RECIFE - O Brasil teve pelo menos 507 mortes por temporais desde o fim de 2021 – só a Grande Recife registrou 91 nos últimos dias. Desde 2011, quando deslizamentos de terra fizeram 918 vítimas só na Região Serrana do Rio, as chuvas não faziam tantas vítimas em menos de um ano. Além do fenômeno climático La Niña neste ano, parte dos especialistas já vê efeitos do avanço do aquecimento global. Somadas a isso, estão a falta de estrutura urbana e o déficit habitacional, que leva os mais pobres a ocupar áreas de risco, como encostas e beiras de córregos.
Balanço do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) apontava 421 mortes até a última sexta-feira. Desde então, mais 86 óbitos foram confirmados em Pernambuco. A Defesa Civil informou que ainda há 26 desaparecidos e cerca de 6,1 mil desabrigados. Os temporais desde a semana passada afetam principalmente a região metropolitana de Recife, a Zona da Mata pernambucana e Alagoas. Se contar a partir do início de dezembro do ano passado, mostram os dados da pasta, o Rio é o Estado com mais perdas: 256, a maioria (238) em Petrópolis.
Prefeito do Recife, João Campos (PSB) classificou os estragos como tragédia sem precedentes e suspendeu a Festa Junina para direcionar a verba de R$ 15 milhões do evento para os desabrigados – a medida sofreu crítica de artistas. Em várias áreas atingidas, moradores têm atuado no resgate, ajudando os bombeiros, a Defesa Civil e o Exército. Na Vila dos Milagres, zona sul da capital pernambucana, as buscas não pararam desde sábado, quando houve o primeiro deslizamento. Segundo Asylan da Costa, morador da área há 30 anos, a movimentação da comunidade para resgatar soterrados salvou a vida de pelo menos três pessoas.
“Está sendo dramático, corrido e exaustivo”, diz Costa. “Nossa comunidade é conhecida como Buracão, porque é cercada por barrancos, e por ela passa um canal. Foi muita água. O primeiro desabamento aconteceu por volta das 5h da manhã do sábado e, às 8h, caíram as outras duas barreiras, soterrando oito casas. Retiramos uma mulher com vida logo, depois o esposo dela, já em óbito. E continuamos buscando.” A lama e os entulhos dificultam os trabalhos.
O auxiliar de carga Wagner Batista está desde sábado no abrigo montado pela prefeitura em uma escola municipal. Ele, a mulher e a sogra precisaram sair às pressas da casa na Iputinga, quando as águas invadiram o imóvel, chegando a uma altura de 1,9 metros. Ele morava de aluguel e estava no imóvel havia quatro meses. “Perdi tudo: meus eletrodomésticos, dinheiro, móveis. É muito difícil a situação em que nos encontramos”, lamentou. A administração recifense oferece 41 abrigos em escolas, creches, centros sociais e parcerias com a sociedade civil, além de 23 pontos oficiais de coleta de donativos. A prefeitura afirma ainda que tem investido R$ 148 milhões na Ação Inverno, o que representaria um crescimento de cerca de 50% em relação ao ano passado.
FENÔMENOS CLIMÁTICOS
Para a meteorologista Ana Maria de Ávila, da Unicamp, as chuvas no Nordeste estão na época normal, mas em volume atípico. “Tivemos também uma frente fria com grande massa de ar polar que passou pelo Sudeste e teve trajetória que acabou se estendendo até o Nordeste”, explica.
E quem sofreu com as chuvas no fim do ano passado no Nordeste ainda espera solução definitiva. É o caso diarista Rosana Silva, de 33 anos, que viu a água levar tudo na semana do Natal em Itacaré, no sul baiano. “Não sobrou nada, ficamos com a roupa do corpo.” O Estado teve temporais atípicos entre dezembro e janeiro, que causaram 28 óbitos. Na época, o governo estadual disse que foi o “o maior desastre natural da história da Bahia”.
Ela e os filhos moram em um imóvel pago pelo município enquanto espera uma das casas que está sendo erguida pela prefeitura para os desabrigados. Ela conta também com a ajuda de doações. “Cada um dá alguma coisa e a gente vai refazendo a vida”, afirma.
O que se vê neste ano no Nordeste não pode ser diretamente colocado na conta do aquecimento global, diz Tércio Ambrizzi, professor de Ciências Atmosféricas da USP, mas a sequência de eventos extremos, sim. “Da década de 1990 em diante, quando o aquecimento se tornou mais evidente, estes casos passaram a ser mais frequentes”, afirma. “Esses eventos já aconteceram em outros lugares do País neste ano e as cidades não estão preparadas para as mudanças climáticas. Não é apenas o Recife.” / COLABORARAM EMÍLIO SANT’ANNA E HELIANA FRAZÃO, ESPECIAL PARA O ESTADÃO