Dois canhões que, entre os séculos 17 e 18 fizeram parte da linha de defesa de Salvador, na Bahia, foram achados e desenterrados durante as obras de recuperação de uma praça, na Cidade Baixa, no final de julho deste ano. Na época, a cidade era a capital brasileira e sofria ataques estrangeiros. De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), as peças podem ter pertencido ao antigo Forte da Laje, que foi tomado pelos holandeses em 1624.
Com a estrutura bem conservada, apesar da crosta de ferrugem, as peças estão em processo de limpeza na Acervo - Centro de Referência em Patrimônio e Pesquisa, empresa responsável pela prospecção. De acordo com o arqueólogo do Iphan, Alexandre Colpas, os canhões estavam em área aterrada onde antes era orla do mar, o que reforça a hipótese de que serviam à defesa da cidade. Fundada em 1549, Salvador foi a capital portuguesa nas Américas e a primeira capital do Brasil até 1763, quando a corte foi transferida para o Rio de Janeiro.
Na época, o Brasil ainda não tinha capacidade de produzir canhões e a origem das peças é investigada. “Esses canhões estão com muita ferrugem incrustada e, depois de limpos, serão mostrados a especialistas em armas para identificar a origem. Sabemos que muitos navios traziam canhões para o Brasil. O galeão Santíssimo Sacramento, que saiu de Lisboa e afundou aqui (Salvador) no século 17 (1668) tinha cerca de 60 canhões”, lembrou. As dimensões – 2,30 m de comprimento – são compatíveis com peças de artilharia da época, segundo ele.
O sítio arqueológico foi localizado durante as obras de requalificação da região da Conceição da Praia, realizadas pela prefeitura. A área contém uma espessa camada de aterro, que chega a 3,5 m de profundidade. Um dos canhões estava enterrado na Rua Conceição da Praia, o outro, na Praça Irmãos Pereira. As peças foram resgatadas e levadas para a instituição de guarda que acompanhou as escavações. Conforme o Iphan, é responsabilidade do instituto fiscalizar obras e assegurar que as pesquisas arqueológicas sejam devidamente realizadas.
O arqueólogo Luiz Pacheco, da Acervo, coordenador-geral do trabalho de prospecção, acredita que os canhões já estavam fora de uso quando foram soterrados. “São peças de ferro-fundido e estavam em uma área onde antes era mar ou praia e que foi soterrada. Tanto que encontramos, no mesmo nível do subsolo, louças portuguesas dos séculos 17 e 18, logo abaixo de um piso de seixos e pedras, do século 18. São várias camadas e, em 1,40 m de profundidade, a gente consegue ‘ler’ a expansão da cidade. Embora pertencesse ao rei, os comerciantes disputavam aquele espaço para receber e vender mercadorias”, disse.
De 1701 ao final de 1900, a Cidade Baixa passou por intensos processos de aterramento para expandir a ocupação urbana. No total, quase 200 mil metros quadrados foram aterrados no mar, de forma progressiva, ao longo desses 300 anos. A última área aterrada foi a da região de Águas de Meninos, no início do século 20, onde foi instalada a Feira de São Joaquim, a maior feira livre da cidade.
De acordo com o arqueólogo do Iphan, pela localização, é provável que os canhões integrassem uma das linhas de defesa posicionadas atrás do antigo Forte da Laje, hoje inexistente. Ele conta que muitos o confundem com o atual Forte de São Marcelo, localizado em ponto mais distante da faixa de terra, em plena água do mar. Segundo ele, o forte antigo aparece em uma gravura que mostra a restituição de Salvador pelos holandeses no início do século 17. “Atrás do forte havia uma bateria de canhões”, disse.
Ele lembra que, por ser a primeira capital brasileira e porta de entrada do império ultramarino português, Salvador é hoje um sítio arqueológico a céu aberto. “Mercadorias de todo mundo passavam por esse porto, por isso qualquer obra que implique em remoção de solo é acompanhada pelo Iphan. As faianças e porcelanas que encontramos remetem a esse comércio”, disse.
Salvador nasceu como cidade-fortaleza
Conforme o historiador Mário Mendonça de Oliveira, professor emérito da Universidade Federal da Bahia, Salvador nasceu como cidade-fortaleza ou, pelo menos, era isso o que pretendia D. João III, rei de Portugal, enquanto ela foi capital ou ‘Cabeça do Brasil’, como era chamada na época. Por esse motivo, o primeiro governador-geral da Colônia, Tomé de Sousa, encarregado pelo rei de instalar a capital, trouxe consigo, em 1549, o mestre Luís Dias, expert em fortificações.
Em seu estudo “As Fortalezas e a Defesa de Salvador”, ele conta que o Forte da Laje foi construído no início do século 17, com o formato de um quadrilátero, em afloramento rochoso ligado à terra por um pontão costeiro. Na batalha entre portugueses e holandeses ocorrida no local em 1624, o forte ainda estava inacabado.
As fortificações eram os principais elementos de proteção do território no período colonial. Salvador chegou a ter 30 fortes, restando atualmente apenas 11, entre eles o mais antigo do país, o Forte de Santo Antônio, construído em 1534, antes da fundação da cidade. É nele que fica o famoso Farol da Barra, com 22 m de altura, construído em 1839, em homenagem ao nascimento de S.Pedro II.
Para Colpas, os canhões enterrados vão ajudar a compreender melhor aquele período. “Esse se junta a outros achados, como o dos vestígios de uma muralha que transformava Salvador em uma cidade fortificada naqueles primórdios. Na linha do asfalto, achamos recentemente pedaços dessa muralha que era construída com pedras e cal.” Os canhões e outros materiais encontrados nas escavações são considerados bens da União. Depois de estudados, o plano é colocar esses objetos em exposição fixa ou itinerante para que possam ser conhecidos pela população.
O projeto de recuperação da Rua da Conceição e vias próximas ao Santuário Nossa Senhora da Conceição da Praia foi elaborado pela Fundação Mário Leal Ferreira e está sendo executado pelo município desde o final de 2022. O espaço ganhará um edifício-garagem em dois níveis e área de convivência. As obras vão custar R$ 12,5 milhões e ficam prontas até o fim deste ano.
O projeto inclui a revitalização do monumento aos Irmãos Pereira, instalado no local em 1954. Obra do escultor Pasquale de Chirico, a peça é composta por três estátuas de bronze representando Manoel Vitorino, José Basílio e Antônio Pacífico Pereira, figuras de relevo na história baiana – Manoel foi vice-presidente da República no governo de Prudente de Moraes.