A lição do general Venturini para Bolsonaro sobre o Itamaraty


Presidente devia conhecer como os militares selecionavam os representantes do País

Por Marcelo Godoy

Caro leitor,

diante de um fato duvidoso, é normal ouvir entre civis a pergunta: "É legal? A lei proíbe?" Às vezes, a resposta é: "Não é ilegal, apesar de imoral". O que define as ações civis e as do Estado é a legalidade. Entre os militares, esse dilema não existe, pois o que os inspira é a honra. Se é imoral, nada feito. Para provar que não fora, como membro do Estado Maior do Exército, o autor do fraudulento Plano Cohen, em 1937, o então coronel Olímpio Mourão Filho não procurou um tribunal civil para se defender.

Pediu que fosse submetido a um Conselho de Justificação do Exército. Queria mostrar que não faltara com a verdade e, portanto, não era indigno dos colegas. "Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares", escreveu o jornalista e cientista social Oliveiros Ferreira.

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O presidente Bolsonaro está distante do Exército. Deixou a caserna em 1989. São 30 anos. Tornou-se assim o que o marechal Castelo Branco chamava de "anfíbio", um civil de origem militar, como foram os ex-governadores Ney Braga (Paraná) e Juracy Magalhães (Bahia). Foi essa característica que fez com que a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada de Washington fosse compreendida e, em alguns casos, aceita por militares.

"É legal e acontece em outros países", disse um deles que escreveu para os colegas um texto com o título: Receita de general e receita de embaixador. Não é o único. O leitor viu aqui também que o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, apoia a indicação. Mas não são todos os militares que pensam assim. É o caso do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonarodurante cerimônia de entrega de Espadins aos Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO
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Avesso a entrevistas, o general é pessoa cordial e de ideias claras. Ele as expôs no programa Roda Viva, da TV Cultura. E não mudou de opinião desde então: ele não nomearia um filho para o cargo. Santos Cruz acredita que a indicação não é só uma questão legal. Antes de tudo, é técnica e moral. Eduardo não teria o preparo que embaixadores de carreira têm. Nem mesmo a amizade com a família Trump importaria, pois a política externa americana não funciona em razão de amizades. Nem os investimentos de suas empresas. Se assim fosse, Eduardo faria a Ford desistir de fechar sua fábrica em São Bernardo do Campo.

Hoje, a sociedade americana está dividida. No próximo ano, o país pode escolher um presidente democrata. Como ficaria o Brasil com um embaixador que, como Eduardo, veste o boné de Trump? Juracy Magalhães disse "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Era embaixador em Washington. Mas nunca assinou a carteirinha do Partido Republicano. E se Joe Biden for eleito presidente? Vamos ameaçar os americanos? Os Estados Unidos não são a Argentina.

Quando Bolsonaro era apenas um capitão, o general Danilo Venturini era o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e assessorava o presidente João Figueiredo. Foi antes ministro-chefe da Casa Militar e testemunhara o nascimento da Lei de Anistia. Sabia da importância da pacificação para a reconciliação nacional, como contou em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do Estado.

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Em 24 de outubro de 1990, depôs no Congresso. Diante dele, estava o senador Severo Gomes, que, em nome da abertura, trocara a Arena pelo MDB. Testemunha de um tempo em que o diálogo parecia possível na política, a conversa dos dois está no Diário do Congresso Nacional. Ela é pedagógica. Se tiver interesse, Bolsonaro encontra ali uma lição: como os militares escolhiam os embaixadores do País.

O general contava ao senador os rumos das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) quando fez uma revelação. Em 1982, o embaixador dos Estados Unidos lhe perguntou por que o Brasil tinha um representante mais competente do que o deles em Genebra. "Eu disse que os nossos embaixadores não são escolhidos aleatoriamente, mas em função da complexidade da missão que lhes cabe cumprir."

Jair Bolsonaro durante visita ao canteiro de obras da rodovia BR-116 Foto: Clauber Cleber Caetano/PR
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E sugeriu ao americano que mandasse outro diplomata à Genebra para auxiliar o colega em apuros. A diferença entre Bolsonaro e Venturini é que o presidente se apega ao que é legal. O leitor viu aqui Bolsonaro dizer: "Pretendo beneficiar meu filho, sim". Ele pode? É normal? Ele é o presidente e tem "a caneta". Quem o contesta, é logo tachado de "melancia" e esquerdista. Trata-se, como disse Santos Cruz, de uma lógica binária, de extremos, porque os radicais que acompanham Bolsonaro têm sua própria guerra. Sua própria lógica. Seus próprios fatos.

Com o passar do tempo, toda guerra provoca cansaço e indiferença. O absurdo se mistura à paisagem e aos afazeres diários, como na poesia de Apollinaire, ele mesmo engajado na artilharia francesa de 1914. Em um verso de seus Calligrammes, o francês explicou a transformação de seu mundo: "Car on a poussé très loin durant cette guerre l'art de l'invisibilité". Eis que se levou longe demais a arte da invisibilidade.

Pouco a pouco, o horror da guerra parece normal. Invisível à nossa sensibilidade. É assim que a vertigem da sucessão de fatos e declarações do presidente da República faz o obus de sua artilha ter a cor da lua. E, dessa forma, atenuado, torna plausível não mais distinguir onde estão a legalidade, a moralidade e a honra.

Caro leitor,

diante de um fato duvidoso, é normal ouvir entre civis a pergunta: "É legal? A lei proíbe?" Às vezes, a resposta é: "Não é ilegal, apesar de imoral". O que define as ações civis e as do Estado é a legalidade. Entre os militares, esse dilema não existe, pois o que os inspira é a honra. Se é imoral, nada feito. Para provar que não fora, como membro do Estado Maior do Exército, o autor do fraudulento Plano Cohen, em 1937, o então coronel Olímpio Mourão Filho não procurou um tribunal civil para se defender.

Pediu que fosse submetido a um Conselho de Justificação do Exército. Queria mostrar que não faltara com a verdade e, portanto, não era indigno dos colegas. "Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares", escreveu o jornalista e cientista social Oliveiros Ferreira.

O presidente Bolsonaro está distante do Exército. Deixou a caserna em 1989. São 30 anos. Tornou-se assim o que o marechal Castelo Branco chamava de "anfíbio", um civil de origem militar, como foram os ex-governadores Ney Braga (Paraná) e Juracy Magalhães (Bahia). Foi essa característica que fez com que a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada de Washington fosse compreendida e, em alguns casos, aceita por militares.

"É legal e acontece em outros países", disse um deles que escreveu para os colegas um texto com o título: Receita de general e receita de embaixador. Não é o único. O leitor viu aqui também que o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, apoia a indicação. Mas não são todos os militares que pensam assim. É o caso do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonarodurante cerimônia de entrega de Espadins aos Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Avesso a entrevistas, o general é pessoa cordial e de ideias claras. Ele as expôs no programa Roda Viva, da TV Cultura. E não mudou de opinião desde então: ele não nomearia um filho para o cargo. Santos Cruz acredita que a indicação não é só uma questão legal. Antes de tudo, é técnica e moral. Eduardo não teria o preparo que embaixadores de carreira têm. Nem mesmo a amizade com a família Trump importaria, pois a política externa americana não funciona em razão de amizades. Nem os investimentos de suas empresas. Se assim fosse, Eduardo faria a Ford desistir de fechar sua fábrica em São Bernardo do Campo.

Hoje, a sociedade americana está dividida. No próximo ano, o país pode escolher um presidente democrata. Como ficaria o Brasil com um embaixador que, como Eduardo, veste o boné de Trump? Juracy Magalhães disse "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Era embaixador em Washington. Mas nunca assinou a carteirinha do Partido Republicano. E se Joe Biden for eleito presidente? Vamos ameaçar os americanos? Os Estados Unidos não são a Argentina.

Quando Bolsonaro era apenas um capitão, o general Danilo Venturini era o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e assessorava o presidente João Figueiredo. Foi antes ministro-chefe da Casa Militar e testemunhara o nascimento da Lei de Anistia. Sabia da importância da pacificação para a reconciliação nacional, como contou em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do Estado.

Em 24 de outubro de 1990, depôs no Congresso. Diante dele, estava o senador Severo Gomes, que, em nome da abertura, trocara a Arena pelo MDB. Testemunha de um tempo em que o diálogo parecia possível na política, a conversa dos dois está no Diário do Congresso Nacional. Ela é pedagógica. Se tiver interesse, Bolsonaro encontra ali uma lição: como os militares escolhiam os embaixadores do País.

O general contava ao senador os rumos das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) quando fez uma revelação. Em 1982, o embaixador dos Estados Unidos lhe perguntou por que o Brasil tinha um representante mais competente do que o deles em Genebra. "Eu disse que os nossos embaixadores não são escolhidos aleatoriamente, mas em função da complexidade da missão que lhes cabe cumprir."

Jair Bolsonaro durante visita ao canteiro de obras da rodovia BR-116 Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

E sugeriu ao americano que mandasse outro diplomata à Genebra para auxiliar o colega em apuros. A diferença entre Bolsonaro e Venturini é que o presidente se apega ao que é legal. O leitor viu aqui Bolsonaro dizer: "Pretendo beneficiar meu filho, sim". Ele pode? É normal? Ele é o presidente e tem "a caneta". Quem o contesta, é logo tachado de "melancia" e esquerdista. Trata-se, como disse Santos Cruz, de uma lógica binária, de extremos, porque os radicais que acompanham Bolsonaro têm sua própria guerra. Sua própria lógica. Seus próprios fatos.

Com o passar do tempo, toda guerra provoca cansaço e indiferença. O absurdo se mistura à paisagem e aos afazeres diários, como na poesia de Apollinaire, ele mesmo engajado na artilharia francesa de 1914. Em um verso de seus Calligrammes, o francês explicou a transformação de seu mundo: "Car on a poussé très loin durant cette guerre l'art de l'invisibilité". Eis que se levou longe demais a arte da invisibilidade.

Pouco a pouco, o horror da guerra parece normal. Invisível à nossa sensibilidade. É assim que a vertigem da sucessão de fatos e declarações do presidente da República faz o obus de sua artilha ter a cor da lua. E, dessa forma, atenuado, torna plausível não mais distinguir onde estão a legalidade, a moralidade e a honra.

Caro leitor,

diante de um fato duvidoso, é normal ouvir entre civis a pergunta: "É legal? A lei proíbe?" Às vezes, a resposta é: "Não é ilegal, apesar de imoral". O que define as ações civis e as do Estado é a legalidade. Entre os militares, esse dilema não existe, pois o que os inspira é a honra. Se é imoral, nada feito. Para provar que não fora, como membro do Estado Maior do Exército, o autor do fraudulento Plano Cohen, em 1937, o então coronel Olímpio Mourão Filho não procurou um tribunal civil para se defender.

Pediu que fosse submetido a um Conselho de Justificação do Exército. Queria mostrar que não faltara com a verdade e, portanto, não era indigno dos colegas. "Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares", escreveu o jornalista e cientista social Oliveiros Ferreira.

O presidente Bolsonaro está distante do Exército. Deixou a caserna em 1989. São 30 anos. Tornou-se assim o que o marechal Castelo Branco chamava de "anfíbio", um civil de origem militar, como foram os ex-governadores Ney Braga (Paraná) e Juracy Magalhães (Bahia). Foi essa característica que fez com que a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada de Washington fosse compreendida e, em alguns casos, aceita por militares.

"É legal e acontece em outros países", disse um deles que escreveu para os colegas um texto com o título: Receita de general e receita de embaixador. Não é o único. O leitor viu aqui também que o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, apoia a indicação. Mas não são todos os militares que pensam assim. É o caso do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonarodurante cerimônia de entrega de Espadins aos Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Avesso a entrevistas, o general é pessoa cordial e de ideias claras. Ele as expôs no programa Roda Viva, da TV Cultura. E não mudou de opinião desde então: ele não nomearia um filho para o cargo. Santos Cruz acredita que a indicação não é só uma questão legal. Antes de tudo, é técnica e moral. Eduardo não teria o preparo que embaixadores de carreira têm. Nem mesmo a amizade com a família Trump importaria, pois a política externa americana não funciona em razão de amizades. Nem os investimentos de suas empresas. Se assim fosse, Eduardo faria a Ford desistir de fechar sua fábrica em São Bernardo do Campo.

Hoje, a sociedade americana está dividida. No próximo ano, o país pode escolher um presidente democrata. Como ficaria o Brasil com um embaixador que, como Eduardo, veste o boné de Trump? Juracy Magalhães disse "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Era embaixador em Washington. Mas nunca assinou a carteirinha do Partido Republicano. E se Joe Biden for eleito presidente? Vamos ameaçar os americanos? Os Estados Unidos não são a Argentina.

Quando Bolsonaro era apenas um capitão, o general Danilo Venturini era o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e assessorava o presidente João Figueiredo. Foi antes ministro-chefe da Casa Militar e testemunhara o nascimento da Lei de Anistia. Sabia da importância da pacificação para a reconciliação nacional, como contou em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do Estado.

Em 24 de outubro de 1990, depôs no Congresso. Diante dele, estava o senador Severo Gomes, que, em nome da abertura, trocara a Arena pelo MDB. Testemunha de um tempo em que o diálogo parecia possível na política, a conversa dos dois está no Diário do Congresso Nacional. Ela é pedagógica. Se tiver interesse, Bolsonaro encontra ali uma lição: como os militares escolhiam os embaixadores do País.

O general contava ao senador os rumos das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) quando fez uma revelação. Em 1982, o embaixador dos Estados Unidos lhe perguntou por que o Brasil tinha um representante mais competente do que o deles em Genebra. "Eu disse que os nossos embaixadores não são escolhidos aleatoriamente, mas em função da complexidade da missão que lhes cabe cumprir."

Jair Bolsonaro durante visita ao canteiro de obras da rodovia BR-116 Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

E sugeriu ao americano que mandasse outro diplomata à Genebra para auxiliar o colega em apuros. A diferença entre Bolsonaro e Venturini é que o presidente se apega ao que é legal. O leitor viu aqui Bolsonaro dizer: "Pretendo beneficiar meu filho, sim". Ele pode? É normal? Ele é o presidente e tem "a caneta". Quem o contesta, é logo tachado de "melancia" e esquerdista. Trata-se, como disse Santos Cruz, de uma lógica binária, de extremos, porque os radicais que acompanham Bolsonaro têm sua própria guerra. Sua própria lógica. Seus próprios fatos.

Com o passar do tempo, toda guerra provoca cansaço e indiferença. O absurdo se mistura à paisagem e aos afazeres diários, como na poesia de Apollinaire, ele mesmo engajado na artilharia francesa de 1914. Em um verso de seus Calligrammes, o francês explicou a transformação de seu mundo: "Car on a poussé très loin durant cette guerre l'art de l'invisibilité". Eis que se levou longe demais a arte da invisibilidade.

Pouco a pouco, o horror da guerra parece normal. Invisível à nossa sensibilidade. É assim que a vertigem da sucessão de fatos e declarações do presidente da República faz o obus de sua artilha ter a cor da lua. E, dessa forma, atenuado, torna plausível não mais distinguir onde estão a legalidade, a moralidade e a honra.

Caro leitor,

diante de um fato duvidoso, é normal ouvir entre civis a pergunta: "É legal? A lei proíbe?" Às vezes, a resposta é: "Não é ilegal, apesar de imoral". O que define as ações civis e as do Estado é a legalidade. Entre os militares, esse dilema não existe, pois o que os inspira é a honra. Se é imoral, nada feito. Para provar que não fora, como membro do Estado Maior do Exército, o autor do fraudulento Plano Cohen, em 1937, o então coronel Olímpio Mourão Filho não procurou um tribunal civil para se defender.

Pediu que fosse submetido a um Conselho de Justificação do Exército. Queria mostrar que não faltara com a verdade e, portanto, não era indigno dos colegas. "Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares", escreveu o jornalista e cientista social Oliveiros Ferreira.

O presidente Bolsonaro está distante do Exército. Deixou a caserna em 1989. São 30 anos. Tornou-se assim o que o marechal Castelo Branco chamava de "anfíbio", um civil de origem militar, como foram os ex-governadores Ney Braga (Paraná) e Juracy Magalhães (Bahia). Foi essa característica que fez com que a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada de Washington fosse compreendida e, em alguns casos, aceita por militares.

"É legal e acontece em outros países", disse um deles que escreveu para os colegas um texto com o título: Receita de general e receita de embaixador. Não é o único. O leitor viu aqui também que o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, apoia a indicação. Mas não são todos os militares que pensam assim. É o caso do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonarodurante cerimônia de entrega de Espadins aos Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Avesso a entrevistas, o general é pessoa cordial e de ideias claras. Ele as expôs no programa Roda Viva, da TV Cultura. E não mudou de opinião desde então: ele não nomearia um filho para o cargo. Santos Cruz acredita que a indicação não é só uma questão legal. Antes de tudo, é técnica e moral. Eduardo não teria o preparo que embaixadores de carreira têm. Nem mesmo a amizade com a família Trump importaria, pois a política externa americana não funciona em razão de amizades. Nem os investimentos de suas empresas. Se assim fosse, Eduardo faria a Ford desistir de fechar sua fábrica em São Bernardo do Campo.

Hoje, a sociedade americana está dividida. No próximo ano, o país pode escolher um presidente democrata. Como ficaria o Brasil com um embaixador que, como Eduardo, veste o boné de Trump? Juracy Magalhães disse "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Era embaixador em Washington. Mas nunca assinou a carteirinha do Partido Republicano. E se Joe Biden for eleito presidente? Vamos ameaçar os americanos? Os Estados Unidos não são a Argentina.

Quando Bolsonaro era apenas um capitão, o general Danilo Venturini era o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e assessorava o presidente João Figueiredo. Foi antes ministro-chefe da Casa Militar e testemunhara o nascimento da Lei de Anistia. Sabia da importância da pacificação para a reconciliação nacional, como contou em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do Estado.

Em 24 de outubro de 1990, depôs no Congresso. Diante dele, estava o senador Severo Gomes, que, em nome da abertura, trocara a Arena pelo MDB. Testemunha de um tempo em que o diálogo parecia possível na política, a conversa dos dois está no Diário do Congresso Nacional. Ela é pedagógica. Se tiver interesse, Bolsonaro encontra ali uma lição: como os militares escolhiam os embaixadores do País.

O general contava ao senador os rumos das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) quando fez uma revelação. Em 1982, o embaixador dos Estados Unidos lhe perguntou por que o Brasil tinha um representante mais competente do que o deles em Genebra. "Eu disse que os nossos embaixadores não são escolhidos aleatoriamente, mas em função da complexidade da missão que lhes cabe cumprir."

Jair Bolsonaro durante visita ao canteiro de obras da rodovia BR-116 Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

E sugeriu ao americano que mandasse outro diplomata à Genebra para auxiliar o colega em apuros. A diferença entre Bolsonaro e Venturini é que o presidente se apega ao que é legal. O leitor viu aqui Bolsonaro dizer: "Pretendo beneficiar meu filho, sim". Ele pode? É normal? Ele é o presidente e tem "a caneta". Quem o contesta, é logo tachado de "melancia" e esquerdista. Trata-se, como disse Santos Cruz, de uma lógica binária, de extremos, porque os radicais que acompanham Bolsonaro têm sua própria guerra. Sua própria lógica. Seus próprios fatos.

Com o passar do tempo, toda guerra provoca cansaço e indiferença. O absurdo se mistura à paisagem e aos afazeres diários, como na poesia de Apollinaire, ele mesmo engajado na artilharia francesa de 1914. Em um verso de seus Calligrammes, o francês explicou a transformação de seu mundo: "Car on a poussé très loin durant cette guerre l'art de l'invisibilité". Eis que se levou longe demais a arte da invisibilidade.

Pouco a pouco, o horror da guerra parece normal. Invisível à nossa sensibilidade. É assim que a vertigem da sucessão de fatos e declarações do presidente da República faz o obus de sua artilha ter a cor da lua. E, dessa forma, atenuado, torna plausível não mais distinguir onde estão a legalidade, a moralidade e a honra.

Caro leitor,

diante de um fato duvidoso, é normal ouvir entre civis a pergunta: "É legal? A lei proíbe?" Às vezes, a resposta é: "Não é ilegal, apesar de imoral". O que define as ações civis e as do Estado é a legalidade. Entre os militares, esse dilema não existe, pois o que os inspira é a honra. Se é imoral, nada feito. Para provar que não fora, como membro do Estado Maior do Exército, o autor do fraudulento Plano Cohen, em 1937, o então coronel Olímpio Mourão Filho não procurou um tribunal civil para se defender.

Pediu que fosse submetido a um Conselho de Justificação do Exército. Queria mostrar que não faltara com a verdade e, portanto, não era indigno dos colegas. "Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares", escreveu o jornalista e cientista social Oliveiros Ferreira.

O presidente Bolsonaro está distante do Exército. Deixou a caserna em 1989. São 30 anos. Tornou-se assim o que o marechal Castelo Branco chamava de "anfíbio", um civil de origem militar, como foram os ex-governadores Ney Braga (Paraná) e Juracy Magalhães (Bahia). Foi essa característica que fez com que a nomeação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada de Washington fosse compreendida e, em alguns casos, aceita por militares.

"É legal e acontece em outros países", disse um deles que escreveu para os colegas um texto com o título: Receita de general e receita de embaixador. Não é o único. O leitor viu aqui também que o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, apoia a indicação. Mas não são todos os militares que pensam assim. É o caso do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonarodurante cerimônia de entrega de Espadins aos Cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Avesso a entrevistas, o general é pessoa cordial e de ideias claras. Ele as expôs no programa Roda Viva, da TV Cultura. E não mudou de opinião desde então: ele não nomearia um filho para o cargo. Santos Cruz acredita que a indicação não é só uma questão legal. Antes de tudo, é técnica e moral. Eduardo não teria o preparo que embaixadores de carreira têm. Nem mesmo a amizade com a família Trump importaria, pois a política externa americana não funciona em razão de amizades. Nem os investimentos de suas empresas. Se assim fosse, Eduardo faria a Ford desistir de fechar sua fábrica em São Bernardo do Campo.

Hoje, a sociedade americana está dividida. No próximo ano, o país pode escolher um presidente democrata. Como ficaria o Brasil com um embaixador que, como Eduardo, veste o boné de Trump? Juracy Magalhães disse "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Era embaixador em Washington. Mas nunca assinou a carteirinha do Partido Republicano. E se Joe Biden for eleito presidente? Vamos ameaçar os americanos? Os Estados Unidos não são a Argentina.

Quando Bolsonaro era apenas um capitão, o general Danilo Venturini era o secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e assessorava o presidente João Figueiredo. Foi antes ministro-chefe da Casa Militar e testemunhara o nascimento da Lei de Anistia. Sabia da importância da pacificação para a reconciliação nacional, como contou em entrevista à repórter Tânia Monteiro, do Estado.

Em 24 de outubro de 1990, depôs no Congresso. Diante dele, estava o senador Severo Gomes, que, em nome da abertura, trocara a Arena pelo MDB. Testemunha de um tempo em que o diálogo parecia possível na política, a conversa dos dois está no Diário do Congresso Nacional. Ela é pedagógica. Se tiver interesse, Bolsonaro encontra ali uma lição: como os militares escolhiam os embaixadores do País.

O general contava ao senador os rumos das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) quando fez uma revelação. Em 1982, o embaixador dos Estados Unidos lhe perguntou por que o Brasil tinha um representante mais competente do que o deles em Genebra. "Eu disse que os nossos embaixadores não são escolhidos aleatoriamente, mas em função da complexidade da missão que lhes cabe cumprir."

Jair Bolsonaro durante visita ao canteiro de obras da rodovia BR-116 Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

E sugeriu ao americano que mandasse outro diplomata à Genebra para auxiliar o colega em apuros. A diferença entre Bolsonaro e Venturini é que o presidente se apega ao que é legal. O leitor viu aqui Bolsonaro dizer: "Pretendo beneficiar meu filho, sim". Ele pode? É normal? Ele é o presidente e tem "a caneta". Quem o contesta, é logo tachado de "melancia" e esquerdista. Trata-se, como disse Santos Cruz, de uma lógica binária, de extremos, porque os radicais que acompanham Bolsonaro têm sua própria guerra. Sua própria lógica. Seus próprios fatos.

Com o passar do tempo, toda guerra provoca cansaço e indiferença. O absurdo se mistura à paisagem e aos afazeres diários, como na poesia de Apollinaire, ele mesmo engajado na artilharia francesa de 1914. Em um verso de seus Calligrammes, o francês explicou a transformação de seu mundo: "Car on a poussé très loin durant cette guerre l'art de l'invisibilité". Eis que se levou longe demais a arte da invisibilidade.

Pouco a pouco, o horror da guerra parece normal. Invisível à nossa sensibilidade. É assim que a vertigem da sucessão de fatos e declarações do presidente da República faz o obus de sua artilha ter a cor da lua. E, dessa forma, atenuado, torna plausível não mais distinguir onde estão a legalidade, a moralidade e a honra.

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