Temer revela caminho dos militares até o governo Bolsonaro


Ex-presidente defende acabar com diferenças entre militares e civis e conta em livro a razão que o levou a chamar militares para compor seu ministério

Por Marcelo Godoy

Caro leitor,

   a história é feita de relatos que devem ser tornados inteligíveis. Em L’histoire sous surveillance, Marc Ferro pensou em uma história que fosse livre de toda vigilância – fosse de partidos, de governos ou grupos. O relato – conclui o historiador francês – é apenas uma etapa de análise, não um ponto de chegada; é material de estudo, que pode ser criticado, criando uma nova narrativa. Diz Ferro: “Confrontá-los revela de uma só vez a história tal como ela foi vivida e a função atual da história”.

O ex-presidente Michel Temer em seu escritório na no bairroItaim Bibi, em São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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É dessa forma que deve ser lido o relato de Michel Temer sobre suas relações com os militares nos meses da crise do impeachment de Dilma Rousseff. Em seu livro, A Escolha, o ex-presidente relata ao seu entrevistador, o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, os contatos que manteve com a cúpula do Exército quando ainda vice-presidente. Dos encontros participaram o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e o chefe do Estado-Maior, general Sérgio Etchegoyen – já presidente, Temer manteria Villas Bôas no cargo e nomearia Etchegoyen ministro do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O apoio a Temer entre os militares era inconteste. Em 2017 e 2018, apesar de atraídos pelo lavajatismo, muitos generais criticavam abertamente as denúncias apresentadas pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente. Não que antevissem falta de provas ou desequilíbrio nas ações do procurador-geral. Simplesmente muitos não disfarçavam o desconforto com o fato de as investigações ameaçarem as forças políticas que então apoiavam.

O general Sérgio Etchegoyen, que assumiu o Gabinete de Segurança Institucional Foto: Divulgação
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Desde que Jair Bolsonaro fora eleito e a Esplanada foi ocupada por generais e coronéis, o mundo político parece ter esquecido que as origens da volta aos militares à política existiam antes mesmo da eleição do capitão. Era 2015 e o governo Dilma começava a derreter quando Temer se encontrou pela primeira vez com Villas Bôas e Etchegoyen. O intermediário do encontro fora Rosenfield, que dele participou. Etchegoyen voltava de Moçambique e trazia na bagagem um exemplar de uma obra do escritor Mia Couto e ofereceu o livro ao vice-presidente. Temer agradeceu. A conversa entre eles foi descrita por Rosenfield como "política".  Os militares estavam desgastados com o petismo.

Razões não faltavam para o descontentamento dos generais. "O PT havia feito uma série de medidas contra as Forças Armadas”, disse Rosenfield. Ele as enumera: o Plano Nacional de Direitos Humanos-3, a Comissão Nacional daVerdade, as pressões para que o Supremo Tribunal Federal derrubasse a Lei de Anistia e a ação de Eva Chiavon,secretária executiva do Ministério da Defesa, a quem os militares atribuíam o projeto de modificar o acesso ao generalato e o currículo de suas academias. Na política externa, as relações com a Venezuela de Maduro completavam a série de objeções dos generais.

Nicolás Maduro era parte da preocupação dos militares Foto: Eduardo Munoz/REUTERS
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De acordo com o relato de Rosenfield, "o Exército estava preocupado com um diagnóstico da situação política". "O Exército tem todo o direito de se interessar por isso. É desconhecer nossa história achar que os militares, que fundaram a República, não tenham nada a dizer sobre o País", disse. O professor coloca os contatos entre Temer e os generais dentro do "relacionamento institucional". "Qual seria o problema de um vice-presidente conversar com o comandante do Exército? Ninguém estava tramando um golpe. Eu tive a percepção de que Temer poderia ser o próximo presidente e propus o diálogo. E acertei", afirma Rosenfield. "Não foi uma vez, foram várias. Tanto como vice quanto como presidente." 

Temer deu seu depoimento para o livro-entrevista à quente, quando ainda ocupava a Presidência. Disse então sobre os militares. “Nós precisamos acabar de uma vez por todas com essa história de que militar é militar e civil é civil; são todos brasileiros , de modo que posso muito naturalmente chamar um militar para compor o ministério”. E, de fato, Temer nomeara o general Silva e Luna para o Ministério da Defesa, o primeiro militar a ocupar o cargo desde a criação da Pasta, em 1999, desfazendo, assim, a subordinação política, jurídica e até simbólica das Forças Armadas ao Poder Civil.

O general Villas Bôas e o presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de transmissão do cargo para o novo comandante do Exérciuto, o general Edson Leal Pujol Foto: Dida Sampaio/Estadão
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Tratar das relações entre os civis e os militares envolvidos na crise política como a que levou ao impeachment será uma das tarefas dos historiadores desse período. O tempo presente é o tempo de se recolher relatos. Falta o de Villas Bôas. Falta o de Etchegoyen. Assim como os de outros militares que podem descrever como os generais se comportaram durante a crise e por que muitos deles se articularam em torno da candidatura de Jair Bolsonaro, até então um mero fantasma que rondava o Planalto.

Do tuíte de Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, ao pronunciamento do general Luiz Eduardo Ramos, no Comando Militar do Sudeste, em agosto do mesmo ano, contra a “impunidade”, será necessário saber o que fizeram e pensaram fazer os generais em episódios-chave até a eleição de Bolsonaro. Será preciso contar a história da articulação feita pelo general Roberto Peternelli Junior para eleger o maior número de oficiais do Exército para o Congresso. Apesar de diluídos em diversos partidos, havia um centro que orientava os candidatos, como uma espécie de partido militar informal?

As perguntas se sucedem. E os relatos minguam. Qual a repercussão nos quartéis do atentado contra Bolsonaro? Sabe-se o que Villas Bôas disse ao Estadão sobre o ambiente do País após a facada: "Nós estamos agora construindo dificuldade para que o novo governo tenha uma estabilidade, para a sua governabilidade e podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada".

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E os demais integrantes do Alto Comando do Exército? O que pensavam? E seus colegas da Marinha e da Aeronáutica? Com quem o comandante do Exército conversou naquela noite, enquanto esperava notícias da operação que salvou a vida de seu candidato? Qual o teor das conversas naquelas horas dramáticas? E o que fez o presidente Bolsonaro declarar que Villas Bôas era um dos “responsáveis por sua eleição”? “General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós”, disse Bolsonaro após tomar posse.

Era 2019. E muitos generais haviam atravessado o Rubicão com o presidente para entrarem triunfantes na Esplanada. Nenhum muro ou rio impediu que, mesmo na ativa, ocupassem cargos políticos, liquefazendo a fronteira, entre o civil e o militar. Foi Temer que começou o processo completado por Bolsonaro? Entre os generais da Esplanada estava Otávio Santana do Rêgo Barros, que deixara de ser porta-voz de Villas Bôas para assumir a mesma função no Planalto.

Otávio Rêgo Barros foi exonerado no começo de outubro do cargo de porta-voz da Presidência da República Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO
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Ali, o general viria o presidente usar o humorista Carioca para responder a perguntas dos jornalistas sobre o PIB de 2019, em vez de lhe delegar a tarefa. Imitando o capitão, Carioca distribuiu bananas à imprensa. No Planalto era assim: quem questionava Bolsonaro ganhava bananas. Não importava se jornalista ou general. Rêgo Barros testemunhou ainda o presidente participar de manifestação em frente ao quartel-general do Exército que pedia o fechamento do STF e do Congresso. O porta-voz não se demitiu. Teve o cargo extinto. Na semana passada, juntou-se aos críticos do governo.

"É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais", escreveu ao Correio Brasiliense. E concluiu: "A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um Rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — Lembra-te da próxima eleição!", escreveu o general. 

Rêgo Barros e seus colegas que deixaram a Esplanada são parte do cenário das conexões entre os generais, o atual governo e o mundo político. Mesmo que silenciem. Suas trajetórias podem nos mostrar que tipo de institucionalidade terão as relações entre os civis e os militares daqui para frente em nossa República e as suas consequências para a democracia. A revelação das conversas de Temer com a cúpula do Exército é só o começo. Ela ajuda a tornar nossa história mais inteligível. E suscita novas perguntas que esperam outros relatos para que o País compreenda o seu presente.

Caro leitor,

   a história é feita de relatos que devem ser tornados inteligíveis. Em L’histoire sous surveillance, Marc Ferro pensou em uma história que fosse livre de toda vigilância – fosse de partidos, de governos ou grupos. O relato – conclui o historiador francês – é apenas uma etapa de análise, não um ponto de chegada; é material de estudo, que pode ser criticado, criando uma nova narrativa. Diz Ferro: “Confrontá-los revela de uma só vez a história tal como ela foi vivida e a função atual da história”.

O ex-presidente Michel Temer em seu escritório na no bairroItaim Bibi, em São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

É dessa forma que deve ser lido o relato de Michel Temer sobre suas relações com os militares nos meses da crise do impeachment de Dilma Rousseff. Em seu livro, A Escolha, o ex-presidente relata ao seu entrevistador, o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, os contatos que manteve com a cúpula do Exército quando ainda vice-presidente. Dos encontros participaram o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e o chefe do Estado-Maior, general Sérgio Etchegoyen – já presidente, Temer manteria Villas Bôas no cargo e nomearia Etchegoyen ministro do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O apoio a Temer entre os militares era inconteste. Em 2017 e 2018, apesar de atraídos pelo lavajatismo, muitos generais criticavam abertamente as denúncias apresentadas pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente. Não que antevissem falta de provas ou desequilíbrio nas ações do procurador-geral. Simplesmente muitos não disfarçavam o desconforto com o fato de as investigações ameaçarem as forças políticas que então apoiavam.

O general Sérgio Etchegoyen, que assumiu o Gabinete de Segurança Institucional Foto: Divulgação

Desde que Jair Bolsonaro fora eleito e a Esplanada foi ocupada por generais e coronéis, o mundo político parece ter esquecido que as origens da volta aos militares à política existiam antes mesmo da eleição do capitão. Era 2015 e o governo Dilma começava a derreter quando Temer se encontrou pela primeira vez com Villas Bôas e Etchegoyen. O intermediário do encontro fora Rosenfield, que dele participou. Etchegoyen voltava de Moçambique e trazia na bagagem um exemplar de uma obra do escritor Mia Couto e ofereceu o livro ao vice-presidente. Temer agradeceu. A conversa entre eles foi descrita por Rosenfield como "política".  Os militares estavam desgastados com o petismo.

Razões não faltavam para o descontentamento dos generais. "O PT havia feito uma série de medidas contra as Forças Armadas”, disse Rosenfield. Ele as enumera: o Plano Nacional de Direitos Humanos-3, a Comissão Nacional daVerdade, as pressões para que o Supremo Tribunal Federal derrubasse a Lei de Anistia e a ação de Eva Chiavon,secretária executiva do Ministério da Defesa, a quem os militares atribuíam o projeto de modificar o acesso ao generalato e o currículo de suas academias. Na política externa, as relações com a Venezuela de Maduro completavam a série de objeções dos generais.

Nicolás Maduro era parte da preocupação dos militares Foto: Eduardo Munoz/REUTERS

De acordo com o relato de Rosenfield, "o Exército estava preocupado com um diagnóstico da situação política". "O Exército tem todo o direito de se interessar por isso. É desconhecer nossa história achar que os militares, que fundaram a República, não tenham nada a dizer sobre o País", disse. O professor coloca os contatos entre Temer e os generais dentro do "relacionamento institucional". "Qual seria o problema de um vice-presidente conversar com o comandante do Exército? Ninguém estava tramando um golpe. Eu tive a percepção de que Temer poderia ser o próximo presidente e propus o diálogo. E acertei", afirma Rosenfield. "Não foi uma vez, foram várias. Tanto como vice quanto como presidente." 

Temer deu seu depoimento para o livro-entrevista à quente, quando ainda ocupava a Presidência. Disse então sobre os militares. “Nós precisamos acabar de uma vez por todas com essa história de que militar é militar e civil é civil; são todos brasileiros , de modo que posso muito naturalmente chamar um militar para compor o ministério”. E, de fato, Temer nomeara o general Silva e Luna para o Ministério da Defesa, o primeiro militar a ocupar o cargo desde a criação da Pasta, em 1999, desfazendo, assim, a subordinação política, jurídica e até simbólica das Forças Armadas ao Poder Civil.

O general Villas Bôas e o presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de transmissão do cargo para o novo comandante do Exérciuto, o general Edson Leal Pujol Foto: Dida Sampaio/Estadão

Tratar das relações entre os civis e os militares envolvidos na crise política como a que levou ao impeachment será uma das tarefas dos historiadores desse período. O tempo presente é o tempo de se recolher relatos. Falta o de Villas Bôas. Falta o de Etchegoyen. Assim como os de outros militares que podem descrever como os generais se comportaram durante a crise e por que muitos deles se articularam em torno da candidatura de Jair Bolsonaro, até então um mero fantasma que rondava o Planalto.

Do tuíte de Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, ao pronunciamento do general Luiz Eduardo Ramos, no Comando Militar do Sudeste, em agosto do mesmo ano, contra a “impunidade”, será necessário saber o que fizeram e pensaram fazer os generais em episódios-chave até a eleição de Bolsonaro. Será preciso contar a história da articulação feita pelo general Roberto Peternelli Junior para eleger o maior número de oficiais do Exército para o Congresso. Apesar de diluídos em diversos partidos, havia um centro que orientava os candidatos, como uma espécie de partido militar informal?

As perguntas se sucedem. E os relatos minguam. Qual a repercussão nos quartéis do atentado contra Bolsonaro? Sabe-se o que Villas Bôas disse ao Estadão sobre o ambiente do País após a facada: "Nós estamos agora construindo dificuldade para que o novo governo tenha uma estabilidade, para a sua governabilidade e podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada".

E os demais integrantes do Alto Comando do Exército? O que pensavam? E seus colegas da Marinha e da Aeronáutica? Com quem o comandante do Exército conversou naquela noite, enquanto esperava notícias da operação que salvou a vida de seu candidato? Qual o teor das conversas naquelas horas dramáticas? E o que fez o presidente Bolsonaro declarar que Villas Bôas era um dos “responsáveis por sua eleição”? “General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós”, disse Bolsonaro após tomar posse.

Era 2019. E muitos generais haviam atravessado o Rubicão com o presidente para entrarem triunfantes na Esplanada. Nenhum muro ou rio impediu que, mesmo na ativa, ocupassem cargos políticos, liquefazendo a fronteira, entre o civil e o militar. Foi Temer que começou o processo completado por Bolsonaro? Entre os generais da Esplanada estava Otávio Santana do Rêgo Barros, que deixara de ser porta-voz de Villas Bôas para assumir a mesma função no Planalto.

Otávio Rêgo Barros foi exonerado no começo de outubro do cargo de porta-voz da Presidência da República Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Ali, o general viria o presidente usar o humorista Carioca para responder a perguntas dos jornalistas sobre o PIB de 2019, em vez de lhe delegar a tarefa. Imitando o capitão, Carioca distribuiu bananas à imprensa. No Planalto era assim: quem questionava Bolsonaro ganhava bananas. Não importava se jornalista ou general. Rêgo Barros testemunhou ainda o presidente participar de manifestação em frente ao quartel-general do Exército que pedia o fechamento do STF e do Congresso. O porta-voz não se demitiu. Teve o cargo extinto. Na semana passada, juntou-se aos críticos do governo.

"É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais", escreveu ao Correio Brasiliense. E concluiu: "A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um Rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — Lembra-te da próxima eleição!", escreveu o general. 

Rêgo Barros e seus colegas que deixaram a Esplanada são parte do cenário das conexões entre os generais, o atual governo e o mundo político. Mesmo que silenciem. Suas trajetórias podem nos mostrar que tipo de institucionalidade terão as relações entre os civis e os militares daqui para frente em nossa República e as suas consequências para a democracia. A revelação das conversas de Temer com a cúpula do Exército é só o começo. Ela ajuda a tornar nossa história mais inteligível. E suscita novas perguntas que esperam outros relatos para que o País compreenda o seu presente.

Caro leitor,

   a história é feita de relatos que devem ser tornados inteligíveis. Em L’histoire sous surveillance, Marc Ferro pensou em uma história que fosse livre de toda vigilância – fosse de partidos, de governos ou grupos. O relato – conclui o historiador francês – é apenas uma etapa de análise, não um ponto de chegada; é material de estudo, que pode ser criticado, criando uma nova narrativa. Diz Ferro: “Confrontá-los revela de uma só vez a história tal como ela foi vivida e a função atual da história”.

O ex-presidente Michel Temer em seu escritório na no bairroItaim Bibi, em São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

É dessa forma que deve ser lido o relato de Michel Temer sobre suas relações com os militares nos meses da crise do impeachment de Dilma Rousseff. Em seu livro, A Escolha, o ex-presidente relata ao seu entrevistador, o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, os contatos que manteve com a cúpula do Exército quando ainda vice-presidente. Dos encontros participaram o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e o chefe do Estado-Maior, general Sérgio Etchegoyen – já presidente, Temer manteria Villas Bôas no cargo e nomearia Etchegoyen ministro do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O apoio a Temer entre os militares era inconteste. Em 2017 e 2018, apesar de atraídos pelo lavajatismo, muitos generais criticavam abertamente as denúncias apresentadas pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente. Não que antevissem falta de provas ou desequilíbrio nas ações do procurador-geral. Simplesmente muitos não disfarçavam o desconforto com o fato de as investigações ameaçarem as forças políticas que então apoiavam.

O general Sérgio Etchegoyen, que assumiu o Gabinete de Segurança Institucional Foto: Divulgação

Desde que Jair Bolsonaro fora eleito e a Esplanada foi ocupada por generais e coronéis, o mundo político parece ter esquecido que as origens da volta aos militares à política existiam antes mesmo da eleição do capitão. Era 2015 e o governo Dilma começava a derreter quando Temer se encontrou pela primeira vez com Villas Bôas e Etchegoyen. O intermediário do encontro fora Rosenfield, que dele participou. Etchegoyen voltava de Moçambique e trazia na bagagem um exemplar de uma obra do escritor Mia Couto e ofereceu o livro ao vice-presidente. Temer agradeceu. A conversa entre eles foi descrita por Rosenfield como "política".  Os militares estavam desgastados com o petismo.

Razões não faltavam para o descontentamento dos generais. "O PT havia feito uma série de medidas contra as Forças Armadas”, disse Rosenfield. Ele as enumera: o Plano Nacional de Direitos Humanos-3, a Comissão Nacional daVerdade, as pressões para que o Supremo Tribunal Federal derrubasse a Lei de Anistia e a ação de Eva Chiavon,secretária executiva do Ministério da Defesa, a quem os militares atribuíam o projeto de modificar o acesso ao generalato e o currículo de suas academias. Na política externa, as relações com a Venezuela de Maduro completavam a série de objeções dos generais.

Nicolás Maduro era parte da preocupação dos militares Foto: Eduardo Munoz/REUTERS

De acordo com o relato de Rosenfield, "o Exército estava preocupado com um diagnóstico da situação política". "O Exército tem todo o direito de se interessar por isso. É desconhecer nossa história achar que os militares, que fundaram a República, não tenham nada a dizer sobre o País", disse. O professor coloca os contatos entre Temer e os generais dentro do "relacionamento institucional". "Qual seria o problema de um vice-presidente conversar com o comandante do Exército? Ninguém estava tramando um golpe. Eu tive a percepção de que Temer poderia ser o próximo presidente e propus o diálogo. E acertei", afirma Rosenfield. "Não foi uma vez, foram várias. Tanto como vice quanto como presidente." 

Temer deu seu depoimento para o livro-entrevista à quente, quando ainda ocupava a Presidência. Disse então sobre os militares. “Nós precisamos acabar de uma vez por todas com essa história de que militar é militar e civil é civil; são todos brasileiros , de modo que posso muito naturalmente chamar um militar para compor o ministério”. E, de fato, Temer nomeara o general Silva e Luna para o Ministério da Defesa, o primeiro militar a ocupar o cargo desde a criação da Pasta, em 1999, desfazendo, assim, a subordinação política, jurídica e até simbólica das Forças Armadas ao Poder Civil.

O general Villas Bôas e o presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de transmissão do cargo para o novo comandante do Exérciuto, o general Edson Leal Pujol Foto: Dida Sampaio/Estadão

Tratar das relações entre os civis e os militares envolvidos na crise política como a que levou ao impeachment será uma das tarefas dos historiadores desse período. O tempo presente é o tempo de se recolher relatos. Falta o de Villas Bôas. Falta o de Etchegoyen. Assim como os de outros militares que podem descrever como os generais se comportaram durante a crise e por que muitos deles se articularam em torno da candidatura de Jair Bolsonaro, até então um mero fantasma que rondava o Planalto.

Do tuíte de Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, ao pronunciamento do general Luiz Eduardo Ramos, no Comando Militar do Sudeste, em agosto do mesmo ano, contra a “impunidade”, será necessário saber o que fizeram e pensaram fazer os generais em episódios-chave até a eleição de Bolsonaro. Será preciso contar a história da articulação feita pelo general Roberto Peternelli Junior para eleger o maior número de oficiais do Exército para o Congresso. Apesar de diluídos em diversos partidos, havia um centro que orientava os candidatos, como uma espécie de partido militar informal?

As perguntas se sucedem. E os relatos minguam. Qual a repercussão nos quartéis do atentado contra Bolsonaro? Sabe-se o que Villas Bôas disse ao Estadão sobre o ambiente do País após a facada: "Nós estamos agora construindo dificuldade para que o novo governo tenha uma estabilidade, para a sua governabilidade e podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada".

E os demais integrantes do Alto Comando do Exército? O que pensavam? E seus colegas da Marinha e da Aeronáutica? Com quem o comandante do Exército conversou naquela noite, enquanto esperava notícias da operação que salvou a vida de seu candidato? Qual o teor das conversas naquelas horas dramáticas? E o que fez o presidente Bolsonaro declarar que Villas Bôas era um dos “responsáveis por sua eleição”? “General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós”, disse Bolsonaro após tomar posse.

Era 2019. E muitos generais haviam atravessado o Rubicão com o presidente para entrarem triunfantes na Esplanada. Nenhum muro ou rio impediu que, mesmo na ativa, ocupassem cargos políticos, liquefazendo a fronteira, entre o civil e o militar. Foi Temer que começou o processo completado por Bolsonaro? Entre os generais da Esplanada estava Otávio Santana do Rêgo Barros, que deixara de ser porta-voz de Villas Bôas para assumir a mesma função no Planalto.

Otávio Rêgo Barros foi exonerado no começo de outubro do cargo de porta-voz da Presidência da República Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Ali, o general viria o presidente usar o humorista Carioca para responder a perguntas dos jornalistas sobre o PIB de 2019, em vez de lhe delegar a tarefa. Imitando o capitão, Carioca distribuiu bananas à imprensa. No Planalto era assim: quem questionava Bolsonaro ganhava bananas. Não importava se jornalista ou general. Rêgo Barros testemunhou ainda o presidente participar de manifestação em frente ao quartel-general do Exército que pedia o fechamento do STF e do Congresso. O porta-voz não se demitiu. Teve o cargo extinto. Na semana passada, juntou-se aos críticos do governo.

"É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais", escreveu ao Correio Brasiliense. E concluiu: "A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um Rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — Lembra-te da próxima eleição!", escreveu o general. 

Rêgo Barros e seus colegas que deixaram a Esplanada são parte do cenário das conexões entre os generais, o atual governo e o mundo político. Mesmo que silenciem. Suas trajetórias podem nos mostrar que tipo de institucionalidade terão as relações entre os civis e os militares daqui para frente em nossa República e as suas consequências para a democracia. A revelação das conversas de Temer com a cúpula do Exército é só o começo. Ela ajuda a tornar nossa história mais inteligível. E suscita novas perguntas que esperam outros relatos para que o País compreenda o seu presente.

Caro leitor,

   a história é feita de relatos que devem ser tornados inteligíveis. Em L’histoire sous surveillance, Marc Ferro pensou em uma história que fosse livre de toda vigilância – fosse de partidos, de governos ou grupos. O relato – conclui o historiador francês – é apenas uma etapa de análise, não um ponto de chegada; é material de estudo, que pode ser criticado, criando uma nova narrativa. Diz Ferro: “Confrontá-los revela de uma só vez a história tal como ela foi vivida e a função atual da história”.

O ex-presidente Michel Temer em seu escritório na no bairroItaim Bibi, em São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

É dessa forma que deve ser lido o relato de Michel Temer sobre suas relações com os militares nos meses da crise do impeachment de Dilma Rousseff. Em seu livro, A Escolha, o ex-presidente relata ao seu entrevistador, o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, os contatos que manteve com a cúpula do Exército quando ainda vice-presidente. Dos encontros participaram o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e o chefe do Estado-Maior, general Sérgio Etchegoyen – já presidente, Temer manteria Villas Bôas no cargo e nomearia Etchegoyen ministro do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O apoio a Temer entre os militares era inconteste. Em 2017 e 2018, apesar de atraídos pelo lavajatismo, muitos generais criticavam abertamente as denúncias apresentadas pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente. Não que antevissem falta de provas ou desequilíbrio nas ações do procurador-geral. Simplesmente muitos não disfarçavam o desconforto com o fato de as investigações ameaçarem as forças políticas que então apoiavam.

O general Sérgio Etchegoyen, que assumiu o Gabinete de Segurança Institucional Foto: Divulgação

Desde que Jair Bolsonaro fora eleito e a Esplanada foi ocupada por generais e coronéis, o mundo político parece ter esquecido que as origens da volta aos militares à política existiam antes mesmo da eleição do capitão. Era 2015 e o governo Dilma começava a derreter quando Temer se encontrou pela primeira vez com Villas Bôas e Etchegoyen. O intermediário do encontro fora Rosenfield, que dele participou. Etchegoyen voltava de Moçambique e trazia na bagagem um exemplar de uma obra do escritor Mia Couto e ofereceu o livro ao vice-presidente. Temer agradeceu. A conversa entre eles foi descrita por Rosenfield como "política".  Os militares estavam desgastados com o petismo.

Razões não faltavam para o descontentamento dos generais. "O PT havia feito uma série de medidas contra as Forças Armadas”, disse Rosenfield. Ele as enumera: o Plano Nacional de Direitos Humanos-3, a Comissão Nacional daVerdade, as pressões para que o Supremo Tribunal Federal derrubasse a Lei de Anistia e a ação de Eva Chiavon,secretária executiva do Ministério da Defesa, a quem os militares atribuíam o projeto de modificar o acesso ao generalato e o currículo de suas academias. Na política externa, as relações com a Venezuela de Maduro completavam a série de objeções dos generais.

Nicolás Maduro era parte da preocupação dos militares Foto: Eduardo Munoz/REUTERS

De acordo com o relato de Rosenfield, "o Exército estava preocupado com um diagnóstico da situação política". "O Exército tem todo o direito de se interessar por isso. É desconhecer nossa história achar que os militares, que fundaram a República, não tenham nada a dizer sobre o País", disse. O professor coloca os contatos entre Temer e os generais dentro do "relacionamento institucional". "Qual seria o problema de um vice-presidente conversar com o comandante do Exército? Ninguém estava tramando um golpe. Eu tive a percepção de que Temer poderia ser o próximo presidente e propus o diálogo. E acertei", afirma Rosenfield. "Não foi uma vez, foram várias. Tanto como vice quanto como presidente." 

Temer deu seu depoimento para o livro-entrevista à quente, quando ainda ocupava a Presidência. Disse então sobre os militares. “Nós precisamos acabar de uma vez por todas com essa história de que militar é militar e civil é civil; são todos brasileiros , de modo que posso muito naturalmente chamar um militar para compor o ministério”. E, de fato, Temer nomeara o general Silva e Luna para o Ministério da Defesa, o primeiro militar a ocupar o cargo desde a criação da Pasta, em 1999, desfazendo, assim, a subordinação política, jurídica e até simbólica das Forças Armadas ao Poder Civil.

O general Villas Bôas e o presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de transmissão do cargo para o novo comandante do Exérciuto, o general Edson Leal Pujol Foto: Dida Sampaio/Estadão

Tratar das relações entre os civis e os militares envolvidos na crise política como a que levou ao impeachment será uma das tarefas dos historiadores desse período. O tempo presente é o tempo de se recolher relatos. Falta o de Villas Bôas. Falta o de Etchegoyen. Assim como os de outros militares que podem descrever como os generais se comportaram durante a crise e por que muitos deles se articularam em torno da candidatura de Jair Bolsonaro, até então um mero fantasma que rondava o Planalto.

Do tuíte de Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, ao pronunciamento do general Luiz Eduardo Ramos, no Comando Militar do Sudeste, em agosto do mesmo ano, contra a “impunidade”, será necessário saber o que fizeram e pensaram fazer os generais em episódios-chave até a eleição de Bolsonaro. Será preciso contar a história da articulação feita pelo general Roberto Peternelli Junior para eleger o maior número de oficiais do Exército para o Congresso. Apesar de diluídos em diversos partidos, havia um centro que orientava os candidatos, como uma espécie de partido militar informal?

As perguntas se sucedem. E os relatos minguam. Qual a repercussão nos quartéis do atentado contra Bolsonaro? Sabe-se o que Villas Bôas disse ao Estadão sobre o ambiente do País após a facada: "Nós estamos agora construindo dificuldade para que o novo governo tenha uma estabilidade, para a sua governabilidade e podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada".

E os demais integrantes do Alto Comando do Exército? O que pensavam? E seus colegas da Marinha e da Aeronáutica? Com quem o comandante do Exército conversou naquela noite, enquanto esperava notícias da operação que salvou a vida de seu candidato? Qual o teor das conversas naquelas horas dramáticas? E o que fez o presidente Bolsonaro declarar que Villas Bôas era um dos “responsáveis por sua eleição”? “General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós”, disse Bolsonaro após tomar posse.

Era 2019. E muitos generais haviam atravessado o Rubicão com o presidente para entrarem triunfantes na Esplanada. Nenhum muro ou rio impediu que, mesmo na ativa, ocupassem cargos políticos, liquefazendo a fronteira, entre o civil e o militar. Foi Temer que começou o processo completado por Bolsonaro? Entre os generais da Esplanada estava Otávio Santana do Rêgo Barros, que deixara de ser porta-voz de Villas Bôas para assumir a mesma função no Planalto.

Otávio Rêgo Barros foi exonerado no começo de outubro do cargo de porta-voz da Presidência da República Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Ali, o general viria o presidente usar o humorista Carioca para responder a perguntas dos jornalistas sobre o PIB de 2019, em vez de lhe delegar a tarefa. Imitando o capitão, Carioca distribuiu bananas à imprensa. No Planalto era assim: quem questionava Bolsonaro ganhava bananas. Não importava se jornalista ou general. Rêgo Barros testemunhou ainda o presidente participar de manifestação em frente ao quartel-general do Exército que pedia o fechamento do STF e do Congresso. O porta-voz não se demitiu. Teve o cargo extinto. Na semana passada, juntou-se aos críticos do governo.

"É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais", escreveu ao Correio Brasiliense. E concluiu: "A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um Rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — Lembra-te da próxima eleição!", escreveu o general. 

Rêgo Barros e seus colegas que deixaram a Esplanada são parte do cenário das conexões entre os generais, o atual governo e o mundo político. Mesmo que silenciem. Suas trajetórias podem nos mostrar que tipo de institucionalidade terão as relações entre os civis e os militares daqui para frente em nossa República e as suas consequências para a democracia. A revelação das conversas de Temer com a cúpula do Exército é só o começo. Ela ajuda a tornar nossa história mais inteligível. E suscita novas perguntas que esperam outros relatos para que o País compreenda o seu presente.

Caro leitor,

   a história é feita de relatos que devem ser tornados inteligíveis. Em L’histoire sous surveillance, Marc Ferro pensou em uma história que fosse livre de toda vigilância – fosse de partidos, de governos ou grupos. O relato – conclui o historiador francês – é apenas uma etapa de análise, não um ponto de chegada; é material de estudo, que pode ser criticado, criando uma nova narrativa. Diz Ferro: “Confrontá-los revela de uma só vez a história tal como ela foi vivida e a função atual da história”.

O ex-presidente Michel Temer em seu escritório na no bairroItaim Bibi, em São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

É dessa forma que deve ser lido o relato de Michel Temer sobre suas relações com os militares nos meses da crise do impeachment de Dilma Rousseff. Em seu livro, A Escolha, o ex-presidente relata ao seu entrevistador, o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, os contatos que manteve com a cúpula do Exército quando ainda vice-presidente. Dos encontros participaram o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, e o chefe do Estado-Maior, general Sérgio Etchegoyen – já presidente, Temer manteria Villas Bôas no cargo e nomearia Etchegoyen ministro do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O apoio a Temer entre os militares era inconteste. Em 2017 e 2018, apesar de atraídos pelo lavajatismo, muitos generais criticavam abertamente as denúncias apresentadas pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente. Não que antevissem falta de provas ou desequilíbrio nas ações do procurador-geral. Simplesmente muitos não disfarçavam o desconforto com o fato de as investigações ameaçarem as forças políticas que então apoiavam.

O general Sérgio Etchegoyen, que assumiu o Gabinete de Segurança Institucional Foto: Divulgação

Desde que Jair Bolsonaro fora eleito e a Esplanada foi ocupada por generais e coronéis, o mundo político parece ter esquecido que as origens da volta aos militares à política existiam antes mesmo da eleição do capitão. Era 2015 e o governo Dilma começava a derreter quando Temer se encontrou pela primeira vez com Villas Bôas e Etchegoyen. O intermediário do encontro fora Rosenfield, que dele participou. Etchegoyen voltava de Moçambique e trazia na bagagem um exemplar de uma obra do escritor Mia Couto e ofereceu o livro ao vice-presidente. Temer agradeceu. A conversa entre eles foi descrita por Rosenfield como "política".  Os militares estavam desgastados com o petismo.

Razões não faltavam para o descontentamento dos generais. "O PT havia feito uma série de medidas contra as Forças Armadas”, disse Rosenfield. Ele as enumera: o Plano Nacional de Direitos Humanos-3, a Comissão Nacional daVerdade, as pressões para que o Supremo Tribunal Federal derrubasse a Lei de Anistia e a ação de Eva Chiavon,secretária executiva do Ministério da Defesa, a quem os militares atribuíam o projeto de modificar o acesso ao generalato e o currículo de suas academias. Na política externa, as relações com a Venezuela de Maduro completavam a série de objeções dos generais.

Nicolás Maduro era parte da preocupação dos militares Foto: Eduardo Munoz/REUTERS

De acordo com o relato de Rosenfield, "o Exército estava preocupado com um diagnóstico da situação política". "O Exército tem todo o direito de se interessar por isso. É desconhecer nossa história achar que os militares, que fundaram a República, não tenham nada a dizer sobre o País", disse. O professor coloca os contatos entre Temer e os generais dentro do "relacionamento institucional". "Qual seria o problema de um vice-presidente conversar com o comandante do Exército? Ninguém estava tramando um golpe. Eu tive a percepção de que Temer poderia ser o próximo presidente e propus o diálogo. E acertei", afirma Rosenfield. "Não foi uma vez, foram várias. Tanto como vice quanto como presidente." 

Temer deu seu depoimento para o livro-entrevista à quente, quando ainda ocupava a Presidência. Disse então sobre os militares. “Nós precisamos acabar de uma vez por todas com essa história de que militar é militar e civil é civil; são todos brasileiros , de modo que posso muito naturalmente chamar um militar para compor o ministério”. E, de fato, Temer nomeara o general Silva e Luna para o Ministério da Defesa, o primeiro militar a ocupar o cargo desde a criação da Pasta, em 1999, desfazendo, assim, a subordinação política, jurídica e até simbólica das Forças Armadas ao Poder Civil.

O general Villas Bôas e o presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de transmissão do cargo para o novo comandante do Exérciuto, o general Edson Leal Pujol Foto: Dida Sampaio/Estadão

Tratar das relações entre os civis e os militares envolvidos na crise política como a que levou ao impeachment será uma das tarefas dos historiadores desse período. O tempo presente é o tempo de se recolher relatos. Falta o de Villas Bôas. Falta o de Etchegoyen. Assim como os de outros militares que podem descrever como os generais se comportaram durante a crise e por que muitos deles se articularam em torno da candidatura de Jair Bolsonaro, até então um mero fantasma que rondava o Planalto.

Do tuíte de Villas Bôas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, ao pronunciamento do general Luiz Eduardo Ramos, no Comando Militar do Sudeste, em agosto do mesmo ano, contra a “impunidade”, será necessário saber o que fizeram e pensaram fazer os generais em episódios-chave até a eleição de Bolsonaro. Será preciso contar a história da articulação feita pelo general Roberto Peternelli Junior para eleger o maior número de oficiais do Exército para o Congresso. Apesar de diluídos em diversos partidos, havia um centro que orientava os candidatos, como uma espécie de partido militar informal?

As perguntas se sucedem. E os relatos minguam. Qual a repercussão nos quartéis do atentado contra Bolsonaro? Sabe-se o que Villas Bôas disse ao Estadão sobre o ambiente do País após a facada: "Nós estamos agora construindo dificuldade para que o novo governo tenha uma estabilidade, para a sua governabilidade e podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada".

E os demais integrantes do Alto Comando do Exército? O que pensavam? E seus colegas da Marinha e da Aeronáutica? Com quem o comandante do Exército conversou naquela noite, enquanto esperava notícias da operação que salvou a vida de seu candidato? Qual o teor das conversas naquelas horas dramáticas? E o que fez o presidente Bolsonaro declarar que Villas Bôas era um dos “responsáveis por sua eleição”? “General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós”, disse Bolsonaro após tomar posse.

Era 2019. E muitos generais haviam atravessado o Rubicão com o presidente para entrarem triunfantes na Esplanada. Nenhum muro ou rio impediu que, mesmo na ativa, ocupassem cargos políticos, liquefazendo a fronteira, entre o civil e o militar. Foi Temer que começou o processo completado por Bolsonaro? Entre os generais da Esplanada estava Otávio Santana do Rêgo Barros, que deixara de ser porta-voz de Villas Bôas para assumir a mesma função no Planalto.

Otávio Rêgo Barros foi exonerado no começo de outubro do cargo de porta-voz da Presidência da República Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Ali, o general viria o presidente usar o humorista Carioca para responder a perguntas dos jornalistas sobre o PIB de 2019, em vez de lhe delegar a tarefa. Imitando o capitão, Carioca distribuiu bananas à imprensa. No Planalto era assim: quem questionava Bolsonaro ganhava bananas. Não importava se jornalista ou general. Rêgo Barros testemunhou ainda o presidente participar de manifestação em frente ao quartel-general do Exército que pedia o fechamento do STF e do Congresso. O porta-voz não se demitiu. Teve o cargo extinto. Na semana passada, juntou-se aos críticos do governo.

"É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais", escreveu ao Correio Brasiliense. E concluiu: "A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um Rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — Lembra-te da próxima eleição!", escreveu o general. 

Rêgo Barros e seus colegas que deixaram a Esplanada são parte do cenário das conexões entre os generais, o atual governo e o mundo político. Mesmo que silenciem. Suas trajetórias podem nos mostrar que tipo de institucionalidade terão as relações entre os civis e os militares daqui para frente em nossa República e as suas consequências para a democracia. A revelação das conversas de Temer com a cúpula do Exército é só o começo. Ela ajuda a tornar nossa história mais inteligível. E suscita novas perguntas que esperam outros relatos para que o País compreenda o seu presente.

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