As vidas paralelas de Newton Cruz e Bolsonaro


Presidente foi o político que o general tentou ser, e Newton Cruz, o militar com o qual o presidente sonhava

Por Marcelo Godoy

Caro leitor,  O presidente Jair Bolsonaro havia completado 15 anos quando o Exército e a Polícia Militar de São Paulo cercaram o Vale do Ribeira, onde sua família morava, em 1970. A operação buscava capturar Carlos Lamarca e seus colegas da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Bolsonaro diz que participou da caçada, algo que só existe em sua versão dos fatos. O coronel do Exército Erasmo Dias e o coronel PM Salvador D’Aquino, cujas tropas estiveram na região, nunca mencionaram o já deputado federal em seus relatos sobre o caso. "Isso é uma coisa que não tem a menor evidência de que seja real", dizia o repórter Luiz Maklouf de Carvalho, autor do livro O Cadete e o Capitão

General Newton Cruz nos corredores do Congresso em 1999. Nesse ano, uma investigação foi aberta para investigar o atentado do Riocentro. O general foi indiciado por falso testemunho, mas a corte acabou arquivando o feito Foto: DIDA SAMPAIO/AE - 04/05/99

As trajetórias de Bolsonaro e dos homens identificados com os órgãos de controle, espionagem e repressão política da ditadura só começaram a se cruzar muito tempo depois, em setembro de 1986, após o capitão do 8.º Grupo de Artilharia Paraquedista publicar na revista Veja o artigo O soldo está baixo. O desconhecido militar abriu ali uma crise no Exército. Era véspera da eleição de 1986. O general Newton Cruz, que disputava pelo PDS uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte pelo Rio, enviou um telegrama parabenizando o capitão. Cruz fora chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI). 

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A mensagem do general tinha duas razões: a primeira era uma vingança contra o "jurista da nova República", o general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército. Leônidas garantira a transição do poder para os civis, impedindo as conjuras do Centro de Informações do Exército (CIE) para tentar abater a candidatura de Tancredo Neves, ligando-a aos comunistas. A velha acusação que envenenou a República durante 50 anos estava saindo de moda. A ideia da democracia como valor universal fazia do anticomunismo apenas uma desculpa para perpetuar no poder quem não tinha voto. 

A inflação de 215% ao ano e o desemprego mostravam o anacronismo do regime. No SNI, um dos homens de Newton Cruz, o tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira, colocava bombas em bancas de jornal e enviava cartas-bomba a entidades como a OAB. Em 1980, ele cooptou militares do DOI do I Exército (Rio), para pôr uma bomba no Riocentro, em um show sobre o 1.º de Maio. Tentou dar um bypass no subcomandante do órgão, o major Romeu Antonio Ferreira. Romeu descobriu e proibiu a ação. Pouco depois, deixou o DOI e foi para a Escola de Comando e Estado Maior. Estava aberto o caminho para o atentado que envenenou a presidência de João Figueiredo

Newton Cruz foi avisado uma hora antes de que o grupo de Perdigão ia fazer o atentado. E nada fez. Acabaria denunciado 30 anos depois pelo Ministério Público Federal. Não seria o único problema judicial do general. Em janeiro de 1983, Veja publicou um dossiê preparado pelo jornalista Alexandre von Baumgarten, no qual ele dizia que o general queria matá-lo em razão do fracasso das negociações entre a revista O Cruzeiro e o SNI. "A esta altura já deve ter sido decidida minha eliminação. A minha dúvida é se foi pelo chefe da Agência Central do SNI (Newton Cruz) ou pelo titular (Octávio Medeiros)." Baumgarten fora morto em 1982 após ser sequestrado com sua mulher. Processado, o general acabou absolvido. 

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Newton Cruz deixou o SNI em agosto de 1983 e assumiu o Comando Militar do Planalto (CMP). Ali se tornou conhecido por ser o responsável pelo cumprimento das medidas draconianas em Brasília durante a votação da Emenda Dante de Oliveira, quando a eleição direta para presidente foi derrotada no Congresso. Ameaçou fotógrafo e jornalista e bateu com o bastão de comando em carros que buzinavam nas ruas. Usava um cavalo branco, o que fazia a oposição compará-lo a Mussolini. Era tudo maledicência, garantem os colegas. Ele só não contara antes o que sabia sobre o Riocentro porque pensara na imagem da instituição. 

Brasília, 7 de maiode 1984:O general Newton Cruz, montado em seu cavalo branco, durante solenidade. Foto: ARQUIVO/ESTADÂO CONTEÚDO

Em 2010, o general revelou que impediu novos atentados após o Riocentro. Como? Marcou um encontro em um hotel do Rio com os militares do DOI e fez "cara feia para eles". Com a redemocratização, Newton Cruz foi preterido na promoção para general de exército – culpou Leônidas por isso. Resolveu aproveitar a fama adquirida e tentou se eleger deputado federal. Eis a segunda razão da carta em apoio ao capitão Bolsonaro: obter o voto militar. “Expresso meu acordo e minha tristeza com os fatos relatados em seu artigo”. Não foi o suficiente. O general tentaria ainda o governo do Rio, em 1994. Ficou em terceiro lugar. Em 1998, nova busca de uma cadeira de deputado, agora pelo PP. E outro fracasso. Após aquele primeiro telegrama, Bolsonaro quis conhecer o general. E o visitou quatro vezes – três no Rio e uma em Brasília. O capitão levou uma vez um grupo de colegas para um jantar com Cruz. É de Maklouf o relato sobre a lembrança do general sobre o episódio: “Foi uma retemperante noite”.

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O general se tornou testemunha de defesa de Bolsonaro no Conselho de Justificação que o ministro Leônidas o submeteu em razão de o capitão ter mentido sobre o plano para explodir bombas em quartéis, no Rio. "Não sento na mesma mesa que Leônidas", dizia Newton Cruz. Maklouf suspeitava que a proximidade com ele salvara Bolsonaro ao ser julgado no Superior Tribunal Militar (STM), absolvendo o capitão que fora condenado pelo Conselho de Justificação, por 3 a 0. Sem o general não haveria hoje o presidente. Dois anos mais tarde, quando Bolsonaro venceu a primeira eleição, elegendo-se vereador no Rio, Newton Cruz enviou-lhe outro telegrama: “Felicito o prezado amigo pela eleição. Espero vê-lo continuar a mesma luta com outras armas”. E foi o que Bolsonaro fez: defendeu o regime e os militares nos 30 anos que o separaram da Presidência. O capitão, que sonhou ter a carreira do general, teve sucesso onde Newton Cruz fracassou.

O general morreu no dia 15 sem conhecer a glória política. Nunca venceu uma eleição. Bolsonaro ganhou nove. Tinham em comum não só a ideologia e a fala teatral, mas também o acúmulo de processos judiciais. Newton Cruz conseguiu se livrar deles até o fim. E pôde ainda cantar Falam de Mim, como fez em entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto. Alguém pode pensar: são vidas paralelas, apesar de os varões não serem exatamente os retratados por Plutarco. É verdade que o general nunca defendeu a tortura como fez o presidente. Nem o AI-5. E tinha senso de humor. Já Bolsonaro...

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Ao se comprometer com o arbítrio ou desejá-lo no exercício do poder, um líder se distancia da pietas, a virtude romana que Spinoza, em sua Ética, ligou à civilidade e ao desejo, sob a condução da razão, de se praticar o bem. Sem piedade, pode-se governar. A modernidade tornou o cálculo da eficiência a suprema autoridade para decidir propósitos políticos, sem considerações morais. Não há mais quem diga: ich kann nicht anders. Apesar disso, ainda não há glória sem piedade.

Caro leitor,  O presidente Jair Bolsonaro havia completado 15 anos quando o Exército e a Polícia Militar de São Paulo cercaram o Vale do Ribeira, onde sua família morava, em 1970. A operação buscava capturar Carlos Lamarca e seus colegas da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Bolsonaro diz que participou da caçada, algo que só existe em sua versão dos fatos. O coronel do Exército Erasmo Dias e o coronel PM Salvador D’Aquino, cujas tropas estiveram na região, nunca mencionaram o já deputado federal em seus relatos sobre o caso. "Isso é uma coisa que não tem a menor evidência de que seja real", dizia o repórter Luiz Maklouf de Carvalho, autor do livro O Cadete e o Capitão

General Newton Cruz nos corredores do Congresso em 1999. Nesse ano, uma investigação foi aberta para investigar o atentado do Riocentro. O general foi indiciado por falso testemunho, mas a corte acabou arquivando o feito Foto: DIDA SAMPAIO/AE - 04/05/99

As trajetórias de Bolsonaro e dos homens identificados com os órgãos de controle, espionagem e repressão política da ditadura só começaram a se cruzar muito tempo depois, em setembro de 1986, após o capitão do 8.º Grupo de Artilharia Paraquedista publicar na revista Veja o artigo O soldo está baixo. O desconhecido militar abriu ali uma crise no Exército. Era véspera da eleição de 1986. O general Newton Cruz, que disputava pelo PDS uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte pelo Rio, enviou um telegrama parabenizando o capitão. Cruz fora chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI). 

A mensagem do general tinha duas razões: a primeira era uma vingança contra o "jurista da nova República", o general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército. Leônidas garantira a transição do poder para os civis, impedindo as conjuras do Centro de Informações do Exército (CIE) para tentar abater a candidatura de Tancredo Neves, ligando-a aos comunistas. A velha acusação que envenenou a República durante 50 anos estava saindo de moda. A ideia da democracia como valor universal fazia do anticomunismo apenas uma desculpa para perpetuar no poder quem não tinha voto. 

A inflação de 215% ao ano e o desemprego mostravam o anacronismo do regime. No SNI, um dos homens de Newton Cruz, o tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira, colocava bombas em bancas de jornal e enviava cartas-bomba a entidades como a OAB. Em 1980, ele cooptou militares do DOI do I Exército (Rio), para pôr uma bomba no Riocentro, em um show sobre o 1.º de Maio. Tentou dar um bypass no subcomandante do órgão, o major Romeu Antonio Ferreira. Romeu descobriu e proibiu a ação. Pouco depois, deixou o DOI e foi para a Escola de Comando e Estado Maior. Estava aberto o caminho para o atentado que envenenou a presidência de João Figueiredo

Newton Cruz foi avisado uma hora antes de que o grupo de Perdigão ia fazer o atentado. E nada fez. Acabaria denunciado 30 anos depois pelo Ministério Público Federal. Não seria o único problema judicial do general. Em janeiro de 1983, Veja publicou um dossiê preparado pelo jornalista Alexandre von Baumgarten, no qual ele dizia que o general queria matá-lo em razão do fracasso das negociações entre a revista O Cruzeiro e o SNI. "A esta altura já deve ter sido decidida minha eliminação. A minha dúvida é se foi pelo chefe da Agência Central do SNI (Newton Cruz) ou pelo titular (Octávio Medeiros)." Baumgarten fora morto em 1982 após ser sequestrado com sua mulher. Processado, o general acabou absolvido. 

Newton Cruz deixou o SNI em agosto de 1983 e assumiu o Comando Militar do Planalto (CMP). Ali se tornou conhecido por ser o responsável pelo cumprimento das medidas draconianas em Brasília durante a votação da Emenda Dante de Oliveira, quando a eleição direta para presidente foi derrotada no Congresso. Ameaçou fotógrafo e jornalista e bateu com o bastão de comando em carros que buzinavam nas ruas. Usava um cavalo branco, o que fazia a oposição compará-lo a Mussolini. Era tudo maledicência, garantem os colegas. Ele só não contara antes o que sabia sobre o Riocentro porque pensara na imagem da instituição. 

Brasília, 7 de maiode 1984:O general Newton Cruz, montado em seu cavalo branco, durante solenidade. Foto: ARQUIVO/ESTADÂO CONTEÚDO

Em 2010, o general revelou que impediu novos atentados após o Riocentro. Como? Marcou um encontro em um hotel do Rio com os militares do DOI e fez "cara feia para eles". Com a redemocratização, Newton Cruz foi preterido na promoção para general de exército – culpou Leônidas por isso. Resolveu aproveitar a fama adquirida e tentou se eleger deputado federal. Eis a segunda razão da carta em apoio ao capitão Bolsonaro: obter o voto militar. “Expresso meu acordo e minha tristeza com os fatos relatados em seu artigo”. Não foi o suficiente. O general tentaria ainda o governo do Rio, em 1994. Ficou em terceiro lugar. Em 1998, nova busca de uma cadeira de deputado, agora pelo PP. E outro fracasso. Após aquele primeiro telegrama, Bolsonaro quis conhecer o general. E o visitou quatro vezes – três no Rio e uma em Brasília. O capitão levou uma vez um grupo de colegas para um jantar com Cruz. É de Maklouf o relato sobre a lembrança do general sobre o episódio: “Foi uma retemperante noite”.

O general se tornou testemunha de defesa de Bolsonaro no Conselho de Justificação que o ministro Leônidas o submeteu em razão de o capitão ter mentido sobre o plano para explodir bombas em quartéis, no Rio. "Não sento na mesma mesa que Leônidas", dizia Newton Cruz. Maklouf suspeitava que a proximidade com ele salvara Bolsonaro ao ser julgado no Superior Tribunal Militar (STM), absolvendo o capitão que fora condenado pelo Conselho de Justificação, por 3 a 0. Sem o general não haveria hoje o presidente. Dois anos mais tarde, quando Bolsonaro venceu a primeira eleição, elegendo-se vereador no Rio, Newton Cruz enviou-lhe outro telegrama: “Felicito o prezado amigo pela eleição. Espero vê-lo continuar a mesma luta com outras armas”. E foi o que Bolsonaro fez: defendeu o regime e os militares nos 30 anos que o separaram da Presidência. O capitão, que sonhou ter a carreira do general, teve sucesso onde Newton Cruz fracassou.

O general morreu no dia 15 sem conhecer a glória política. Nunca venceu uma eleição. Bolsonaro ganhou nove. Tinham em comum não só a ideologia e a fala teatral, mas também o acúmulo de processos judiciais. Newton Cruz conseguiu se livrar deles até o fim. E pôde ainda cantar Falam de Mim, como fez em entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto. Alguém pode pensar: são vidas paralelas, apesar de os varões não serem exatamente os retratados por Plutarco. É verdade que o general nunca defendeu a tortura como fez o presidente. Nem o AI-5. E tinha senso de humor. Já Bolsonaro...

Ao se comprometer com o arbítrio ou desejá-lo no exercício do poder, um líder se distancia da pietas, a virtude romana que Spinoza, em sua Ética, ligou à civilidade e ao desejo, sob a condução da razão, de se praticar o bem. Sem piedade, pode-se governar. A modernidade tornou o cálculo da eficiência a suprema autoridade para decidir propósitos políticos, sem considerações morais. Não há mais quem diga: ich kann nicht anders. Apesar disso, ainda não há glória sem piedade.

Caro leitor,  O presidente Jair Bolsonaro havia completado 15 anos quando o Exército e a Polícia Militar de São Paulo cercaram o Vale do Ribeira, onde sua família morava, em 1970. A operação buscava capturar Carlos Lamarca e seus colegas da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Bolsonaro diz que participou da caçada, algo que só existe em sua versão dos fatos. O coronel do Exército Erasmo Dias e o coronel PM Salvador D’Aquino, cujas tropas estiveram na região, nunca mencionaram o já deputado federal em seus relatos sobre o caso. "Isso é uma coisa que não tem a menor evidência de que seja real", dizia o repórter Luiz Maklouf de Carvalho, autor do livro O Cadete e o Capitão

General Newton Cruz nos corredores do Congresso em 1999. Nesse ano, uma investigação foi aberta para investigar o atentado do Riocentro. O general foi indiciado por falso testemunho, mas a corte acabou arquivando o feito Foto: DIDA SAMPAIO/AE - 04/05/99

As trajetórias de Bolsonaro e dos homens identificados com os órgãos de controle, espionagem e repressão política da ditadura só começaram a se cruzar muito tempo depois, em setembro de 1986, após o capitão do 8.º Grupo de Artilharia Paraquedista publicar na revista Veja o artigo O soldo está baixo. O desconhecido militar abriu ali uma crise no Exército. Era véspera da eleição de 1986. O general Newton Cruz, que disputava pelo PDS uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte pelo Rio, enviou um telegrama parabenizando o capitão. Cruz fora chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI). 

A mensagem do general tinha duas razões: a primeira era uma vingança contra o "jurista da nova República", o general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército. Leônidas garantira a transição do poder para os civis, impedindo as conjuras do Centro de Informações do Exército (CIE) para tentar abater a candidatura de Tancredo Neves, ligando-a aos comunistas. A velha acusação que envenenou a República durante 50 anos estava saindo de moda. A ideia da democracia como valor universal fazia do anticomunismo apenas uma desculpa para perpetuar no poder quem não tinha voto. 

A inflação de 215% ao ano e o desemprego mostravam o anacronismo do regime. No SNI, um dos homens de Newton Cruz, o tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira, colocava bombas em bancas de jornal e enviava cartas-bomba a entidades como a OAB. Em 1980, ele cooptou militares do DOI do I Exército (Rio), para pôr uma bomba no Riocentro, em um show sobre o 1.º de Maio. Tentou dar um bypass no subcomandante do órgão, o major Romeu Antonio Ferreira. Romeu descobriu e proibiu a ação. Pouco depois, deixou o DOI e foi para a Escola de Comando e Estado Maior. Estava aberto o caminho para o atentado que envenenou a presidência de João Figueiredo

Newton Cruz foi avisado uma hora antes de que o grupo de Perdigão ia fazer o atentado. E nada fez. Acabaria denunciado 30 anos depois pelo Ministério Público Federal. Não seria o único problema judicial do general. Em janeiro de 1983, Veja publicou um dossiê preparado pelo jornalista Alexandre von Baumgarten, no qual ele dizia que o general queria matá-lo em razão do fracasso das negociações entre a revista O Cruzeiro e o SNI. "A esta altura já deve ter sido decidida minha eliminação. A minha dúvida é se foi pelo chefe da Agência Central do SNI (Newton Cruz) ou pelo titular (Octávio Medeiros)." Baumgarten fora morto em 1982 após ser sequestrado com sua mulher. Processado, o general acabou absolvido. 

Newton Cruz deixou o SNI em agosto de 1983 e assumiu o Comando Militar do Planalto (CMP). Ali se tornou conhecido por ser o responsável pelo cumprimento das medidas draconianas em Brasília durante a votação da Emenda Dante de Oliveira, quando a eleição direta para presidente foi derrotada no Congresso. Ameaçou fotógrafo e jornalista e bateu com o bastão de comando em carros que buzinavam nas ruas. Usava um cavalo branco, o que fazia a oposição compará-lo a Mussolini. Era tudo maledicência, garantem os colegas. Ele só não contara antes o que sabia sobre o Riocentro porque pensara na imagem da instituição. 

Brasília, 7 de maiode 1984:O general Newton Cruz, montado em seu cavalo branco, durante solenidade. Foto: ARQUIVO/ESTADÂO CONTEÚDO

Em 2010, o general revelou que impediu novos atentados após o Riocentro. Como? Marcou um encontro em um hotel do Rio com os militares do DOI e fez "cara feia para eles". Com a redemocratização, Newton Cruz foi preterido na promoção para general de exército – culpou Leônidas por isso. Resolveu aproveitar a fama adquirida e tentou se eleger deputado federal. Eis a segunda razão da carta em apoio ao capitão Bolsonaro: obter o voto militar. “Expresso meu acordo e minha tristeza com os fatos relatados em seu artigo”. Não foi o suficiente. O general tentaria ainda o governo do Rio, em 1994. Ficou em terceiro lugar. Em 1998, nova busca de uma cadeira de deputado, agora pelo PP. E outro fracasso. Após aquele primeiro telegrama, Bolsonaro quis conhecer o general. E o visitou quatro vezes – três no Rio e uma em Brasília. O capitão levou uma vez um grupo de colegas para um jantar com Cruz. É de Maklouf o relato sobre a lembrança do general sobre o episódio: “Foi uma retemperante noite”.

O general se tornou testemunha de defesa de Bolsonaro no Conselho de Justificação que o ministro Leônidas o submeteu em razão de o capitão ter mentido sobre o plano para explodir bombas em quartéis, no Rio. "Não sento na mesma mesa que Leônidas", dizia Newton Cruz. Maklouf suspeitava que a proximidade com ele salvara Bolsonaro ao ser julgado no Superior Tribunal Militar (STM), absolvendo o capitão que fora condenado pelo Conselho de Justificação, por 3 a 0. Sem o general não haveria hoje o presidente. Dois anos mais tarde, quando Bolsonaro venceu a primeira eleição, elegendo-se vereador no Rio, Newton Cruz enviou-lhe outro telegrama: “Felicito o prezado amigo pela eleição. Espero vê-lo continuar a mesma luta com outras armas”. E foi o que Bolsonaro fez: defendeu o regime e os militares nos 30 anos que o separaram da Presidência. O capitão, que sonhou ter a carreira do general, teve sucesso onde Newton Cruz fracassou.

O general morreu no dia 15 sem conhecer a glória política. Nunca venceu uma eleição. Bolsonaro ganhou nove. Tinham em comum não só a ideologia e a fala teatral, mas também o acúmulo de processos judiciais. Newton Cruz conseguiu se livrar deles até o fim. E pôde ainda cantar Falam de Mim, como fez em entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto. Alguém pode pensar: são vidas paralelas, apesar de os varões não serem exatamente os retratados por Plutarco. É verdade que o general nunca defendeu a tortura como fez o presidente. Nem o AI-5. E tinha senso de humor. Já Bolsonaro...

Ao se comprometer com o arbítrio ou desejá-lo no exercício do poder, um líder se distancia da pietas, a virtude romana que Spinoza, em sua Ética, ligou à civilidade e ao desejo, sob a condução da razão, de se praticar o bem. Sem piedade, pode-se governar. A modernidade tornou o cálculo da eficiência a suprema autoridade para decidir propósitos políticos, sem considerações morais. Não há mais quem diga: ich kann nicht anders. Apesar disso, ainda não há glória sem piedade.

Caro leitor,  O presidente Jair Bolsonaro havia completado 15 anos quando o Exército e a Polícia Militar de São Paulo cercaram o Vale do Ribeira, onde sua família morava, em 1970. A operação buscava capturar Carlos Lamarca e seus colegas da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Bolsonaro diz que participou da caçada, algo que só existe em sua versão dos fatos. O coronel do Exército Erasmo Dias e o coronel PM Salvador D’Aquino, cujas tropas estiveram na região, nunca mencionaram o já deputado federal em seus relatos sobre o caso. "Isso é uma coisa que não tem a menor evidência de que seja real", dizia o repórter Luiz Maklouf de Carvalho, autor do livro O Cadete e o Capitão

General Newton Cruz nos corredores do Congresso em 1999. Nesse ano, uma investigação foi aberta para investigar o atentado do Riocentro. O general foi indiciado por falso testemunho, mas a corte acabou arquivando o feito Foto: DIDA SAMPAIO/AE - 04/05/99

As trajetórias de Bolsonaro e dos homens identificados com os órgãos de controle, espionagem e repressão política da ditadura só começaram a se cruzar muito tempo depois, em setembro de 1986, após o capitão do 8.º Grupo de Artilharia Paraquedista publicar na revista Veja o artigo O soldo está baixo. O desconhecido militar abriu ali uma crise no Exército. Era véspera da eleição de 1986. O general Newton Cruz, que disputava pelo PDS uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte pelo Rio, enviou um telegrama parabenizando o capitão. Cruz fora chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI). 

A mensagem do general tinha duas razões: a primeira era uma vingança contra o "jurista da nova República", o general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército. Leônidas garantira a transição do poder para os civis, impedindo as conjuras do Centro de Informações do Exército (CIE) para tentar abater a candidatura de Tancredo Neves, ligando-a aos comunistas. A velha acusação que envenenou a República durante 50 anos estava saindo de moda. A ideia da democracia como valor universal fazia do anticomunismo apenas uma desculpa para perpetuar no poder quem não tinha voto. 

A inflação de 215% ao ano e o desemprego mostravam o anacronismo do regime. No SNI, um dos homens de Newton Cruz, o tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira, colocava bombas em bancas de jornal e enviava cartas-bomba a entidades como a OAB. Em 1980, ele cooptou militares do DOI do I Exército (Rio), para pôr uma bomba no Riocentro, em um show sobre o 1.º de Maio. Tentou dar um bypass no subcomandante do órgão, o major Romeu Antonio Ferreira. Romeu descobriu e proibiu a ação. Pouco depois, deixou o DOI e foi para a Escola de Comando e Estado Maior. Estava aberto o caminho para o atentado que envenenou a presidência de João Figueiredo

Newton Cruz foi avisado uma hora antes de que o grupo de Perdigão ia fazer o atentado. E nada fez. Acabaria denunciado 30 anos depois pelo Ministério Público Federal. Não seria o único problema judicial do general. Em janeiro de 1983, Veja publicou um dossiê preparado pelo jornalista Alexandre von Baumgarten, no qual ele dizia que o general queria matá-lo em razão do fracasso das negociações entre a revista O Cruzeiro e o SNI. "A esta altura já deve ter sido decidida minha eliminação. A minha dúvida é se foi pelo chefe da Agência Central do SNI (Newton Cruz) ou pelo titular (Octávio Medeiros)." Baumgarten fora morto em 1982 após ser sequestrado com sua mulher. Processado, o general acabou absolvido. 

Newton Cruz deixou o SNI em agosto de 1983 e assumiu o Comando Militar do Planalto (CMP). Ali se tornou conhecido por ser o responsável pelo cumprimento das medidas draconianas em Brasília durante a votação da Emenda Dante de Oliveira, quando a eleição direta para presidente foi derrotada no Congresso. Ameaçou fotógrafo e jornalista e bateu com o bastão de comando em carros que buzinavam nas ruas. Usava um cavalo branco, o que fazia a oposição compará-lo a Mussolini. Era tudo maledicência, garantem os colegas. Ele só não contara antes o que sabia sobre o Riocentro porque pensara na imagem da instituição. 

Brasília, 7 de maiode 1984:O general Newton Cruz, montado em seu cavalo branco, durante solenidade. Foto: ARQUIVO/ESTADÂO CONTEÚDO

Em 2010, o general revelou que impediu novos atentados após o Riocentro. Como? Marcou um encontro em um hotel do Rio com os militares do DOI e fez "cara feia para eles". Com a redemocratização, Newton Cruz foi preterido na promoção para general de exército – culpou Leônidas por isso. Resolveu aproveitar a fama adquirida e tentou se eleger deputado federal. Eis a segunda razão da carta em apoio ao capitão Bolsonaro: obter o voto militar. “Expresso meu acordo e minha tristeza com os fatos relatados em seu artigo”. Não foi o suficiente. O general tentaria ainda o governo do Rio, em 1994. Ficou em terceiro lugar. Em 1998, nova busca de uma cadeira de deputado, agora pelo PP. E outro fracasso. Após aquele primeiro telegrama, Bolsonaro quis conhecer o general. E o visitou quatro vezes – três no Rio e uma em Brasília. O capitão levou uma vez um grupo de colegas para um jantar com Cruz. É de Maklouf o relato sobre a lembrança do general sobre o episódio: “Foi uma retemperante noite”.

O general se tornou testemunha de defesa de Bolsonaro no Conselho de Justificação que o ministro Leônidas o submeteu em razão de o capitão ter mentido sobre o plano para explodir bombas em quartéis, no Rio. "Não sento na mesma mesa que Leônidas", dizia Newton Cruz. Maklouf suspeitava que a proximidade com ele salvara Bolsonaro ao ser julgado no Superior Tribunal Militar (STM), absolvendo o capitão que fora condenado pelo Conselho de Justificação, por 3 a 0. Sem o general não haveria hoje o presidente. Dois anos mais tarde, quando Bolsonaro venceu a primeira eleição, elegendo-se vereador no Rio, Newton Cruz enviou-lhe outro telegrama: “Felicito o prezado amigo pela eleição. Espero vê-lo continuar a mesma luta com outras armas”. E foi o que Bolsonaro fez: defendeu o regime e os militares nos 30 anos que o separaram da Presidência. O capitão, que sonhou ter a carreira do general, teve sucesso onde Newton Cruz fracassou.

O general morreu no dia 15 sem conhecer a glória política. Nunca venceu uma eleição. Bolsonaro ganhou nove. Tinham em comum não só a ideologia e a fala teatral, mas também o acúmulo de processos judiciais. Newton Cruz conseguiu se livrar deles até o fim. E pôde ainda cantar Falam de Mim, como fez em entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto. Alguém pode pensar: são vidas paralelas, apesar de os varões não serem exatamente os retratados por Plutarco. É verdade que o general nunca defendeu a tortura como fez o presidente. Nem o AI-5. E tinha senso de humor. Já Bolsonaro...

Ao se comprometer com o arbítrio ou desejá-lo no exercício do poder, um líder se distancia da pietas, a virtude romana que Spinoza, em sua Ética, ligou à civilidade e ao desejo, sob a condução da razão, de se praticar o bem. Sem piedade, pode-se governar. A modernidade tornou o cálculo da eficiência a suprema autoridade para decidir propósitos políticos, sem considerações morais. Não há mais quem diga: ich kann nicht anders. Apesar disso, ainda não há glória sem piedade.

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