Caro leitor, Em julho de 2021, Walter Braga Netto, então Ministro da Defesa, condicionou as eleições à aprovação pelo Congresso da pauta bolsonarista do voto impresso. Nove meses depois, uma palestra de Luís Roberto Barroso para os estudantes pretendia mostrar o quanto os militares são pressionados pelos políticos para descer à rua e resolver as disputas civis em nossa República. Ao sugerir como fato a desconfiança de que os militares bolsonaristas estivessem buscando envolver as Forças Armadas em sua tentativa de desacreditar as urnas eletrônicas, o ministro pretendia criticar o uso político da caserna, citando o exemplo da Venezuela.
É verdade que militares cooptados pelo chavismo são o maior sustentáculo da ditadura que controla o país vizinho, mas, se Barroso quis sugerir que esse era o nosso futuro, esqueceu de olhar para o nosso presente. E ele está em outro país latino-americano: a Colômbia. Ali, o líder das pesquisas para a eleição presidencial em 29 de maio, o senador Gustavo Petro, candidato da coalizão esquerdista Pacto Histórico, resolveu se manifestar pelo Twitter, no dia 20 de abril, após o assassinato de seis soldados do Exército pelos narcoterroristas do Clã do Golfo.
“Enquanto soldados são assassinados pelo Clã do Golfo (cartel da droga), alguns generais estão na folha de pagamento do Clã. A cúpula se corrompe enquanto os político ligados ao narcotráfico são os que acabam promovendo os generais.” Ex-prefeito de Bogotá, Petro foi guerrilheiro do M-19 e conta com o apoio de seu partido – o Colômbia Humana – e da União Patriótica, que agrega os comunistas e outros movimentos esquerdistas.
A reação do comandante do Exército colombiano, general Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, foi quase imediata. E veio pela mesma rede social, no dia 22. “Não há a quem doa mais a morte de um soldado do que aos fardados e às suas famílias. O sacrifício deles pelo país não deveria ser usado em narrativas de campanha política.” O general continua: “Senador, não use de sua investidura (inviolabilidade parlamentar) para querer fazer politicagem com a morte de nossos soldados, mas cumpra seu dever de cidadão de fundamentar a denúncia no Ministério Público”. E lembrou um episódio em que o senador teria sido flagrado com uma bolsa de dinheiro, que mais tarde a Justiça considerou ser de origem lícita.
O general concluiu: “À instituição mais antiga deste país, cujos integrantes – homens e mulheres – de maneira incondicional defenderam por mais de 200 anos a democracia desta Nação, ofertando suas próprias vidas, exijo respeito”. Começava um tsunami, com políticos de todas as tendências condenando ou defendendo as declarações do general. Acusaram Zapateiro de se intrometer na campanha depois que o direitista Óscar Iván Zuluaga, candidato do presidente Iván Duque, se retirou da eleição para apoiar o ex-prefeito de Medellín Federico Gutiérrez.
Como por aqui Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem evitado embates com os militares, coube a Barroso desempenhar o papel de Petro e açular os quartéis. Em vez de tuite, a reação veio por meio de nota do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira. Ex-comandante do Exército – assumira a Força Terrestre em meio à crise que levou à degola de toda a cúpula militar, em março de 2021 –, ele assumiu o ministério depois que seu colega, o general Braga Netto, resolveu se afastar do cargo para ser o vice na chapa de Jair Bolsonaro.
Escreveu o titular da Defesa: "Afirmar que as Forças Armadas foram orientadas a atacar o sistema eleitoral, ainda mais sem a apresentação de qualquer prova ou evidência de quem orientou ou como isso aconteceu, é irresponsável e constitui-se em ofensa grave a essas Instituições Nacionais Permanentes do Estado Brasileiro. Além disso, afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições”. Como na Colômbia, tratou-se de defender a honra da caserna. A nota tem a assinatura somente de Oliveira – o ministro –, em vez de outras manifestações da Pasta que receberam o jamegão de todos os comandantes das Forças.
Seria, portanto, mais uma reposta de governo do que dos militares? Sim e não. A nota agrada aos oficiais generais que trazem o governo Bolsonaro no lado direito do peito bem como àqueles que se cansaram dos radicalismos do capitão. O desagravo à caserna é um velho instrumento usado na política, desde a Questão Militar, no século 19. Foi por meio dele que os fardados desembarcaram na praça pública, como se se tratasse apenas da defesa de princípios morais. Assim os tenentes se mobilizaram em torno da candidatura de Nilo Peçanha e da Reação Republicana.
“Completamente desnecessárias as declarações do ministro Barroso. Eu lamento esse tipo de pronunciamento que em nada contribui para a tranquilidade da Nação”, afirmou o deputado federal general Roberto Peternelli(União-SP). Considerado um moderado entre os colegas, Peternelli soube da nota da Defesa quando estava em um jantar no interior de São Paulo. “O Exército nunca desorientou ou desacreditou o sistema eleitoral. Isso não corresponde à realidade. É importante não pôr lenha na fogueira.” Tem razão sobre a fogueira.
Se Barroso quisesse alimentá-la podia lembrar o que disse Bolsonaro em sua live de 29 de julho de 2021 a respeito das urnas eletrônicas: "Alguns desses criticaram militares do meu lado, dizendo que isso não é uma questão para nós tratarmos. Que é uma questão política. Não. Todos são obrigados a votar no Brasil, de maiores de 18 anos até os 70. Então, interessa a todos nós". Ou ainda constatar a inspiração no presidente na nota da Defesa, quando esta diz: "As eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos". Não. A eleição não é uma questão para a Defesa. E é um erro envolver os militares nisso.
Agora se está assim: um general acha que eleições são um caso de segurança nacional e um ministro do STF acredita saber o que é ordem unida. Um italiano diria que toda semana a República é posta allo sbaràglio em Brasília. Não é a primeira vez que ministros do STF se envolvem em polêmicas com os generais durante o governo Bolsonaro. Parece que muita gente em Brasília esqueceu que a República exige a isenção, o apartidarismo e a neutralidade de magistrados e também dos militares. A prudência recomenda o silêncio político aos que detém as armas assim como aos que podem sentenciar. Enfim, é preciso lembrar não só a história da Venezuela, mas também a da Colômbia.