Informações de inteligência obtidas pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) mostram que o Comando Vermelho (CV) está avançando no litoral norte paulista, na divisa com o Rio de Janeiro. A facção carioca estabeleceu pontos de tráfico de drogas em Ubatuba e Caraguatatuba, em áreas antes controladas pelo Primeiro Comando da Capital, (PCC), que passou a concentrar ações no tráfico internacional.
“Ainda não é Baixada Santista, mas tem nos preocupado bastante”, afirma o promotor de Justiça Alexandre Affonso Castilho, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público no Vale do Paraíba.
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A Secretaria da Segurança Pública (SSP) diz monitorar as facções em São Paulo, “incluindo informações sobre possíveis avanços de grupos em regiões estratégicas”. Mas, segundo a pasta, na área do Departamento de Polícia Judiciária do Interior 1 (Deinter 1), que abrange Vale do Paraíba e litoral norte, de janeiro a setembro o número de homicídios e roubos foi o menor para o período em 24 anos.
A prefeitura de Caraguatatuba diz fazer fiscalizações para impedir a invasão de áreas públicas e de preservação permanente. Ubatuba informou que combate ocupações irregulares tanto para aumentar a segurança da população quanto para evitar problemas ambientais (leia mais abaixo).
De acordo com o promotor Castilho, há indícios de que o PCC se desinteressou pelo tráfico regional de drogas para priorizar sua expansão internacional. Assim, os pontos vazios estão sendo ocupados pela facção do Rio de Janeiro, principal rival do Primeiro Comando no País.
“Esse avanço é consequência de um processo de mudança do PCC, que há alguns anos tem se dedicado ao que dá lucro, que é o tráfico internacional. Com isso, a facção deixou institucionalmente de manter o monopólio dos pontos de vendas de drogas aqui no Vale do Paraíba e litoral norte”, disse ao Estadão.
Castilho lembra que o CV é uma organização criminosa com estrutura bem diferente do PCC, por isso ambos têm atuação distinta. A facção carioca valoriza a ocupação dos espaços em áreas geográficas vulneráveis como os morros e matas, características presentes no Litoral Norte.
“Principalmente em Ubatuba, que é a porta de entrada do litoral norte, e em Caraguatatuba, eles já estão presentes. O Comando Vermelho é muito forte em Paraty, Angra dos Reis e naquela região toda do Rio, que é vizinha. Então avançam para além da divisa. Já têm agentes em outras cidades para preparar o terreno”, disse.
O Vale do Paraíba paulista, que faz divisa com o Rio, é área emblemática para o PCC. A maior facção brasileira da atualidade foi criada, em agosto de 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, cidade da região.
Apesar disso, segundo o promotor, a entrada do CV tem sido pacífica e estratégica, evitando enfrentamento com o PCC. “Não é uma ocupação ostensiva, é mais dissimulada. Como o PCC quer mais o tráfico internacional, não haverá esse confronto”, diz.
Para o promotor, o desinteresse do PCC pela hegemonia na região tem reflexo na criminalidade do Vale do Paraíba, entre os maiores do Estado. De janeiro a agosto, a região (que inclui o litoral norte) registrou 211 homicídios. Embora 7% menor do que no mesmo período de 2023, está bem acima da média estadual. Supera os homicídios de outras regiões, como Ribeirão Preto (149), Campinas (138), Sorocaba (136), Santos (99) e São José do Rio Preto (72).
Segundo Castilho, com o fim do monopólio do PCC na região, deixou de haver regras para resolver os conflitos. “Antes precisava de aval do PCC para fazer qualquer coisa. Agora, até que ocorra a acomodação territorial desse vazio de comando deixado pelo PCC, os traficantes estão disputando esses pontos. Sem esse tipo de controle, eles estão se matando”, afirma.
Ocupação de encostas e interesse em ‘terras caras’
Além da questão geográfica, com relevo semelhante ao do Rio, a fundiária favorece a entrada do CV no litoral norte, segundo o promotor. “É uma região que geograficamente propicia ocupações irregulares e clandestinas. Não tem fiscalização firme. Em alguns lugares há núcleos congelados, mas não há política pública para impedir a ocupação irregular. A grilagem é um problema grave.”
Conforme Castilho, territorialmente o Comando Vermelho gosta de ambientes com ocupação de morros e encostas. “Tem locais em Ubatuba que a PM tem dificuldade de acesso, embora atue fortemente no município. Ela vai a esses locais, mas é complicado. E o Comando Vermelho se interessou pela temática porque a terra no litoral é cara. Esse sistema de grilagem, além da ocupação em si, gera lucro, porque o valor do metro quadrado no litoral norte é altíssimo.”
Suspeitos de integrar CV já foram presos em operações na região
Operações da polícia identificaram, nos últimos anos, ações do Comando Vermelho no Vale do Paraíba. Em dezembro de 2020, o MP de Caraguatatuba desencadeou uma operação e prendeu 15 supostos integrantes da facção, suspeitos de homicídios e tráfico de drogas. As ações ocorreram em endereços da cidade do litoral norte e de São José dos Campos, Caçapava e São Sebastião. Dois dos suspeitos teriam participado da execução de um integrante de uma facção rival.
Em novembro de 2023, policiais militares da Força Tática paulista prenderam um homem que coordenava o tráfico no bairro Estufa 2, em Ubatuba. Ele portava uma pistola 9 mm sem registro e tentou subornar os policiais.
No dia 17 de outubro, ação conjunta das polícias Civil e Militar do Rio prendeu em flagrante dois traficantes ligados ao CV que atuavam na região conhecida como Sertão do Taquari, em Paraty. No celular dos suspeitos foram encontrados contatos de supostos traficantes da facção instalados em Ubatuba. A Polícia Civil do Rio compartilhou as informações com a polícia paulista.
Segundo o delegado Marcello Russo, da 167ª Delegacia de Paraty, o PCC tentou se estabelecer em Paraty com pontos de tráfico perto do centro histórico e em Trindade, mas foi repelido pelo CV. Agora, já se constatou o processo inverso.
Para Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), esse possível avanço do Comando Vermelho é preocupante. “O PCC nunca teve estratégia de controlar território nos Estados onde está presente. Sempre foi mais de controlar o interior do sistema prisional, até para a proteção dos seus membros, e ter uma rede de compradores de drogas e armas”, diz.
“O PCC percebeu que o varejo da droga traz mais problema do que lucro e vai se definindo como uma rede de revenda”, acrescenta o pesquisador.
Já o Comando Vermelho é mais territorial, o que torna mais lógica uma incursão em um novo território. “O Comando Vermelho tem outro perfil de modelo de negócio, mesmo porque ele parte do Rio e de uma área estratégica deles que é o controle territorial armado no Rio. Conforme se espalha para outras regiões e se transforma numa facção nacional, ele segue essa lógica de controle do território.”
Embora mantenha suas bocas varejistas, especialmente na Grande São Paulo, o PCC começa a se aprofundar e investir no mercado atacadista de drogas, montando uma rede que permite trazer a droga de fora e repassar para exportar para o mercado internacional, atuando nos portos, diz Manso. “Eles estão indo cada vez mais para o nível atacadista, de vendas em dólar, lavagem de dinheiro, de novos negócios e o território deixa de ser tão importante para essa estratégia.”
No litoral paulista, a área estratégica para o PCC é o Porto de Santos, e um possível avanço do Comando Vermelho é “super preocupante”, segundo o pesquisador. “É algo para se prestar atenção de fato, pois você já tem todos esses conflitos em Ilha Grande e Angra dos Reis, no Rio. São regiões parecidas com o litoral de São Paulo, onde tem matas, grilagem e invasão de terras que vêm desde São Sebastião e essas cidades cresceram muito nas últimas décadas. Se o Comando Vermelho está lá, e o Ministério Público aponta isso, é muito assustador.”
Governo e prefeituras dizem investir em ações de combate à criminalidade
A SSP disse que mantém o acompanhamento dos índices criminais e intensifica ações para combater todas as modalidades de crime, com especial atenção aos homicídios. Na região do Vale do Paraíba, de janeiro a setembro, foram retiradas 856 armas de fogo das ruas e apreendidas 2,9 toneladas de entorpecentes. No total, 8.688 infratores foram presos ou apreendidos. O programa SP Vida orienta políticas públicas contra crimes e embasa as estratégias de policiamento preventivo em locais de maior incidência.
Para fortalecer a segurança na costa paulista, a Polícia Militar Ambiental conta com uma embarcação blindada equipada com câmeras de monitoramento e tecnologia infravermelha. Esse recurso é utilizado no patrulhamento náutico da costa, rios, canais, estuários e dos portos de Santos e São Sebastião, já que criminosos utilizam canais da região litorânea como rotas de fuga e para tráfico de drogas e armas.
Na Baixada Santista, nos primeiros nove meses do ano, a quantidade de homicídios foi a menor desde 2020. A tendência se estendeu para os roubos, com a menor quantidade desde 2001. Os furtos caíram 5,4%. Houve apreensão de 841 armas e 7,8 toneladas de drogas. A região registrou a prisão ou apreensão de 8.954 criminosos, segundo a pasta.
A Prefeitura de Caraguatatuba disse que realiza ações de fiscalizações em todo o município para impedir a invasão de áreas públicas e de preservação permanente. Nos últimos quatro anos, foram registradas aproximadamente 620 operações com essa finalidade. As equipes de fiscalização também atuam contra construções irregulares, invasão de prédios públicos e cercamento de áreas, mas apenas de áreas públicas. Em terrenos particulares a intervenção só se dá por determinação do Judiciário.
A prefeitura de Ubatuba informou que combate as ocupações irregulares no município tanto para aumentar a segurança da população quanto para evitar desastres ambientais que também colocam em risco a vida dos munícipes. Entre as medidas, estão o início do monitoramento por câmeras na cidade, parceria com a Polícia Ambiental para atividade delegada, aumento no efetivo da Guarda Municipal e a implantação de operações da plataforma Geopixel Cidades. A ferramenta atualiza o mapa digital do município e permite monitorar a ocupação do solo.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública do Rio, que não se manifestou.