Opinião|Como a literatura pode ser uma ferramenta contra o racismo


Ler trazia sentido, preenchia os vazios e aguçava os questionamentos de uma menina negra em um bairro de um subúrbio carioca

Por Cristiane Sobral
Atualização:

Cedo a leitura me arrebatou.

A realidade não me bastava.

Ler trazia sentido, preenchia os vazios e aguçava os questionamentos de uma menina negra em um bairro de um subúrbio carioca.

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O racismo mostrou a cara nos primeiros pentes finos e procedimentos estéticos alisantes que machucaram a minha cabeça, tentando trazer um formato aceitável diante dos padrões eurocêntricos vigentes, embora a maioria da população do meu loteamento fosse preta e parda.

Naquela época não entendia que o racismo estrutural tinha sido arquitetado no início do colonialismo. Com o fim oficial da escravidão no Brasil, as instituições já estavam preparadas para que este pudesse operar. As estruturas costumam proporcionar os melhores benefícios para os que estão a mais tempo posicionados nelas.

Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão, mas aqueles textos não me representavam.

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Li o que encontrei. Comecei a entender que nasci em um tempo desfavorável para a ascensão na estrutura. Os escritores dos livros também não pareciam comigo. Em casa, quando ligava a televisão, pessoas negras, ali nos anos oitenta, estavam na maioria das vezes matando ou morrendo. Não parecia existir uma resposta agradável para a pergunta: o que você vai ser quando crescer?

'Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão', relembra a escritora Foto: Wilton Junior/Estadão

As mulheres negras, na maioria das vezes, estavam oprimidas em maternidades precoces e involuntárias e em serviços domésticos mal remunerados. As que tinham maridos, ora estavam desempregados, fazendo bicos ou trabalhando sem parar para sustentar as suas famílias, alguns eram alcóolatras, a violência doméstica era comum no cotidiano. O bairro não tinha hospital, delegacia, teatro, banco, cinema, escola, como já disse Steve Biko, estávamos por nossa própria conta.

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A minha casa não tinha muitos livros, somente a Bíblia e algumas enciclopédias. Havia uma farmacinha com remédios. Meus primeiros poemas foram escritos fazendo jogos de palavras com bulas medicinais. Minha cabeça fervilhava com ideias.

Difícil era convencer a escola onde enfrentava o racismo de professores que duvidavam do meu êxito escolar, mas o desejo de escrever e de protagonizar o meu destino me tornou uma leitora implacável.

Enfrentei a dureza da discriminação racial colocando palavras no papel. A escrita em versos me ajudou a entender as matérias com mais facilidade: na matemática, contava letras; na geografia, organizava palavras na página.

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Amava história! Pesquisava para escrever! Português nem se fala, andava com um dicionário para cima e para baixo. Mas ainda não tinha enfrentado o desafio de encarar a minha identidade.

Na universidade, no início dos anos 1990, conheci autores negros como Auta de Souza, Lima Barreto, Cruz e Souza, Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Foi como achar a minha família. Lendo, recebi forças para encarar a invisibilidade em um ambiente acadêmico onde o percentual de estudantes negros era de cerca de 0,1%.

Mas não estava só, a ancestralidade me esperava lá, conheci estudantes de países africanos como Angola, Senegal, Cabo Verde, República Democrática do Congo e Moçambique, que me apresentaram a poesia de Agostinho Neto, Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Noémia de Sousa. Por meio daqueles poemas e daquele contexto, fiz a minha luta de libertação. Encontrei-me nas obras de feministas negras como Beatriz Nascimento, Lélia González e Sueli Carneiro.

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No início dos anos 2000, conheci o primeiro coletivo de escritores negros e publiquei algumas poesias pela primeira vez na antologia Cadernos Negros, fundada no final dos anos 1970 e editada por Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro.

Um marco na minha trajetória profissional, um portal para os escurecimentos que tanto procurava. Nos livros, versos escritos por negros e negras que se assumiam como tal e apresentavam em suas composições o jeito de ser e de viver da gente preta brasileira.

Já formada como professora de teatro e atriz, percebi que as publicações poderiam chegar onde a educação étnico-racial não chegava, onde a equidade ainda não estava, poderiam provocar rasuras no cânone e apresentar contornos estéticos diante do racismo estrutural.

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A poesia afeta com o universo de imagens e sensações que pode provocar no leitor. Ainda hoje, 11 livros depois, escrevo sonhando com letras pretas a surgir nas páginas brancas mostrando a subjetividade, a humanidade e a complexidade, os sonhos dos mais de 100 milhões de pretos e pardos desse país. São inúmeros os temas a versificar. As relações raciais, o colorismo, o erotismo negro, a solidão da mulher negra, a maternidade.

Positivamente, temos muita história para contar sobre as nossas culturas: as matriarcas, os heróis e heroínas que construíram esse país, os saberes tradicionais, as línguas de matrizes africanas, temas que confirmam: somos ancestrais e também já futuristas, anunciando outros tempos onde as estantes dos lares brasileiros e das instituições de ensino possam estar recheadas de literatura antirracista.

Cristiane Sobral é atriz, escritora, dramaturga e poeta. Seu mais novo livro é ‘Caixa Preta’. Um dos títulos mais declamados pelo público é Não vou mais lavar os pratos, de 2010. Cristiane também lidera a editora Aldeia de Palavras.

Cedo a leitura me arrebatou.

A realidade não me bastava.

Ler trazia sentido, preenchia os vazios e aguçava os questionamentos de uma menina negra em um bairro de um subúrbio carioca.

O racismo mostrou a cara nos primeiros pentes finos e procedimentos estéticos alisantes que machucaram a minha cabeça, tentando trazer um formato aceitável diante dos padrões eurocêntricos vigentes, embora a maioria da população do meu loteamento fosse preta e parda.

Naquela época não entendia que o racismo estrutural tinha sido arquitetado no início do colonialismo. Com o fim oficial da escravidão no Brasil, as instituições já estavam preparadas para que este pudesse operar. As estruturas costumam proporcionar os melhores benefícios para os que estão a mais tempo posicionados nelas.

Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão, mas aqueles textos não me representavam.

Li o que encontrei. Comecei a entender que nasci em um tempo desfavorável para a ascensão na estrutura. Os escritores dos livros também não pareciam comigo. Em casa, quando ligava a televisão, pessoas negras, ali nos anos oitenta, estavam na maioria das vezes matando ou morrendo. Não parecia existir uma resposta agradável para a pergunta: o que você vai ser quando crescer?

'Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão', relembra a escritora Foto: Wilton Junior/Estadão

As mulheres negras, na maioria das vezes, estavam oprimidas em maternidades precoces e involuntárias e em serviços domésticos mal remunerados. As que tinham maridos, ora estavam desempregados, fazendo bicos ou trabalhando sem parar para sustentar as suas famílias, alguns eram alcóolatras, a violência doméstica era comum no cotidiano. O bairro não tinha hospital, delegacia, teatro, banco, cinema, escola, como já disse Steve Biko, estávamos por nossa própria conta.

A minha casa não tinha muitos livros, somente a Bíblia e algumas enciclopédias. Havia uma farmacinha com remédios. Meus primeiros poemas foram escritos fazendo jogos de palavras com bulas medicinais. Minha cabeça fervilhava com ideias.

Difícil era convencer a escola onde enfrentava o racismo de professores que duvidavam do meu êxito escolar, mas o desejo de escrever e de protagonizar o meu destino me tornou uma leitora implacável.

Enfrentei a dureza da discriminação racial colocando palavras no papel. A escrita em versos me ajudou a entender as matérias com mais facilidade: na matemática, contava letras; na geografia, organizava palavras na página.

Amava história! Pesquisava para escrever! Português nem se fala, andava com um dicionário para cima e para baixo. Mas ainda não tinha enfrentado o desafio de encarar a minha identidade.

Na universidade, no início dos anos 1990, conheci autores negros como Auta de Souza, Lima Barreto, Cruz e Souza, Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Foi como achar a minha família. Lendo, recebi forças para encarar a invisibilidade em um ambiente acadêmico onde o percentual de estudantes negros era de cerca de 0,1%.

Mas não estava só, a ancestralidade me esperava lá, conheci estudantes de países africanos como Angola, Senegal, Cabo Verde, República Democrática do Congo e Moçambique, que me apresentaram a poesia de Agostinho Neto, Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Noémia de Sousa. Por meio daqueles poemas e daquele contexto, fiz a minha luta de libertação. Encontrei-me nas obras de feministas negras como Beatriz Nascimento, Lélia González e Sueli Carneiro.

No início dos anos 2000, conheci o primeiro coletivo de escritores negros e publiquei algumas poesias pela primeira vez na antologia Cadernos Negros, fundada no final dos anos 1970 e editada por Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro.

Um marco na minha trajetória profissional, um portal para os escurecimentos que tanto procurava. Nos livros, versos escritos por negros e negras que se assumiam como tal e apresentavam em suas composições o jeito de ser e de viver da gente preta brasileira.

Já formada como professora de teatro e atriz, percebi que as publicações poderiam chegar onde a educação étnico-racial não chegava, onde a equidade ainda não estava, poderiam provocar rasuras no cânone e apresentar contornos estéticos diante do racismo estrutural.

A poesia afeta com o universo de imagens e sensações que pode provocar no leitor. Ainda hoje, 11 livros depois, escrevo sonhando com letras pretas a surgir nas páginas brancas mostrando a subjetividade, a humanidade e a complexidade, os sonhos dos mais de 100 milhões de pretos e pardos desse país. São inúmeros os temas a versificar. As relações raciais, o colorismo, o erotismo negro, a solidão da mulher negra, a maternidade.

Positivamente, temos muita história para contar sobre as nossas culturas: as matriarcas, os heróis e heroínas que construíram esse país, os saberes tradicionais, as línguas de matrizes africanas, temas que confirmam: somos ancestrais e também já futuristas, anunciando outros tempos onde as estantes dos lares brasileiros e das instituições de ensino possam estar recheadas de literatura antirracista.

Cristiane Sobral é atriz, escritora, dramaturga e poeta. Seu mais novo livro é ‘Caixa Preta’. Um dos títulos mais declamados pelo público é Não vou mais lavar os pratos, de 2010. Cristiane também lidera a editora Aldeia de Palavras.

Cedo a leitura me arrebatou.

A realidade não me bastava.

Ler trazia sentido, preenchia os vazios e aguçava os questionamentos de uma menina negra em um bairro de um subúrbio carioca.

O racismo mostrou a cara nos primeiros pentes finos e procedimentos estéticos alisantes que machucaram a minha cabeça, tentando trazer um formato aceitável diante dos padrões eurocêntricos vigentes, embora a maioria da população do meu loteamento fosse preta e parda.

Naquela época não entendia que o racismo estrutural tinha sido arquitetado no início do colonialismo. Com o fim oficial da escravidão no Brasil, as instituições já estavam preparadas para que este pudesse operar. As estruturas costumam proporcionar os melhores benefícios para os que estão a mais tempo posicionados nelas.

Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão, mas aqueles textos não me representavam.

Li o que encontrei. Comecei a entender que nasci em um tempo desfavorável para a ascensão na estrutura. Os escritores dos livros também não pareciam comigo. Em casa, quando ligava a televisão, pessoas negras, ali nos anos oitenta, estavam na maioria das vezes matando ou morrendo. Não parecia existir uma resposta agradável para a pergunta: o que você vai ser quando crescer?

'Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão', relembra a escritora Foto: Wilton Junior/Estadão

As mulheres negras, na maioria das vezes, estavam oprimidas em maternidades precoces e involuntárias e em serviços domésticos mal remunerados. As que tinham maridos, ora estavam desempregados, fazendo bicos ou trabalhando sem parar para sustentar as suas famílias, alguns eram alcóolatras, a violência doméstica era comum no cotidiano. O bairro não tinha hospital, delegacia, teatro, banco, cinema, escola, como já disse Steve Biko, estávamos por nossa própria conta.

A minha casa não tinha muitos livros, somente a Bíblia e algumas enciclopédias. Havia uma farmacinha com remédios. Meus primeiros poemas foram escritos fazendo jogos de palavras com bulas medicinais. Minha cabeça fervilhava com ideias.

Difícil era convencer a escola onde enfrentava o racismo de professores que duvidavam do meu êxito escolar, mas o desejo de escrever e de protagonizar o meu destino me tornou uma leitora implacável.

Enfrentei a dureza da discriminação racial colocando palavras no papel. A escrita em versos me ajudou a entender as matérias com mais facilidade: na matemática, contava letras; na geografia, organizava palavras na página.

Amava história! Pesquisava para escrever! Português nem se fala, andava com um dicionário para cima e para baixo. Mas ainda não tinha enfrentado o desafio de encarar a minha identidade.

Na universidade, no início dos anos 1990, conheci autores negros como Auta de Souza, Lima Barreto, Cruz e Souza, Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Foi como achar a minha família. Lendo, recebi forças para encarar a invisibilidade em um ambiente acadêmico onde o percentual de estudantes negros era de cerca de 0,1%.

Mas não estava só, a ancestralidade me esperava lá, conheci estudantes de países africanos como Angola, Senegal, Cabo Verde, República Democrática do Congo e Moçambique, que me apresentaram a poesia de Agostinho Neto, Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Noémia de Sousa. Por meio daqueles poemas e daquele contexto, fiz a minha luta de libertação. Encontrei-me nas obras de feministas negras como Beatriz Nascimento, Lélia González e Sueli Carneiro.

No início dos anos 2000, conheci o primeiro coletivo de escritores negros e publiquei algumas poesias pela primeira vez na antologia Cadernos Negros, fundada no final dos anos 1970 e editada por Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro.

Um marco na minha trajetória profissional, um portal para os escurecimentos que tanto procurava. Nos livros, versos escritos por negros e negras que se assumiam como tal e apresentavam em suas composições o jeito de ser e de viver da gente preta brasileira.

Já formada como professora de teatro e atriz, percebi que as publicações poderiam chegar onde a educação étnico-racial não chegava, onde a equidade ainda não estava, poderiam provocar rasuras no cânone e apresentar contornos estéticos diante do racismo estrutural.

A poesia afeta com o universo de imagens e sensações que pode provocar no leitor. Ainda hoje, 11 livros depois, escrevo sonhando com letras pretas a surgir nas páginas brancas mostrando a subjetividade, a humanidade e a complexidade, os sonhos dos mais de 100 milhões de pretos e pardos desse país. São inúmeros os temas a versificar. As relações raciais, o colorismo, o erotismo negro, a solidão da mulher negra, a maternidade.

Positivamente, temos muita história para contar sobre as nossas culturas: as matriarcas, os heróis e heroínas que construíram esse país, os saberes tradicionais, as línguas de matrizes africanas, temas que confirmam: somos ancestrais e também já futuristas, anunciando outros tempos onde as estantes dos lares brasileiros e das instituições de ensino possam estar recheadas de literatura antirracista.

Cristiane Sobral é atriz, escritora, dramaturga e poeta. Seu mais novo livro é ‘Caixa Preta’. Um dos títulos mais declamados pelo público é Não vou mais lavar os pratos, de 2010. Cristiane também lidera a editora Aldeia de Palavras.

Cedo a leitura me arrebatou.

A realidade não me bastava.

Ler trazia sentido, preenchia os vazios e aguçava os questionamentos de uma menina negra em um bairro de um subúrbio carioca.

O racismo mostrou a cara nos primeiros pentes finos e procedimentos estéticos alisantes que machucaram a minha cabeça, tentando trazer um formato aceitável diante dos padrões eurocêntricos vigentes, embora a maioria da população do meu loteamento fosse preta e parda.

Naquela época não entendia que o racismo estrutural tinha sido arquitetado no início do colonialismo. Com o fim oficial da escravidão no Brasil, as instituições já estavam preparadas para que este pudesse operar. As estruturas costumam proporcionar os melhores benefícios para os que estão a mais tempo posicionados nelas.

Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão, mas aqueles textos não me representavam.

Li o que encontrei. Comecei a entender que nasci em um tempo desfavorável para a ascensão na estrutura. Os escritores dos livros também não pareciam comigo. Em casa, quando ligava a televisão, pessoas negras, ali nos anos oitenta, estavam na maioria das vezes matando ou morrendo. Não parecia existir uma resposta agradável para a pergunta: o que você vai ser quando crescer?

'Na biblioteca da escola pública, descobri os primeiros livros de poesia. Ler em voz alta me levava para outra dimensão', relembra a escritora Foto: Wilton Junior/Estadão

As mulheres negras, na maioria das vezes, estavam oprimidas em maternidades precoces e involuntárias e em serviços domésticos mal remunerados. As que tinham maridos, ora estavam desempregados, fazendo bicos ou trabalhando sem parar para sustentar as suas famílias, alguns eram alcóolatras, a violência doméstica era comum no cotidiano. O bairro não tinha hospital, delegacia, teatro, banco, cinema, escola, como já disse Steve Biko, estávamos por nossa própria conta.

A minha casa não tinha muitos livros, somente a Bíblia e algumas enciclopédias. Havia uma farmacinha com remédios. Meus primeiros poemas foram escritos fazendo jogos de palavras com bulas medicinais. Minha cabeça fervilhava com ideias.

Difícil era convencer a escola onde enfrentava o racismo de professores que duvidavam do meu êxito escolar, mas o desejo de escrever e de protagonizar o meu destino me tornou uma leitora implacável.

Enfrentei a dureza da discriminação racial colocando palavras no papel. A escrita em versos me ajudou a entender as matérias com mais facilidade: na matemática, contava letras; na geografia, organizava palavras na página.

Amava história! Pesquisava para escrever! Português nem se fala, andava com um dicionário para cima e para baixo. Mas ainda não tinha enfrentado o desafio de encarar a minha identidade.

Na universidade, no início dos anos 1990, conheci autores negros como Auta de Souza, Lima Barreto, Cruz e Souza, Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Foi como achar a minha família. Lendo, recebi forças para encarar a invisibilidade em um ambiente acadêmico onde o percentual de estudantes negros era de cerca de 0,1%.

Mas não estava só, a ancestralidade me esperava lá, conheci estudantes de países africanos como Angola, Senegal, Cabo Verde, República Democrática do Congo e Moçambique, que me apresentaram a poesia de Agostinho Neto, Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Noémia de Sousa. Por meio daqueles poemas e daquele contexto, fiz a minha luta de libertação. Encontrei-me nas obras de feministas negras como Beatriz Nascimento, Lélia González e Sueli Carneiro.

No início dos anos 2000, conheci o primeiro coletivo de escritores negros e publiquei algumas poesias pela primeira vez na antologia Cadernos Negros, fundada no final dos anos 1970 e editada por Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro.

Um marco na minha trajetória profissional, um portal para os escurecimentos que tanto procurava. Nos livros, versos escritos por negros e negras que se assumiam como tal e apresentavam em suas composições o jeito de ser e de viver da gente preta brasileira.

Já formada como professora de teatro e atriz, percebi que as publicações poderiam chegar onde a educação étnico-racial não chegava, onde a equidade ainda não estava, poderiam provocar rasuras no cânone e apresentar contornos estéticos diante do racismo estrutural.

A poesia afeta com o universo de imagens e sensações que pode provocar no leitor. Ainda hoje, 11 livros depois, escrevo sonhando com letras pretas a surgir nas páginas brancas mostrando a subjetividade, a humanidade e a complexidade, os sonhos dos mais de 100 milhões de pretos e pardos desse país. São inúmeros os temas a versificar. As relações raciais, o colorismo, o erotismo negro, a solidão da mulher negra, a maternidade.

Positivamente, temos muita história para contar sobre as nossas culturas: as matriarcas, os heróis e heroínas que construíram esse país, os saberes tradicionais, as línguas de matrizes africanas, temas que confirmam: somos ancestrais e também já futuristas, anunciando outros tempos onde as estantes dos lares brasileiros e das instituições de ensino possam estar recheadas de literatura antirracista.

Cristiane Sobral é atriz, escritora, dramaturga e poeta. Seu mais novo livro é ‘Caixa Preta’. Um dos títulos mais declamados pelo público é Não vou mais lavar os pratos, de 2010. Cristiane também lidera a editora Aldeia de Palavras.

Opinião por Cristiane Sobral

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