinckel e o encarregado de negócios, William Belton, os primeiros funcionários da embaixada a se encontrarem com Elbrick em sua casa, na Rua São Clemente.

Talvez uma circunstância fizesse Mowinckel se movimentar como alguém inofensivo, um simples boêmio, meio metido a 007, que falava português e promovia feijoadas. É que antes de ser diplomata, ele fora jornalista e trabalhara como correspondente para a U.S. News and World Report na Europa. Foi só em 1953 que ele entrou no U.S. Foreign Service, indo trabalhar na United States Information Agency (USIA). Agência criada pelo presidente Dwight Eisenhower, ela era a responsável pela chamada Guerra Fria Cultural e não vacilava em lançar mão de operações secretas para cumprir seus objetivos políticos. 

Em 1967, Mowinckel chegou ao Brasil para ser o adido cultural da embaixada. Parecia sopa no mel viver naqueles anos no Rio para alguém que atuou 15 quilômetros atrás de Omaha Beach, em junho de 1944, na invasão da Normandia, como primeiro-tenente do OSS (Office of Strategic Services, a agência antecessora da CIA). Sua missão era apoiar a resistência francesa e impedir a chegada de reforços alemães na praia. Formado em 1943 em Princeton, ele falava seis línguas quando foi recrutado para o mundo das ações secretas durante a guerra após se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais. Foi um dos 120 voluntários do Sussex Plan, que lançou agentes de paraquedas na França ocupada para preparar a invasão do dia 6, ação que lhe valeu a Bronze Star e a Croix de Guerre.

A ficha de Mowinckel em Princeton: formado em Línguas em 1943, ele se alistou no Corpo de Fuzileiros Navais Foto: Acervo pessoal

Dois meses depois do Dia-D, em 20 de agosto, Mowinckel estava no Hotel Grand Veneur, em Paris, com seu chefe, o coronel David Bruce – mais tarde embaixador americano na França –, quando o escritor Ernest Hemingway apareceu. Com a ajuda de dois resistentes franceses, Hemingway conduzia amarrado um soldado alemão franzino e aterrorizado. O historiador britânico Antony Beevor assim descreve a cena em livro Paris After the Liberation 1944-1949:

"Hemingway pediu ajuda a Mowinckel para levar o prisioneiro até seu quarto, onde ele queria interrogá-lo à vontade, enquanto beberia uma outra cerveja. ‘Eu vou fazê-lo falar’.” Uma vez lá, o escritor pediu a Mowinckel que jogasse o alemão na cama. “Tire as botas dele. Vamos queimar os dedos dele com essa vela”, disse Hemingway para o tenente da OSS. Mais uma vez, Mowinckel não teve dúvidas sobre o que fazer: "Vá para o inferno", respondeu para o escritor. E o soldado alemão acabou solto.

Ainda em Paris, o futuro diplomata participaria da captura do Hotel Crillon, o quartel-general alemão. Entrou ali com um outro oficial e desarmou 176 alemães que preferiram se entregar aos americanos do que aos resistentes franceses, conforme contam Dominique Lapierre e Larry Collins em Paris brûle-t-il? Uma semana antes do fim da guerra, infiltrou-se de novo nas linhas alemãs e quase foi morto pela SS antes de cumprir sua última missão: fazer contato com as tropas soviéticas na Áustria. Foi por isso condecorado com a Silver Star.

Mowinckel teve de descascar outro abacaxi antes de desembarcar no Rio. Era 1964 quando ele foi transferido de Paris, onde estava desde 1962, para Leopoldville (atual Kinshasa, na República Democrática do Congo), durante a crise dos reféns americanos em poder da guerrilha esquerdista no leste do país. Em memorando ao presidente Lyndon Johnson, Carl T. Roman, então chefe do USIA, descreveu o diplomata, ao anunciar que ele assumiria as operações no país africano, como uma pessoa "experiente e um dos mais capazes oficiais da agência". E assim Mowinckel viu nascer o regime de Mobutu Seko, o ditador que governaria o Congo até 1997

Reprodução da reportagem na revista Manchete assinada por Mowinckel sobre a Amazônia Foto: Acervo pessoal

Além de ensinar drinks aos brasileiros, o diplomata voltou a exercitar o jornalismo no Rio. Em 20 de março de 1970, chegava às bancas a edição da revista Manchete que trazia como capa a reportagem Viagem Fantástica pela Transamazônica, assinada pelo americano. Acima de seu nome, o título interno dizia: "As luzes se acendem na Amazônia". E, no texto, ele escreveu: “Quem viaja pela Amazônia sente-se como um Vasco da Gama do século 20, descortinando continentes perdidos e inexplorados. A Transamazônica será em breve um monumento ao espírito criador e à coragem do homem."

Mowinckel não sabia então dos planos do MR-8. Assim como também não sabia que foi em razão das ligações com dois jovens integrantes dessa organização –  Luiz Rodolfo Viveiros de Castro e Carlos Alberto Muniz – que Rubens Paiva fora preso por militares da Aeronáutica. Eles haviam detido antes Cecília Viveiros de Castro (mãe de Luiz Rodolfo), no Aeroporto do Galeão, após ela chegar do Chile, onde fora visitar o filho exilado. Conforme contaram à coluna dois oficiais veteranos do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa),  Paiva foi conduzido à 3ª Zona Aérea e, de lá, ao DOI do 1º Exército, onde morreu sob tortura. Diante do cadáver excelente, os militares do Exército tiveram a ideia de simular uma fuga do deputado para justificar seu desaparecimento, enquanto se livravam do corpo.

Mowinckel dizia nem mesmo conhecer quem era Rubens Paiva, conforme escreveu em seu memorando, antes de se informar sobre o caso. Ele afirmou: "Esse é outro exemplo da enorme irresponsabilidade das táticas militares e das trapalhadas das forças de segurança brasileiras. A diferença é que, desta vez, quando os fatos se tornarem conhecidos, não será possível varrê-los para debaixo do tapete. A confirmação de sua morte desencadeará um fedor do inferno e mais uma vez envergonhará o governo dos Estados Unidos por suas relações com o governo brasileiro".

O memorando de Mowinckel para o embaixador entregue por Joe Biden para Dilma Rousseff Foto: Acervo pessoal

Por fim, sugeriu ao embaixador: "Na minha opinião, todos os esforços devem ser feitos por você e por outro membro menos importante da embaixada para convencer o GOB (governo brasileiro) de que algo deve ser feito para punir pelo menos alguns dos responsáveis – punidos em julgamento público. Se o GOB não fizer isso logo, é certo que os pecados do GOB vão passar para nós, causando assim mais um problema ‘in the Hill’ (referência ao Capitólio, sede do Congresso americano) e na imprensa para a administração de Nixon". 

O documento entregue por Biden mostra que o homem da Guerra Fria Cultural no Brasil defendia os interesses de seu País sem se importar com as simpatias do então presidente Richard Nixon pela ditadura do general Emilio Garrastazu Médici. Interesses nacionais devem estar acima das amizades para a burocracia americana, coisa que Bolsonaro e seus generais parecem não entender quando se recusam a cumprimentar Biden pela vitória, a exemplo do que fizeram outros líderes mundiais, arrastando o País para a ridícula posição de quem, como Donald Trump, desafia a democracia e não aceita a derrota e o fracasso eleitoral.

Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recebe o presidente Jair Bolsonaro Foto: Isac Nóbrega/PR

Não se deve arriscar o futuro do Brasil e de suas relações com uma Nação amiga colocando interesses pessoais e fanatismo ideológico diante da honestidade, da honra e do dever que os ocupantes dos mais altos cargos da República devem ter. Nenhum governante – nem seus opositores – deveria se comportar como cidadão de uma República das Bananas, cujo destino é decidido pela política americana. Nem se deve abrir mão de se buscar o lugar do Brasil no mundo em troca de transformá-lo em vassalo não de um País, mas de um político derrotado.

Ou nas palavras de Thomas Shannon, o embaixador americano no Brasil na gestão de Barack Obama, em entrevista à BBC Brasil. "O presidente Bolsonaro tem um parceiro estratégico importante (EUA) onde ele está mal posicionado politicamente. É triste, porque as relações entre Brasil e Estados Unidos são importantes demais para o Brasil encontrar-se nessa posição." Para ele, a presidência Biden se baseará na defesa da "democracia, direitos humanos, direitos ambientais e civis e a importância do meio ambiente".

O recado está dado. É por tudo isso que Bolsonaro e os generais deveriam se interessar pela história de Mowinckel. O diplomata morreu em 2003. Vivia a aposentadoria em West Palm Beach, na Flórida. O jornal The New York Times dedicou-lhe um pequeno obituário. Lembrou de Omaha Beach, de Hemingway e de sua carreira diplomática em Roma, Paris, Kinshasa e Viena. Nenhum palavra sobre sua passagem pelo Brasil, onde, a exemplo do que fizera na libertação de Paris, repudiou a tortura, servindo ao seu país como quem sabe que o exemplo individual ajuda a construir a consciência de uma Nação.

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