Caso Ana Hickmann: ‘Romper com o silêncio é um passo na libertação de uma violência mais severa’


Promotora de Justiça e especialista em Lei Maria da Penha fala sobre importância de buscar medida protetiva; apresentadora denunciou marido neste mês

Por Giovanna Castro
Atualização:
Foto: Rafael Von Zuben/Divulgação
Entrevista comValéria ScarancePromotora de Justiça

A denúncia de violência doméstica feita pela apresentadora e ex-modelo Ana Hickmann contra o seu marido, Alexandre Corrêa, neste mês jogou luz em um problema vivido por muitas mulheres e famílias brasileiras. Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, em 2022, mais de 245 mil casos de violência doméstica foram registrados no País. Em entrevista à Record TV neste domingo, 26, ela afirma que vivia um “relacionamento tóxico” e disse já ter sofrido com outras agressões.

Ana Hickmann e o marido, Alexandre Correa, durante evento em São Paulo, em 2019 Foto: Iara Morselli/Estadão

Em abril deste ano, o governo federal sancionou lei que prevê a concessão de medidas protetivas mesmo sem o registro de boletim de ocorrência ou a instauração de inquérito policial. A norma alterou a Lei Maria da Penha, de 2006.

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Para elucidar a lei e o mecanismo jurídico de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, o Estadão conversou com a promotora de Justiça, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de livros sobre Lei Maria da Penha Valéria Scarance. Confira a entrevista:

Quais são os direitos da mulher que chega em uma delegacia para fazer um BO por violência doméstica?

Toda vítima que chega em uma delegacia de polícia tem o direito a ser bem atendida, não ser confrontada com o autor da violência ou seus familiares, ser atendida em recinto próprio e sem revitimização, sem perguntas invasivas, que gerem algum constrangimento. Além disso, deve ser informada de seus direitos previstos na da Lei Maria da Penha. É importante mencionar que 45% das vítimas não procuram nenhuma ajuda e apenas 17% registram BO em Delegacia de Polícia, muitas porque desconhecem seus direitos.

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Hoje, diferentes tipos de violência – psicológica, física, moral, patrimonial e sexual – são reconhecidos pela lei. Há diferença jurídica em relação a cada uma delas?

Há crimes que são de ação penal pública incondicionada e crimes que dependem da vontade da vítima para a instauração de inquérito e tomada de medidas do poder público. Nos crimes em que não há necessidade de manifestação da vítima, como lesão corporal e violência psicológica, mesmo sem a autorização da vítima, o inquérito policial deve ser instaurado imediatamente (assim que é feita denúncia, BO ou flagrante). Já crimes como ameaça e stalk (termo em inglês para perseguição) dependem de uma representação. Nesse caso, além do registro da ocorrência, a vítima deve dizer expressamente que deseja representar, ou seja, que deseja a instauração de inquérito e a adoção de medidas por parte do poder público.

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Como saber que é hora de pedir ajuda e fazer o BO?

Toda vez que uma mulher percebe uma situação de violência, ela deve buscar ajuda, seja com uma rede de atendimento ou contando para uma pessoa de confiança. Mas, se ela tiver sensação de perigo, risco de morte, ou se houver violência física, ela deve registrar essa violência junto a uma delegacia de polícia, fazendo registro em boletim de ocorrência eletrônico, chamando a Polícia Militar ou até mesmo fazendo registro anônimo, que é possível pela central, no telefone 180.

Quando a mulher deve pedir medidas protetivas? E como elas funcionam?

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As medidas protetivas, a partir de 2023, são autônomas, ou seja, elas não dependem de boletim de ocorrência, da existência de um crime previsto em Lei, de um processo civil criminal ou investigação instaurada. A qualquer momento, com base em um depoimento da vítima, pode haver o deferimento das medidas protetivas, diante da situação de risco. As medidas protetivas são para situações de risco: se a mulher está em risco de vida ou de nova agressão, deve fazer o requerimento.

No momento do BO, a mulher já pode solicitar medidas protetivas. Ou ela pode não solicitar (como no caso de Ana Hickmann, logo ao fazer a denúncia) e, em algum momento posterior, quando entender pertinente ou estiver diante de situação de risco, pode fazer a solicitação. O pedido precisa ser avaliado por um juiz, que é quem faz a ordem judicial de proteção para aquela mulher, em até 48 horas. (As medidas podem ser a proibição de o homem de morar na mesma casa, a definição de uma distância mínima da vítima e/ou a restrição à posse de armas pelo agressor.)

Pela lei, as mulheres e os seus dependentes, ou seja, filhos, filhas e outras pessoas que dependem dela, têm direito à proteção – inclusive, se a violência for feita em frente aos filhos, legalmente isso se configura também como violência contra a criança. Periodicamente, é feita reavaliação do perigo, para verificar se ele persiste ou não. O que se sugere é que essa avaliação ocorra após o período de um ano. Entende-se que, no período de um ano após a separação e solicitação de medida protetiva por parte da vítima, pode haver risco mais sério de morte. A partir de um ano, esse risco tende a minimizar.

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No caso da Ana Hickmann, ela optou por não requerer medidas protetivas contra o marido. Por que, mesmo nesses casos, o BO é importante?

O boletim de ocorrência é muito importante, porque é a forma pela qual se registra um ato específico de violência. Muitos autores de violência praticam inúmeras condutas violentas antes que a vítima busque ajuda e, com isso, essas condutas não chegam ao conhecimento de uma autoridade, dificultando a investigação e colaborando para um agravamento do quadro.

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O registro do boletim de ocorrência serve como registro da notícia de um crime. Sua importância se dá justamente no fato de que a vítima está rompendo com o silêncio. E romper com o silêncio significa um passo no caminho da libertação de uma violência mais severa ou até de um feminicídio.

Quais são as opções de apoio (financeiro, psicológico etc) oferecidas pelo Estado?

A lei prevê várias formas de encaminhamento da mulher a serviços de atendimento psicológico e de apoio. Há, agora, uma previsão na Lei Maria da Penha para auxílio-aluguel por período não superior a seis meses, algo que já existia em alguns Estados, como em São Paulo (ainda não regulamentado, mas previsto na lei). Esse auxílio é avaliado de acordo com a vulnerabilidade social e econômica da mulher.

Existem também benefícios como acompanhamento dos filhos, serviços de capacitação, abrigos em casas de passagem. Enfim, uma gama de serviços específicos que podem ser acionados.

O que muda se a mulher tem filho com o agressor?

A partir de uma alteração recente na Lei Maria da Penha, as medidas protetivas podem ser deferidas também para os dependentes, ou seja, filhos e filhas, da vítima. Nossa legislação já considera que o crime praticado contra a mãe na presença dos filhos também é violência contra os filhos, porque traz várias consequências -, seja de ordem psicológica, de relacionamento ou até mesmo de desenvolvimento biológico -, a essas crianças.

Havendo filhos e filhas, pode haver fixação de pensão alimentícia, medidas protetivas específicas que restrinjam o contato do agressor com essas crianças e o encaminhamento, também, a serviços.

A denúncia de violência doméstica feita pela apresentadora e ex-modelo Ana Hickmann contra o seu marido, Alexandre Corrêa, neste mês jogou luz em um problema vivido por muitas mulheres e famílias brasileiras. Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, em 2022, mais de 245 mil casos de violência doméstica foram registrados no País. Em entrevista à Record TV neste domingo, 26, ela afirma que vivia um “relacionamento tóxico” e disse já ter sofrido com outras agressões.

Ana Hickmann e o marido, Alexandre Correa, durante evento em São Paulo, em 2019 Foto: Iara Morselli/Estadão

Em abril deste ano, o governo federal sancionou lei que prevê a concessão de medidas protetivas mesmo sem o registro de boletim de ocorrência ou a instauração de inquérito policial. A norma alterou a Lei Maria da Penha, de 2006.

Para elucidar a lei e o mecanismo jurídico de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, o Estadão conversou com a promotora de Justiça, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de livros sobre Lei Maria da Penha Valéria Scarance. Confira a entrevista:

Quais são os direitos da mulher que chega em uma delegacia para fazer um BO por violência doméstica?

Toda vítima que chega em uma delegacia de polícia tem o direito a ser bem atendida, não ser confrontada com o autor da violência ou seus familiares, ser atendida em recinto próprio e sem revitimização, sem perguntas invasivas, que gerem algum constrangimento. Além disso, deve ser informada de seus direitos previstos na da Lei Maria da Penha. É importante mencionar que 45% das vítimas não procuram nenhuma ajuda e apenas 17% registram BO em Delegacia de Polícia, muitas porque desconhecem seus direitos.

Hoje, diferentes tipos de violência – psicológica, física, moral, patrimonial e sexual – são reconhecidos pela lei. Há diferença jurídica em relação a cada uma delas?

Há crimes que são de ação penal pública incondicionada e crimes que dependem da vontade da vítima para a instauração de inquérito e tomada de medidas do poder público. Nos crimes em que não há necessidade de manifestação da vítima, como lesão corporal e violência psicológica, mesmo sem a autorização da vítima, o inquérito policial deve ser instaurado imediatamente (assim que é feita denúncia, BO ou flagrante). Já crimes como ameaça e stalk (termo em inglês para perseguição) dependem de uma representação. Nesse caso, além do registro da ocorrência, a vítima deve dizer expressamente que deseja representar, ou seja, que deseja a instauração de inquérito e a adoção de medidas por parte do poder público.

Como saber que é hora de pedir ajuda e fazer o BO?

Toda vez que uma mulher percebe uma situação de violência, ela deve buscar ajuda, seja com uma rede de atendimento ou contando para uma pessoa de confiança. Mas, se ela tiver sensação de perigo, risco de morte, ou se houver violência física, ela deve registrar essa violência junto a uma delegacia de polícia, fazendo registro em boletim de ocorrência eletrônico, chamando a Polícia Militar ou até mesmo fazendo registro anônimo, que é possível pela central, no telefone 180.

Quando a mulher deve pedir medidas protetivas? E como elas funcionam?

As medidas protetivas, a partir de 2023, são autônomas, ou seja, elas não dependem de boletim de ocorrência, da existência de um crime previsto em Lei, de um processo civil criminal ou investigação instaurada. A qualquer momento, com base em um depoimento da vítima, pode haver o deferimento das medidas protetivas, diante da situação de risco. As medidas protetivas são para situações de risco: se a mulher está em risco de vida ou de nova agressão, deve fazer o requerimento.

No momento do BO, a mulher já pode solicitar medidas protetivas. Ou ela pode não solicitar (como no caso de Ana Hickmann, logo ao fazer a denúncia) e, em algum momento posterior, quando entender pertinente ou estiver diante de situação de risco, pode fazer a solicitação. O pedido precisa ser avaliado por um juiz, que é quem faz a ordem judicial de proteção para aquela mulher, em até 48 horas. (As medidas podem ser a proibição de o homem de morar na mesma casa, a definição de uma distância mínima da vítima e/ou a restrição à posse de armas pelo agressor.)

Pela lei, as mulheres e os seus dependentes, ou seja, filhos, filhas e outras pessoas que dependem dela, têm direito à proteção – inclusive, se a violência for feita em frente aos filhos, legalmente isso se configura também como violência contra a criança. Periodicamente, é feita reavaliação do perigo, para verificar se ele persiste ou não. O que se sugere é que essa avaliação ocorra após o período de um ano. Entende-se que, no período de um ano após a separação e solicitação de medida protetiva por parte da vítima, pode haver risco mais sério de morte. A partir de um ano, esse risco tende a minimizar.

No caso da Ana Hickmann, ela optou por não requerer medidas protetivas contra o marido. Por que, mesmo nesses casos, o BO é importante?

O boletim de ocorrência é muito importante, porque é a forma pela qual se registra um ato específico de violência. Muitos autores de violência praticam inúmeras condutas violentas antes que a vítima busque ajuda e, com isso, essas condutas não chegam ao conhecimento de uma autoridade, dificultando a investigação e colaborando para um agravamento do quadro.

O registro do boletim de ocorrência serve como registro da notícia de um crime. Sua importância se dá justamente no fato de que a vítima está rompendo com o silêncio. E romper com o silêncio significa um passo no caminho da libertação de uma violência mais severa ou até de um feminicídio.

Quais são as opções de apoio (financeiro, psicológico etc) oferecidas pelo Estado?

A lei prevê várias formas de encaminhamento da mulher a serviços de atendimento psicológico e de apoio. Há, agora, uma previsão na Lei Maria da Penha para auxílio-aluguel por período não superior a seis meses, algo que já existia em alguns Estados, como em São Paulo (ainda não regulamentado, mas previsto na lei). Esse auxílio é avaliado de acordo com a vulnerabilidade social e econômica da mulher.

Existem também benefícios como acompanhamento dos filhos, serviços de capacitação, abrigos em casas de passagem. Enfim, uma gama de serviços específicos que podem ser acionados.

O que muda se a mulher tem filho com o agressor?

A partir de uma alteração recente na Lei Maria da Penha, as medidas protetivas podem ser deferidas também para os dependentes, ou seja, filhos e filhas, da vítima. Nossa legislação já considera que o crime praticado contra a mãe na presença dos filhos também é violência contra os filhos, porque traz várias consequências -, seja de ordem psicológica, de relacionamento ou até mesmo de desenvolvimento biológico -, a essas crianças.

Havendo filhos e filhas, pode haver fixação de pensão alimentícia, medidas protetivas específicas que restrinjam o contato do agressor com essas crianças e o encaminhamento, também, a serviços.

A denúncia de violência doméstica feita pela apresentadora e ex-modelo Ana Hickmann contra o seu marido, Alexandre Corrêa, neste mês jogou luz em um problema vivido por muitas mulheres e famílias brasileiras. Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, em 2022, mais de 245 mil casos de violência doméstica foram registrados no País. Em entrevista à Record TV neste domingo, 26, ela afirma que vivia um “relacionamento tóxico” e disse já ter sofrido com outras agressões.

Ana Hickmann e o marido, Alexandre Correa, durante evento em São Paulo, em 2019 Foto: Iara Morselli/Estadão

Em abril deste ano, o governo federal sancionou lei que prevê a concessão de medidas protetivas mesmo sem o registro de boletim de ocorrência ou a instauração de inquérito policial. A norma alterou a Lei Maria da Penha, de 2006.

Para elucidar a lei e o mecanismo jurídico de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, o Estadão conversou com a promotora de Justiça, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de livros sobre Lei Maria da Penha Valéria Scarance. Confira a entrevista:

Quais são os direitos da mulher que chega em uma delegacia para fazer um BO por violência doméstica?

Toda vítima que chega em uma delegacia de polícia tem o direito a ser bem atendida, não ser confrontada com o autor da violência ou seus familiares, ser atendida em recinto próprio e sem revitimização, sem perguntas invasivas, que gerem algum constrangimento. Além disso, deve ser informada de seus direitos previstos na da Lei Maria da Penha. É importante mencionar que 45% das vítimas não procuram nenhuma ajuda e apenas 17% registram BO em Delegacia de Polícia, muitas porque desconhecem seus direitos.

Hoje, diferentes tipos de violência – psicológica, física, moral, patrimonial e sexual – são reconhecidos pela lei. Há diferença jurídica em relação a cada uma delas?

Há crimes que são de ação penal pública incondicionada e crimes que dependem da vontade da vítima para a instauração de inquérito e tomada de medidas do poder público. Nos crimes em que não há necessidade de manifestação da vítima, como lesão corporal e violência psicológica, mesmo sem a autorização da vítima, o inquérito policial deve ser instaurado imediatamente (assim que é feita denúncia, BO ou flagrante). Já crimes como ameaça e stalk (termo em inglês para perseguição) dependem de uma representação. Nesse caso, além do registro da ocorrência, a vítima deve dizer expressamente que deseja representar, ou seja, que deseja a instauração de inquérito e a adoção de medidas por parte do poder público.

Como saber que é hora de pedir ajuda e fazer o BO?

Toda vez que uma mulher percebe uma situação de violência, ela deve buscar ajuda, seja com uma rede de atendimento ou contando para uma pessoa de confiança. Mas, se ela tiver sensação de perigo, risco de morte, ou se houver violência física, ela deve registrar essa violência junto a uma delegacia de polícia, fazendo registro em boletim de ocorrência eletrônico, chamando a Polícia Militar ou até mesmo fazendo registro anônimo, que é possível pela central, no telefone 180.

Quando a mulher deve pedir medidas protetivas? E como elas funcionam?

As medidas protetivas, a partir de 2023, são autônomas, ou seja, elas não dependem de boletim de ocorrência, da existência de um crime previsto em Lei, de um processo civil criminal ou investigação instaurada. A qualquer momento, com base em um depoimento da vítima, pode haver o deferimento das medidas protetivas, diante da situação de risco. As medidas protetivas são para situações de risco: se a mulher está em risco de vida ou de nova agressão, deve fazer o requerimento.

No momento do BO, a mulher já pode solicitar medidas protetivas. Ou ela pode não solicitar (como no caso de Ana Hickmann, logo ao fazer a denúncia) e, em algum momento posterior, quando entender pertinente ou estiver diante de situação de risco, pode fazer a solicitação. O pedido precisa ser avaliado por um juiz, que é quem faz a ordem judicial de proteção para aquela mulher, em até 48 horas. (As medidas podem ser a proibição de o homem de morar na mesma casa, a definição de uma distância mínima da vítima e/ou a restrição à posse de armas pelo agressor.)

Pela lei, as mulheres e os seus dependentes, ou seja, filhos, filhas e outras pessoas que dependem dela, têm direito à proteção – inclusive, se a violência for feita em frente aos filhos, legalmente isso se configura também como violência contra a criança. Periodicamente, é feita reavaliação do perigo, para verificar se ele persiste ou não. O que se sugere é que essa avaliação ocorra após o período de um ano. Entende-se que, no período de um ano após a separação e solicitação de medida protetiva por parte da vítima, pode haver risco mais sério de morte. A partir de um ano, esse risco tende a minimizar.

No caso da Ana Hickmann, ela optou por não requerer medidas protetivas contra o marido. Por que, mesmo nesses casos, o BO é importante?

O boletim de ocorrência é muito importante, porque é a forma pela qual se registra um ato específico de violência. Muitos autores de violência praticam inúmeras condutas violentas antes que a vítima busque ajuda e, com isso, essas condutas não chegam ao conhecimento de uma autoridade, dificultando a investigação e colaborando para um agravamento do quadro.

O registro do boletim de ocorrência serve como registro da notícia de um crime. Sua importância se dá justamente no fato de que a vítima está rompendo com o silêncio. E romper com o silêncio significa um passo no caminho da libertação de uma violência mais severa ou até de um feminicídio.

Quais são as opções de apoio (financeiro, psicológico etc) oferecidas pelo Estado?

A lei prevê várias formas de encaminhamento da mulher a serviços de atendimento psicológico e de apoio. Há, agora, uma previsão na Lei Maria da Penha para auxílio-aluguel por período não superior a seis meses, algo que já existia em alguns Estados, como em São Paulo (ainda não regulamentado, mas previsto na lei). Esse auxílio é avaliado de acordo com a vulnerabilidade social e econômica da mulher.

Existem também benefícios como acompanhamento dos filhos, serviços de capacitação, abrigos em casas de passagem. Enfim, uma gama de serviços específicos que podem ser acionados.

O que muda se a mulher tem filho com o agressor?

A partir de uma alteração recente na Lei Maria da Penha, as medidas protetivas podem ser deferidas também para os dependentes, ou seja, filhos e filhas, da vítima. Nossa legislação já considera que o crime praticado contra a mãe na presença dos filhos também é violência contra os filhos, porque traz várias consequências -, seja de ordem psicológica, de relacionamento ou até mesmo de desenvolvimento biológico -, a essas crianças.

Havendo filhos e filhas, pode haver fixação de pensão alimentícia, medidas protetivas específicas que restrinjam o contato do agressor com essas crianças e o encaminhamento, também, a serviços.

A denúncia de violência doméstica feita pela apresentadora e ex-modelo Ana Hickmann contra o seu marido, Alexandre Corrêa, neste mês jogou luz em um problema vivido por muitas mulheres e famílias brasileiras. Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, em 2022, mais de 245 mil casos de violência doméstica foram registrados no País. Em entrevista à Record TV neste domingo, 26, ela afirma que vivia um “relacionamento tóxico” e disse já ter sofrido com outras agressões.

Ana Hickmann e o marido, Alexandre Correa, durante evento em São Paulo, em 2019 Foto: Iara Morselli/Estadão

Em abril deste ano, o governo federal sancionou lei que prevê a concessão de medidas protetivas mesmo sem o registro de boletim de ocorrência ou a instauração de inquérito policial. A norma alterou a Lei Maria da Penha, de 2006.

Para elucidar a lei e o mecanismo jurídico de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, o Estadão conversou com a promotora de Justiça, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de livros sobre Lei Maria da Penha Valéria Scarance. Confira a entrevista:

Quais são os direitos da mulher que chega em uma delegacia para fazer um BO por violência doméstica?

Toda vítima que chega em uma delegacia de polícia tem o direito a ser bem atendida, não ser confrontada com o autor da violência ou seus familiares, ser atendida em recinto próprio e sem revitimização, sem perguntas invasivas, que gerem algum constrangimento. Além disso, deve ser informada de seus direitos previstos na da Lei Maria da Penha. É importante mencionar que 45% das vítimas não procuram nenhuma ajuda e apenas 17% registram BO em Delegacia de Polícia, muitas porque desconhecem seus direitos.

Hoje, diferentes tipos de violência – psicológica, física, moral, patrimonial e sexual – são reconhecidos pela lei. Há diferença jurídica em relação a cada uma delas?

Há crimes que são de ação penal pública incondicionada e crimes que dependem da vontade da vítima para a instauração de inquérito e tomada de medidas do poder público. Nos crimes em que não há necessidade de manifestação da vítima, como lesão corporal e violência psicológica, mesmo sem a autorização da vítima, o inquérito policial deve ser instaurado imediatamente (assim que é feita denúncia, BO ou flagrante). Já crimes como ameaça e stalk (termo em inglês para perseguição) dependem de uma representação. Nesse caso, além do registro da ocorrência, a vítima deve dizer expressamente que deseja representar, ou seja, que deseja a instauração de inquérito e a adoção de medidas por parte do poder público.

Como saber que é hora de pedir ajuda e fazer o BO?

Toda vez que uma mulher percebe uma situação de violência, ela deve buscar ajuda, seja com uma rede de atendimento ou contando para uma pessoa de confiança. Mas, se ela tiver sensação de perigo, risco de morte, ou se houver violência física, ela deve registrar essa violência junto a uma delegacia de polícia, fazendo registro em boletim de ocorrência eletrônico, chamando a Polícia Militar ou até mesmo fazendo registro anônimo, que é possível pela central, no telefone 180.

Quando a mulher deve pedir medidas protetivas? E como elas funcionam?

As medidas protetivas, a partir de 2023, são autônomas, ou seja, elas não dependem de boletim de ocorrência, da existência de um crime previsto em Lei, de um processo civil criminal ou investigação instaurada. A qualquer momento, com base em um depoimento da vítima, pode haver o deferimento das medidas protetivas, diante da situação de risco. As medidas protetivas são para situações de risco: se a mulher está em risco de vida ou de nova agressão, deve fazer o requerimento.

No momento do BO, a mulher já pode solicitar medidas protetivas. Ou ela pode não solicitar (como no caso de Ana Hickmann, logo ao fazer a denúncia) e, em algum momento posterior, quando entender pertinente ou estiver diante de situação de risco, pode fazer a solicitação. O pedido precisa ser avaliado por um juiz, que é quem faz a ordem judicial de proteção para aquela mulher, em até 48 horas. (As medidas podem ser a proibição de o homem de morar na mesma casa, a definição de uma distância mínima da vítima e/ou a restrição à posse de armas pelo agressor.)

Pela lei, as mulheres e os seus dependentes, ou seja, filhos, filhas e outras pessoas que dependem dela, têm direito à proteção – inclusive, se a violência for feita em frente aos filhos, legalmente isso se configura também como violência contra a criança. Periodicamente, é feita reavaliação do perigo, para verificar se ele persiste ou não. O que se sugere é que essa avaliação ocorra após o período de um ano. Entende-se que, no período de um ano após a separação e solicitação de medida protetiva por parte da vítima, pode haver risco mais sério de morte. A partir de um ano, esse risco tende a minimizar.

No caso da Ana Hickmann, ela optou por não requerer medidas protetivas contra o marido. Por que, mesmo nesses casos, o BO é importante?

O boletim de ocorrência é muito importante, porque é a forma pela qual se registra um ato específico de violência. Muitos autores de violência praticam inúmeras condutas violentas antes que a vítima busque ajuda e, com isso, essas condutas não chegam ao conhecimento de uma autoridade, dificultando a investigação e colaborando para um agravamento do quadro.

O registro do boletim de ocorrência serve como registro da notícia de um crime. Sua importância se dá justamente no fato de que a vítima está rompendo com o silêncio. E romper com o silêncio significa um passo no caminho da libertação de uma violência mais severa ou até de um feminicídio.

Quais são as opções de apoio (financeiro, psicológico etc) oferecidas pelo Estado?

A lei prevê várias formas de encaminhamento da mulher a serviços de atendimento psicológico e de apoio. Há, agora, uma previsão na Lei Maria da Penha para auxílio-aluguel por período não superior a seis meses, algo que já existia em alguns Estados, como em São Paulo (ainda não regulamentado, mas previsto na lei). Esse auxílio é avaliado de acordo com a vulnerabilidade social e econômica da mulher.

Existem também benefícios como acompanhamento dos filhos, serviços de capacitação, abrigos em casas de passagem. Enfim, uma gama de serviços específicos que podem ser acionados.

O que muda se a mulher tem filho com o agressor?

A partir de uma alteração recente na Lei Maria da Penha, as medidas protetivas podem ser deferidas também para os dependentes, ou seja, filhos e filhas, da vítima. Nossa legislação já considera que o crime praticado contra a mãe na presença dos filhos também é violência contra os filhos, porque traz várias consequências -, seja de ordem psicológica, de relacionamento ou até mesmo de desenvolvimento biológico -, a essas crianças.

Havendo filhos e filhas, pode haver fixação de pensão alimentícia, medidas protetivas específicas que restrinjam o contato do agressor com essas crianças e o encaminhamento, também, a serviços.

A denúncia de violência doméstica feita pela apresentadora e ex-modelo Ana Hickmann contra o seu marido, Alexandre Corrêa, neste mês jogou luz em um problema vivido por muitas mulheres e famílias brasileiras. Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, em 2022, mais de 245 mil casos de violência doméstica foram registrados no País. Em entrevista à Record TV neste domingo, 26, ela afirma que vivia um “relacionamento tóxico” e disse já ter sofrido com outras agressões.

Ana Hickmann e o marido, Alexandre Correa, durante evento em São Paulo, em 2019 Foto: Iara Morselli/Estadão

Em abril deste ano, o governo federal sancionou lei que prevê a concessão de medidas protetivas mesmo sem o registro de boletim de ocorrência ou a instauração de inquérito policial. A norma alterou a Lei Maria da Penha, de 2006.

Para elucidar a lei e o mecanismo jurídico de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil, o Estadão conversou com a promotora de Justiça, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de livros sobre Lei Maria da Penha Valéria Scarance. Confira a entrevista:

Quais são os direitos da mulher que chega em uma delegacia para fazer um BO por violência doméstica?

Toda vítima que chega em uma delegacia de polícia tem o direito a ser bem atendida, não ser confrontada com o autor da violência ou seus familiares, ser atendida em recinto próprio e sem revitimização, sem perguntas invasivas, que gerem algum constrangimento. Além disso, deve ser informada de seus direitos previstos na da Lei Maria da Penha. É importante mencionar que 45% das vítimas não procuram nenhuma ajuda e apenas 17% registram BO em Delegacia de Polícia, muitas porque desconhecem seus direitos.

Hoje, diferentes tipos de violência – psicológica, física, moral, patrimonial e sexual – são reconhecidos pela lei. Há diferença jurídica em relação a cada uma delas?

Há crimes que são de ação penal pública incondicionada e crimes que dependem da vontade da vítima para a instauração de inquérito e tomada de medidas do poder público. Nos crimes em que não há necessidade de manifestação da vítima, como lesão corporal e violência psicológica, mesmo sem a autorização da vítima, o inquérito policial deve ser instaurado imediatamente (assim que é feita denúncia, BO ou flagrante). Já crimes como ameaça e stalk (termo em inglês para perseguição) dependem de uma representação. Nesse caso, além do registro da ocorrência, a vítima deve dizer expressamente que deseja representar, ou seja, que deseja a instauração de inquérito e a adoção de medidas por parte do poder público.

Como saber que é hora de pedir ajuda e fazer o BO?

Toda vez que uma mulher percebe uma situação de violência, ela deve buscar ajuda, seja com uma rede de atendimento ou contando para uma pessoa de confiança. Mas, se ela tiver sensação de perigo, risco de morte, ou se houver violência física, ela deve registrar essa violência junto a uma delegacia de polícia, fazendo registro em boletim de ocorrência eletrônico, chamando a Polícia Militar ou até mesmo fazendo registro anônimo, que é possível pela central, no telefone 180.

Quando a mulher deve pedir medidas protetivas? E como elas funcionam?

As medidas protetivas, a partir de 2023, são autônomas, ou seja, elas não dependem de boletim de ocorrência, da existência de um crime previsto em Lei, de um processo civil criminal ou investigação instaurada. A qualquer momento, com base em um depoimento da vítima, pode haver o deferimento das medidas protetivas, diante da situação de risco. As medidas protetivas são para situações de risco: se a mulher está em risco de vida ou de nova agressão, deve fazer o requerimento.

No momento do BO, a mulher já pode solicitar medidas protetivas. Ou ela pode não solicitar (como no caso de Ana Hickmann, logo ao fazer a denúncia) e, em algum momento posterior, quando entender pertinente ou estiver diante de situação de risco, pode fazer a solicitação. O pedido precisa ser avaliado por um juiz, que é quem faz a ordem judicial de proteção para aquela mulher, em até 48 horas. (As medidas podem ser a proibição de o homem de morar na mesma casa, a definição de uma distância mínima da vítima e/ou a restrição à posse de armas pelo agressor.)

Pela lei, as mulheres e os seus dependentes, ou seja, filhos, filhas e outras pessoas que dependem dela, têm direito à proteção – inclusive, se a violência for feita em frente aos filhos, legalmente isso se configura também como violência contra a criança. Periodicamente, é feita reavaliação do perigo, para verificar se ele persiste ou não. O que se sugere é que essa avaliação ocorra após o período de um ano. Entende-se que, no período de um ano após a separação e solicitação de medida protetiva por parte da vítima, pode haver risco mais sério de morte. A partir de um ano, esse risco tende a minimizar.

No caso da Ana Hickmann, ela optou por não requerer medidas protetivas contra o marido. Por que, mesmo nesses casos, o BO é importante?

O boletim de ocorrência é muito importante, porque é a forma pela qual se registra um ato específico de violência. Muitos autores de violência praticam inúmeras condutas violentas antes que a vítima busque ajuda e, com isso, essas condutas não chegam ao conhecimento de uma autoridade, dificultando a investigação e colaborando para um agravamento do quadro.

O registro do boletim de ocorrência serve como registro da notícia de um crime. Sua importância se dá justamente no fato de que a vítima está rompendo com o silêncio. E romper com o silêncio significa um passo no caminho da libertação de uma violência mais severa ou até de um feminicídio.

Quais são as opções de apoio (financeiro, psicológico etc) oferecidas pelo Estado?

A lei prevê várias formas de encaminhamento da mulher a serviços de atendimento psicológico e de apoio. Há, agora, uma previsão na Lei Maria da Penha para auxílio-aluguel por período não superior a seis meses, algo que já existia em alguns Estados, como em São Paulo (ainda não regulamentado, mas previsto na lei). Esse auxílio é avaliado de acordo com a vulnerabilidade social e econômica da mulher.

Existem também benefícios como acompanhamento dos filhos, serviços de capacitação, abrigos em casas de passagem. Enfim, uma gama de serviços específicos que podem ser acionados.

O que muda se a mulher tem filho com o agressor?

A partir de uma alteração recente na Lei Maria da Penha, as medidas protetivas podem ser deferidas também para os dependentes, ou seja, filhos e filhas, da vítima. Nossa legislação já considera que o crime praticado contra a mãe na presença dos filhos também é violência contra os filhos, porque traz várias consequências -, seja de ordem psicológica, de relacionamento ou até mesmo de desenvolvimento biológico -, a essas crianças.

Havendo filhos e filhas, pode haver fixação de pensão alimentícia, medidas protetivas específicas que restrinjam o contato do agressor com essas crianças e o encaminhamento, também, a serviços.

Entrevista por Giovanna Castro

Repórter de Cidades no Estadão. Também cobre Educação, Ciência e Sustentabilidade. É formada em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e cursou Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

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