Caro leitor,
para o presidente Jair Bolsonaro, a única forma de o País deter ameaças à sua soberania é por meio do poderio militar. O presidente se coloca entre aqueles que consideram as relações entre as Nações marcadas por interesses imediatos, onde a pólvora, no seu linguajar, é a única solução quando a saliva acaba. Sua visão das relações internacionais contamina a política doméstica. Em vez de buscar consenso e harmonia, Bolsonaro trata os demais poderes da República como adversários. Não é à toa que sua forma de lidar com eles sempre usa a referência a ameaças capazes de deter o “inimigo” ao lhe negar a esperança de algum ganho.
Um presidente assim condicionado acredita que o melhor caminho para sua reeleição é ter o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, como vice pelos próximos quatro anos. Diante da estagnação da candidatura de Sérgio Moro (Podemos), o movimento teria como objetivo manter a coesão do público militar por meio da atração exercida por sua candidatura – apesar de todos os agravos feitos a generais em seu governo. Bolsonaro, dessa forma, manteria a pólvora à sua disposição.
A dissuasão aos demais Poderes se completaria com a perspectiva de o general Freire Gomes assumir o comando do Exército. Força Especial, ele era o candidato in pectore do presidente e do general Luiz Eduardo Ramos para a cadeira que ficou com o general Paulo Sérgio de Oliveira, quando Edson Pujol foi demitido, em março de 2021. Depois, por pouco, a crise envolvendo o general Eduardo Pazuello não proporcionou ao presidente outra oportunidade para pôr seu candidato no comando da Força Terrestre.
Como Bolsonaro nunca desistiu da ideia – e como o Exército não é a Polícia Federal –, há quem aposte que a solução para satisfazer o chefe será "premiar" Paulo Sérgio e entregar-lhe o ministério da Defesa, um cenário que ainda deve se confirmar, pois, mais de uma vez, os feitiços engendrados no Palácio do Planalto caíram no vazio da vida real. É nesta situação que está a Pasta, em um momento em que a ordem mundial surgida com a globalização é revista em razão da pandemia e do conflito na Ucrânia. Em vez de se preparar para essa nova realidade, a Defesa é tratada como instrumento de dissuasão presidencial.
Na semana passada, a maior indústria bélica do País – a Avibras – entrou em recuperação judicial. O que o atual ministro ou um futuro ocupante da Pasta têm a dizer sobre a ameaça que paira sobre uma empresa estratégica para a qualidade da pólvora que o Brasil dispõe. É a Avibras que fabricará o Míssil Tático de Cruzeiro AV-TM 300 e sua versão para os F-39 Gripen da Aeronáutica, o MICLA-BR, assim como já produz o sistema de lançamento de foguetes e mísseis Astros 2020. Sem empresas como ela, o poder militar do Brasil se resumirá à saliva de Bolsonaro.
O jornalista do Estadão Roberto Godoy, um dos maiores especialistas em Defesa deste País, acredita que, com o fim da pandemia e com a normalização dos negócios internacionais, a Avibras terá sucesso em sua recuperação judicial. Na sexta-feira, o ministro Braga Netto esteve na Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme). Na publicação feita pelo ministério, nenhuma palavra sobre a crise da Avibras. O general disse acreditar ser importante “incentivar a população a se envolver nas temáticas da soberania nacional”: “É necessário o desenvolvimento de uma mentalidade de defesa na sociedade brasileira”. Ele está certo.
Mas para fazer isso é preciso levar o tema para além dos alunos do Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército. É preciso explicar à população qual o papel da Pasta na crise da Avibras e como ela pretende dar continuidade aos projetos que desenvolvem a capacidade nacional de dissuasão, caso a previsão de Roberto Godoy não se confirme. Ou será que o ministro vai pedir a Vladimir Putin que entregue ao País a tecnologia sensível que outras Nações se negam a entregar, como a Marinha bem sabe em razão do projeto do submarino nuclear?
Um ministro da Defesa deve se preocupar em como prevenir que o Brasil seja envolvido em conflitos. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Juliano da Silva Cortinhas, investir no poder das Forças Armadas não é a única maneira de se fazer isso. É preciso saber onde e como gastar dinheiro, além de ter consciência de que a força não é a única forma capaz de dissuadir uma ameaça – há ainda fatores geográficos, econômicos e culturais. E eles são importantes para o Brasil.
É isso que o professor mostra em seu artigo The brazilian way of dissuasion and how it affects traditional views of the concept.Em vez de mobilidade e tecnologias que contribuam para a dissuasão de ameaças extrarregionais na Amazônia e no pré-sal, os governos insistem em envolver os militares na entrega de água com carro-pipa no Nordeste, em revistas de presídios, em escolas cívico-militares e em operações nos morros no Rio. Não é o tamanho, a presença no terreno e os cargos no governo que trarão eficiência às Forças Armadas. Elas precisam produzir menos generais candidatos à vice-Presidência e mais homens capazes de transformá-las em instrumentos modernos de garantia da soberania nacional.