Como cidades devem mudar para encarar crise do clima, segundo brasileira com mais alto cargo na ONU


Em entrevista exclusiva ao ‘Estadão’, Anacláudia Rossbach, diretora executiva do ONU-Habitat, fala sobre planejamento urbano, meio ambiente e crescimento das cidades

Por Priscila Mengue
Foto: Julius Mwelu/ONU-Habitat
Entrevista comAnaclaúdia RossbachSubsecretária geral da ONU e diretora executiva do ONU-Habitat

A urbanização qualificada de favelas é uma das maneiras de reduzir os impactos da crise climática e, também, experiências de países em desenvolvimento podem inspirar o planejamento urbano mundo afora, é o que defende a brasileira Anacláudia Rossbach. Em agosto, a economista foi empossada como subsecretária geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao assumir a diretoria executiva do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), sediado em Nairóbi, no Quênia.

Por videochamada, a nova subsecretária concedeu uma entrevista ao Estadão por chamada de vídeo, diretamente de Nova York, onde estava para compromissos do cargo. Antes, foi diretora para América Latina e Caribe do Instituto Lincoln de Política de Solo (EUA), com passagens e consultoria anteriores em outras instituições nacionais e internacionais, como o Cities Alliance e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

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A economista teve a trajetória marcada pelo envolvimento em programas de planejamento urbano, habitação social e urbanização de assentamentos precários. Dentre outros, costuma destacar seu trabalho no Banco Mundial, pelo qual prestou consultoria durante o desenvolvimento do Minha Casa Minha Vida e do PAC Urbanização de Favelas.

Anacláudia Rossbach, diretora executiva do ONU-Habitat Foto: ONU-Habitat/Divulgação

A seguir, confira os principais tópicos abordados durante a entrevista exclusiva ao Estadão:

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Indicação e seleção para o cargo

Fiquei muito feliz com o convite. Minhas passagens por diversas organizações, governo local, nacional, Banco Mundial, instituições internacionais, me ajudaram a perceber que, realmente, estava equipada para participar do processo. Foi um processo de seleção, né? Competitivo. Outros candidatos participaram. No fim, fui selecionada. É uma vitória que compactuo com as pessoas e as mulheres latino-americanas e do Sul Global.

Meio ambiente e COP

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Tem uma intersecção grande entre questões urbanas e ambientais. Haverá uma conferência importante em novembro no Egito: o Fórum Urbano Mundial. Vamos lançar um relatório sobre cidades, o World Cities Report, que, neste ano, tem o tema mudança climática. Estamos entendendo, cada vez mais, essa intersecção (das políticas urbanas e de habitação). As cidades têm papel importante nas emissões, são responsáveis por 70% delas, mas por outro lado têm muitas oportunidades para trabalhar.

Problemas históricos das cidades

Qual é a história que temos na América Latina, no mundo em geral? Planos diretores, planos urbanos, que são técnicos, top-down (de cima para baixo), sem consulta, sem participação. Muitas vezes, no Sul Global, copiamos modelos de planejamento urbano de cidades que não têm nosso contexto. Algo bacana que aconteceu na América Latina mais recentemente e no Brasil é que começamos a aprender a planejar para o nosso contexto. Temos favelas? Sim, temos. Então, vamos coletar mais informações, aprender mais sobre esses assentamentos, desenhar políticas, identificar instrumentos de planejamento que possam ser atrelados a programas de investimento para a regularização fundiária ética.

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Urbanização de favelas e meio ambiente

Se melhorar as condições de habitação nos assentamentos precários, se trabalhar políticas de regularização fundiária, minimiza a necessidade de construir novas habitações. Novas habitações têm impacto ambiental: onde construir? Já começa no uso do solo, nos materiais etc. Construir uma casa sustentável, do ponto de vista ambiental, é caro. Para as pessoas e para os governos, se precisa aplicar subsídios, embora a manutenção seja mais barata e o impacto ambiental, menor.

Anacláudia Rossbach durante agenda pelo ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/ONU-Habitat
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Expansão das cidades

As cidades estão crescendo mais em território do que em população. É um fenômeno mundial. Essa expansão urbana vai muito à mercê de residências. Na covid, teve muita gente que se mudou para as outras áreas, condomínios fechados, subúrbios etc. Temos favelas, ocupações informais. E os projetos habitacionais construídos em áreas periféricas, onde o solo é mais barato. A cidade cresce levada por habitação, seja para classes mais altas, seja informalidade, seja habitação pública. Essa expansão urbana gera situações de risco. Estamos comendo o entorno ambiental, afetando a biodiversidade, com riscos de segurança alimentar. É um processo de transformação, de utilização do solo, de solo rural para urbano.

Cidades compactas

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Como pensar um planejamento urbano que minimize a expansão urbana, que tenha estratégias equilibradas? Vamos adensar (aumentar população) de modo equilibrado, pensando em manter espaços públicos verdes etc. À medida que a cidade cresce (em território), é preciso construir mais infraestrutura. E isso tem pegada (de carbono), né? E custo fiscal para os municípios. Se trabalhar o planejamento urbano como espinha dorsal para onde e como as cidades vão se desenvolver, pode trabalhar uma série de estratégias de ganha-ganha, em termos sociais — de superar a fragmentação, a segregação, e gerar mais inclusão e integração. Pode ter um resultado ganha-ganha em termos de proteção do meio ambiente, geração de espaços verdes nas cidades.

Encontrar soluções nas cidades

Qualquer cidade, por mais adensada que esteja, a gente sempre vai achar oportunidades que possam ser utilizadas para atender às necessidades sociais e em equilíbrio com as questões ambientais. Tem vários estudos que mostram que, quando as cidades são mais compactas e adensadas, pode aumentar a arrecadação fiscal e minimizar os gastos em construção de infraestrutura. O planejamento urbano é uma ferramenta poderosa, mas ainda um ilustre desconhecido da sociedade.

Crise mundial da habitação

Não estaria aqui se não acreditasse que a transformação é possível. Especificamente na área urbana há uma crise mundial de habitação, é um dominador no Sul Global e no Norte Global. Temos brechas de poder aquisitivo grandes: a diferença entre o salário médio das pessoas e o preço das casas é historicamente grande. Temos o fenômeno de população de rua em muitas cidades do mundo. No Sul Global, há temas estruturais, que são as favelas. E o ONU-Habitat fala de 1 bilhão de pessoas em favelas, mas acho que, depois da covid, esse número aumentou. Há casas sendo destruídas pelas guerras, pelos desastres, as pessoas forçadas a migrar, saírem das suas áreas de origem por vários motivos, questões ambientais, econômicas, políticas, de segurança. É uma crise global.

Transformações possíveis

As cidades são segregadas, desiguais, com prevalência grande de pobreza urbana. Para sair desse beco que parece sem saída, precisa promover transformações estruturais e sistêmicas. No Brasil e na América Latina, avançamos em relação a isso. No Brasil, a Constituição e o Estatuto das Cidades reconhecem a função social do solo, da propriedade. É um elemento importante.

Exemplos do Sul Global

A Constituição do Equador entende que o solo é um bem finito, que se esgota e que precisamos maximizar sua função social e ecológica para proteger as pessoas e o planeta e, a partir daí, planejar as cidades, desenhar estratégias de habitação etc. A América Latina tem exemplos concretos e icônicos de avanços, como, por exemplo, o Plano Diretor de Bogotá, que inclui todo um sistema de cuidados, de proteção à biodiversidade do entorno ambiental do município. Mostra aí uma evolução importante, sistêmica, que serve de amparo para um planejamento mais sustentável, orientado às pessoas e à natureza, para políticas de habitação que sejam mais inclusivas, de urbanização de favelas, de transformação de assentamentos precários.

Desigualdades

Podemos estar em um caminho de encontrar soluções e superar essas questões estruturais, embora os desafios sejam grandes. O impacto dos desastres nas populações mais vulneráveis é desproporcional. Nesses dias, havia enchentes na Europa Central e na África Central. E, quando se olha as imagens, se pensa em redes de proteção social e de ajuda, na capacidade da Europa versus África Central, que está sofrendo muito mais. É questão de urgência trabalhar nisso. E é importante estabelecer prioridades.

Economista durante reunião recente no ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/UN-Habitat

Sabedoria local e tecnologia

As questões culturais estão cada vez vindo mais à tona. Na Colômbia, tem um caso icônico do plano diretor de Santa Marta, que incorpora elementos da sabedoria indígena no planejamento urbano. E, por outro lado, há o uso da tecnologia. O uso dos dois ajuda no processo de transformação sistêmica.

Smart cities

Estamos em uma encruzilhada: precisa ter bom senso sobre como utilizar as tecnologias. Ter cuidado para não contar só com isso. Se for utilizar, por exemplo, as informações de aplicativos de transporte para planejar uma cidade, tem de pensar que tem muitas mulheres pobres não pegam aplicativo de transporte. Então, a forma como se movem não vai estar incorporada. Há dados disponíveis, mas quem está refletido neles? Também precisa ter cuidado com a divisão digital: vimos, na covid, como pessoas em assentamentos precários sofreram porque tinham dificuldade de acesso à internet, seja para procurar emprego, seja para estudar. Nesse aspecto, o conceito de smart cities pode ajudar a trabalhar de maneira a promover a inclusão das pessoas em situação mais vulnerável.

Recursos

Há disputa por recursos, mas há a possibilidade de ter um caminho para identificar consciência, entendimentos, acordar o que é urgência, e enxergar para além disso. É complexo fazer isso em mundo que está cheio de conflitos, guerras, polarizado por questões políticas. A dimensão variada do Brasil é desafio, mas também uma oportunidade de encontrar soluções locais, soluções diversas. Precisa ter um Ministério das Cidades forte.

Anacláudia Rossbach tem experiência em ações de urbanização de favelas; na foto, Paraisópolis, em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 24/06/2020

Efeitos práticos de ações

Tive a oportunidade de conhecer pessoas que tiveram suas vidas transformadas simplesmente pelo acesso à habitação, a uma melhor infraestrutura onde vivem. E a transformação não se limita a uma geração. Os filhos dessas pessoas hoje estão em outro patamar de acesso a oportunidades, pelo simples fato de ter endereço, de poder pegar transporte para ir a uma entrevista de emprego, à escola. E aí tem a combinação, no Brasil, de políticas sociais de acesso à educação, educação superior etc, combinadas a políticas de geração de renda, de salário mínimo. Isso é inspirador: a vida das pessoas transformadas, crianças que nasceram em um barraco e que hoje estão concluindo a universidade.

PAC Urbanização de Favelas e Minha Casa Minha Vida

Obviamente têm impacto urbano, mas também social, ambiental, econômico. Do ponto de vista, por exemplo, de gênero, você regulariza o solo para as mulheres. O Minha Casa Minha Vida tem esse elemento: o título vai em nome da mulher; em caso de separação, fica com a mulher. Isso, para as mulheres, em termos de promover autonomia, empoderamento, é grande.

A urbanização qualificada de favelas é uma das maneiras de reduzir os impactos da crise climática e, também, experiências de países em desenvolvimento podem inspirar o planejamento urbano mundo afora, é o que defende a brasileira Anacláudia Rossbach. Em agosto, a economista foi empossada como subsecretária geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao assumir a diretoria executiva do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), sediado em Nairóbi, no Quênia.

Por videochamada, a nova subsecretária concedeu uma entrevista ao Estadão por chamada de vídeo, diretamente de Nova York, onde estava para compromissos do cargo. Antes, foi diretora para América Latina e Caribe do Instituto Lincoln de Política de Solo (EUA), com passagens e consultoria anteriores em outras instituições nacionais e internacionais, como o Cities Alliance e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

A economista teve a trajetória marcada pelo envolvimento em programas de planejamento urbano, habitação social e urbanização de assentamentos precários. Dentre outros, costuma destacar seu trabalho no Banco Mundial, pelo qual prestou consultoria durante o desenvolvimento do Minha Casa Minha Vida e do PAC Urbanização de Favelas.

Anacláudia Rossbach, diretora executiva do ONU-Habitat Foto: ONU-Habitat/Divulgação

A seguir, confira os principais tópicos abordados durante a entrevista exclusiva ao Estadão:

Indicação e seleção para o cargo

Fiquei muito feliz com o convite. Minhas passagens por diversas organizações, governo local, nacional, Banco Mundial, instituições internacionais, me ajudaram a perceber que, realmente, estava equipada para participar do processo. Foi um processo de seleção, né? Competitivo. Outros candidatos participaram. No fim, fui selecionada. É uma vitória que compactuo com as pessoas e as mulheres latino-americanas e do Sul Global.

Meio ambiente e COP

Tem uma intersecção grande entre questões urbanas e ambientais. Haverá uma conferência importante em novembro no Egito: o Fórum Urbano Mundial. Vamos lançar um relatório sobre cidades, o World Cities Report, que, neste ano, tem o tema mudança climática. Estamos entendendo, cada vez mais, essa intersecção (das políticas urbanas e de habitação). As cidades têm papel importante nas emissões, são responsáveis por 70% delas, mas por outro lado têm muitas oportunidades para trabalhar.

Problemas históricos das cidades

Qual é a história que temos na América Latina, no mundo em geral? Planos diretores, planos urbanos, que são técnicos, top-down (de cima para baixo), sem consulta, sem participação. Muitas vezes, no Sul Global, copiamos modelos de planejamento urbano de cidades que não têm nosso contexto. Algo bacana que aconteceu na América Latina mais recentemente e no Brasil é que começamos a aprender a planejar para o nosso contexto. Temos favelas? Sim, temos. Então, vamos coletar mais informações, aprender mais sobre esses assentamentos, desenhar políticas, identificar instrumentos de planejamento que possam ser atrelados a programas de investimento para a regularização fundiária ética.

Urbanização de favelas e meio ambiente

Se melhorar as condições de habitação nos assentamentos precários, se trabalhar políticas de regularização fundiária, minimiza a necessidade de construir novas habitações. Novas habitações têm impacto ambiental: onde construir? Já começa no uso do solo, nos materiais etc. Construir uma casa sustentável, do ponto de vista ambiental, é caro. Para as pessoas e para os governos, se precisa aplicar subsídios, embora a manutenção seja mais barata e o impacto ambiental, menor.

Anacláudia Rossbach durante agenda pelo ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/ONU-Habitat

Expansão das cidades

As cidades estão crescendo mais em território do que em população. É um fenômeno mundial. Essa expansão urbana vai muito à mercê de residências. Na covid, teve muita gente que se mudou para as outras áreas, condomínios fechados, subúrbios etc. Temos favelas, ocupações informais. E os projetos habitacionais construídos em áreas periféricas, onde o solo é mais barato. A cidade cresce levada por habitação, seja para classes mais altas, seja informalidade, seja habitação pública. Essa expansão urbana gera situações de risco. Estamos comendo o entorno ambiental, afetando a biodiversidade, com riscos de segurança alimentar. É um processo de transformação, de utilização do solo, de solo rural para urbano.

Cidades compactas

Como pensar um planejamento urbano que minimize a expansão urbana, que tenha estratégias equilibradas? Vamos adensar (aumentar população) de modo equilibrado, pensando em manter espaços públicos verdes etc. À medida que a cidade cresce (em território), é preciso construir mais infraestrutura. E isso tem pegada (de carbono), né? E custo fiscal para os municípios. Se trabalhar o planejamento urbano como espinha dorsal para onde e como as cidades vão se desenvolver, pode trabalhar uma série de estratégias de ganha-ganha, em termos sociais — de superar a fragmentação, a segregação, e gerar mais inclusão e integração. Pode ter um resultado ganha-ganha em termos de proteção do meio ambiente, geração de espaços verdes nas cidades.

Encontrar soluções nas cidades

Qualquer cidade, por mais adensada que esteja, a gente sempre vai achar oportunidades que possam ser utilizadas para atender às necessidades sociais e em equilíbrio com as questões ambientais. Tem vários estudos que mostram que, quando as cidades são mais compactas e adensadas, pode aumentar a arrecadação fiscal e minimizar os gastos em construção de infraestrutura. O planejamento urbano é uma ferramenta poderosa, mas ainda um ilustre desconhecido da sociedade.

Crise mundial da habitação

Não estaria aqui se não acreditasse que a transformação é possível. Especificamente na área urbana há uma crise mundial de habitação, é um dominador no Sul Global e no Norte Global. Temos brechas de poder aquisitivo grandes: a diferença entre o salário médio das pessoas e o preço das casas é historicamente grande. Temos o fenômeno de população de rua em muitas cidades do mundo. No Sul Global, há temas estruturais, que são as favelas. E o ONU-Habitat fala de 1 bilhão de pessoas em favelas, mas acho que, depois da covid, esse número aumentou. Há casas sendo destruídas pelas guerras, pelos desastres, as pessoas forçadas a migrar, saírem das suas áreas de origem por vários motivos, questões ambientais, econômicas, políticas, de segurança. É uma crise global.

Transformações possíveis

As cidades são segregadas, desiguais, com prevalência grande de pobreza urbana. Para sair desse beco que parece sem saída, precisa promover transformações estruturais e sistêmicas. No Brasil e na América Latina, avançamos em relação a isso. No Brasil, a Constituição e o Estatuto das Cidades reconhecem a função social do solo, da propriedade. É um elemento importante.

Exemplos do Sul Global

A Constituição do Equador entende que o solo é um bem finito, que se esgota e que precisamos maximizar sua função social e ecológica para proteger as pessoas e o planeta e, a partir daí, planejar as cidades, desenhar estratégias de habitação etc. A América Latina tem exemplos concretos e icônicos de avanços, como, por exemplo, o Plano Diretor de Bogotá, que inclui todo um sistema de cuidados, de proteção à biodiversidade do entorno ambiental do município. Mostra aí uma evolução importante, sistêmica, que serve de amparo para um planejamento mais sustentável, orientado às pessoas e à natureza, para políticas de habitação que sejam mais inclusivas, de urbanização de favelas, de transformação de assentamentos precários.

Desigualdades

Podemos estar em um caminho de encontrar soluções e superar essas questões estruturais, embora os desafios sejam grandes. O impacto dos desastres nas populações mais vulneráveis é desproporcional. Nesses dias, havia enchentes na Europa Central e na África Central. E, quando se olha as imagens, se pensa em redes de proteção social e de ajuda, na capacidade da Europa versus África Central, que está sofrendo muito mais. É questão de urgência trabalhar nisso. E é importante estabelecer prioridades.

Economista durante reunião recente no ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/UN-Habitat

Sabedoria local e tecnologia

As questões culturais estão cada vez vindo mais à tona. Na Colômbia, tem um caso icônico do plano diretor de Santa Marta, que incorpora elementos da sabedoria indígena no planejamento urbano. E, por outro lado, há o uso da tecnologia. O uso dos dois ajuda no processo de transformação sistêmica.

Smart cities

Estamos em uma encruzilhada: precisa ter bom senso sobre como utilizar as tecnologias. Ter cuidado para não contar só com isso. Se for utilizar, por exemplo, as informações de aplicativos de transporte para planejar uma cidade, tem de pensar que tem muitas mulheres pobres não pegam aplicativo de transporte. Então, a forma como se movem não vai estar incorporada. Há dados disponíveis, mas quem está refletido neles? Também precisa ter cuidado com a divisão digital: vimos, na covid, como pessoas em assentamentos precários sofreram porque tinham dificuldade de acesso à internet, seja para procurar emprego, seja para estudar. Nesse aspecto, o conceito de smart cities pode ajudar a trabalhar de maneira a promover a inclusão das pessoas em situação mais vulnerável.

Recursos

Há disputa por recursos, mas há a possibilidade de ter um caminho para identificar consciência, entendimentos, acordar o que é urgência, e enxergar para além disso. É complexo fazer isso em mundo que está cheio de conflitos, guerras, polarizado por questões políticas. A dimensão variada do Brasil é desafio, mas também uma oportunidade de encontrar soluções locais, soluções diversas. Precisa ter um Ministério das Cidades forte.

Anacláudia Rossbach tem experiência em ações de urbanização de favelas; na foto, Paraisópolis, em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 24/06/2020

Efeitos práticos de ações

Tive a oportunidade de conhecer pessoas que tiveram suas vidas transformadas simplesmente pelo acesso à habitação, a uma melhor infraestrutura onde vivem. E a transformação não se limita a uma geração. Os filhos dessas pessoas hoje estão em outro patamar de acesso a oportunidades, pelo simples fato de ter endereço, de poder pegar transporte para ir a uma entrevista de emprego, à escola. E aí tem a combinação, no Brasil, de políticas sociais de acesso à educação, educação superior etc, combinadas a políticas de geração de renda, de salário mínimo. Isso é inspirador: a vida das pessoas transformadas, crianças que nasceram em um barraco e que hoje estão concluindo a universidade.

PAC Urbanização de Favelas e Minha Casa Minha Vida

Obviamente têm impacto urbano, mas também social, ambiental, econômico. Do ponto de vista, por exemplo, de gênero, você regulariza o solo para as mulheres. O Minha Casa Minha Vida tem esse elemento: o título vai em nome da mulher; em caso de separação, fica com a mulher. Isso, para as mulheres, em termos de promover autonomia, empoderamento, é grande.

A urbanização qualificada de favelas é uma das maneiras de reduzir os impactos da crise climática e, também, experiências de países em desenvolvimento podem inspirar o planejamento urbano mundo afora, é o que defende a brasileira Anacláudia Rossbach. Em agosto, a economista foi empossada como subsecretária geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao assumir a diretoria executiva do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), sediado em Nairóbi, no Quênia.

Por videochamada, a nova subsecretária concedeu uma entrevista ao Estadão por chamada de vídeo, diretamente de Nova York, onde estava para compromissos do cargo. Antes, foi diretora para América Latina e Caribe do Instituto Lincoln de Política de Solo (EUA), com passagens e consultoria anteriores em outras instituições nacionais e internacionais, como o Cities Alliance e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

A economista teve a trajetória marcada pelo envolvimento em programas de planejamento urbano, habitação social e urbanização de assentamentos precários. Dentre outros, costuma destacar seu trabalho no Banco Mundial, pelo qual prestou consultoria durante o desenvolvimento do Minha Casa Minha Vida e do PAC Urbanização de Favelas.

Anacláudia Rossbach, diretora executiva do ONU-Habitat Foto: ONU-Habitat/Divulgação

A seguir, confira os principais tópicos abordados durante a entrevista exclusiva ao Estadão:

Indicação e seleção para o cargo

Fiquei muito feliz com o convite. Minhas passagens por diversas organizações, governo local, nacional, Banco Mundial, instituições internacionais, me ajudaram a perceber que, realmente, estava equipada para participar do processo. Foi um processo de seleção, né? Competitivo. Outros candidatos participaram. No fim, fui selecionada. É uma vitória que compactuo com as pessoas e as mulheres latino-americanas e do Sul Global.

Meio ambiente e COP

Tem uma intersecção grande entre questões urbanas e ambientais. Haverá uma conferência importante em novembro no Egito: o Fórum Urbano Mundial. Vamos lançar um relatório sobre cidades, o World Cities Report, que, neste ano, tem o tema mudança climática. Estamos entendendo, cada vez mais, essa intersecção (das políticas urbanas e de habitação). As cidades têm papel importante nas emissões, são responsáveis por 70% delas, mas por outro lado têm muitas oportunidades para trabalhar.

Problemas históricos das cidades

Qual é a história que temos na América Latina, no mundo em geral? Planos diretores, planos urbanos, que são técnicos, top-down (de cima para baixo), sem consulta, sem participação. Muitas vezes, no Sul Global, copiamos modelos de planejamento urbano de cidades que não têm nosso contexto. Algo bacana que aconteceu na América Latina mais recentemente e no Brasil é que começamos a aprender a planejar para o nosso contexto. Temos favelas? Sim, temos. Então, vamos coletar mais informações, aprender mais sobre esses assentamentos, desenhar políticas, identificar instrumentos de planejamento que possam ser atrelados a programas de investimento para a regularização fundiária ética.

Urbanização de favelas e meio ambiente

Se melhorar as condições de habitação nos assentamentos precários, se trabalhar políticas de regularização fundiária, minimiza a necessidade de construir novas habitações. Novas habitações têm impacto ambiental: onde construir? Já começa no uso do solo, nos materiais etc. Construir uma casa sustentável, do ponto de vista ambiental, é caro. Para as pessoas e para os governos, se precisa aplicar subsídios, embora a manutenção seja mais barata e o impacto ambiental, menor.

Anacláudia Rossbach durante agenda pelo ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/ONU-Habitat

Expansão das cidades

As cidades estão crescendo mais em território do que em população. É um fenômeno mundial. Essa expansão urbana vai muito à mercê de residências. Na covid, teve muita gente que se mudou para as outras áreas, condomínios fechados, subúrbios etc. Temos favelas, ocupações informais. E os projetos habitacionais construídos em áreas periféricas, onde o solo é mais barato. A cidade cresce levada por habitação, seja para classes mais altas, seja informalidade, seja habitação pública. Essa expansão urbana gera situações de risco. Estamos comendo o entorno ambiental, afetando a biodiversidade, com riscos de segurança alimentar. É um processo de transformação, de utilização do solo, de solo rural para urbano.

Cidades compactas

Como pensar um planejamento urbano que minimize a expansão urbana, que tenha estratégias equilibradas? Vamos adensar (aumentar população) de modo equilibrado, pensando em manter espaços públicos verdes etc. À medida que a cidade cresce (em território), é preciso construir mais infraestrutura. E isso tem pegada (de carbono), né? E custo fiscal para os municípios. Se trabalhar o planejamento urbano como espinha dorsal para onde e como as cidades vão se desenvolver, pode trabalhar uma série de estratégias de ganha-ganha, em termos sociais — de superar a fragmentação, a segregação, e gerar mais inclusão e integração. Pode ter um resultado ganha-ganha em termos de proteção do meio ambiente, geração de espaços verdes nas cidades.

Encontrar soluções nas cidades

Qualquer cidade, por mais adensada que esteja, a gente sempre vai achar oportunidades que possam ser utilizadas para atender às necessidades sociais e em equilíbrio com as questões ambientais. Tem vários estudos que mostram que, quando as cidades são mais compactas e adensadas, pode aumentar a arrecadação fiscal e minimizar os gastos em construção de infraestrutura. O planejamento urbano é uma ferramenta poderosa, mas ainda um ilustre desconhecido da sociedade.

Crise mundial da habitação

Não estaria aqui se não acreditasse que a transformação é possível. Especificamente na área urbana há uma crise mundial de habitação, é um dominador no Sul Global e no Norte Global. Temos brechas de poder aquisitivo grandes: a diferença entre o salário médio das pessoas e o preço das casas é historicamente grande. Temos o fenômeno de população de rua em muitas cidades do mundo. No Sul Global, há temas estruturais, que são as favelas. E o ONU-Habitat fala de 1 bilhão de pessoas em favelas, mas acho que, depois da covid, esse número aumentou. Há casas sendo destruídas pelas guerras, pelos desastres, as pessoas forçadas a migrar, saírem das suas áreas de origem por vários motivos, questões ambientais, econômicas, políticas, de segurança. É uma crise global.

Transformações possíveis

As cidades são segregadas, desiguais, com prevalência grande de pobreza urbana. Para sair desse beco que parece sem saída, precisa promover transformações estruturais e sistêmicas. No Brasil e na América Latina, avançamos em relação a isso. No Brasil, a Constituição e o Estatuto das Cidades reconhecem a função social do solo, da propriedade. É um elemento importante.

Exemplos do Sul Global

A Constituição do Equador entende que o solo é um bem finito, que se esgota e que precisamos maximizar sua função social e ecológica para proteger as pessoas e o planeta e, a partir daí, planejar as cidades, desenhar estratégias de habitação etc. A América Latina tem exemplos concretos e icônicos de avanços, como, por exemplo, o Plano Diretor de Bogotá, que inclui todo um sistema de cuidados, de proteção à biodiversidade do entorno ambiental do município. Mostra aí uma evolução importante, sistêmica, que serve de amparo para um planejamento mais sustentável, orientado às pessoas e à natureza, para políticas de habitação que sejam mais inclusivas, de urbanização de favelas, de transformação de assentamentos precários.

Desigualdades

Podemos estar em um caminho de encontrar soluções e superar essas questões estruturais, embora os desafios sejam grandes. O impacto dos desastres nas populações mais vulneráveis é desproporcional. Nesses dias, havia enchentes na Europa Central e na África Central. E, quando se olha as imagens, se pensa em redes de proteção social e de ajuda, na capacidade da Europa versus África Central, que está sofrendo muito mais. É questão de urgência trabalhar nisso. E é importante estabelecer prioridades.

Economista durante reunião recente no ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/UN-Habitat

Sabedoria local e tecnologia

As questões culturais estão cada vez vindo mais à tona. Na Colômbia, tem um caso icônico do plano diretor de Santa Marta, que incorpora elementos da sabedoria indígena no planejamento urbano. E, por outro lado, há o uso da tecnologia. O uso dos dois ajuda no processo de transformação sistêmica.

Smart cities

Estamos em uma encruzilhada: precisa ter bom senso sobre como utilizar as tecnologias. Ter cuidado para não contar só com isso. Se for utilizar, por exemplo, as informações de aplicativos de transporte para planejar uma cidade, tem de pensar que tem muitas mulheres pobres não pegam aplicativo de transporte. Então, a forma como se movem não vai estar incorporada. Há dados disponíveis, mas quem está refletido neles? Também precisa ter cuidado com a divisão digital: vimos, na covid, como pessoas em assentamentos precários sofreram porque tinham dificuldade de acesso à internet, seja para procurar emprego, seja para estudar. Nesse aspecto, o conceito de smart cities pode ajudar a trabalhar de maneira a promover a inclusão das pessoas em situação mais vulnerável.

Recursos

Há disputa por recursos, mas há a possibilidade de ter um caminho para identificar consciência, entendimentos, acordar o que é urgência, e enxergar para além disso. É complexo fazer isso em mundo que está cheio de conflitos, guerras, polarizado por questões políticas. A dimensão variada do Brasil é desafio, mas também uma oportunidade de encontrar soluções locais, soluções diversas. Precisa ter um Ministério das Cidades forte.

Anacláudia Rossbach tem experiência em ações de urbanização de favelas; na foto, Paraisópolis, em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 24/06/2020

Efeitos práticos de ações

Tive a oportunidade de conhecer pessoas que tiveram suas vidas transformadas simplesmente pelo acesso à habitação, a uma melhor infraestrutura onde vivem. E a transformação não se limita a uma geração. Os filhos dessas pessoas hoje estão em outro patamar de acesso a oportunidades, pelo simples fato de ter endereço, de poder pegar transporte para ir a uma entrevista de emprego, à escola. E aí tem a combinação, no Brasil, de políticas sociais de acesso à educação, educação superior etc, combinadas a políticas de geração de renda, de salário mínimo. Isso é inspirador: a vida das pessoas transformadas, crianças que nasceram em um barraco e que hoje estão concluindo a universidade.

PAC Urbanização de Favelas e Minha Casa Minha Vida

Obviamente têm impacto urbano, mas também social, ambiental, econômico. Do ponto de vista, por exemplo, de gênero, você regulariza o solo para as mulheres. O Minha Casa Minha Vida tem esse elemento: o título vai em nome da mulher; em caso de separação, fica com a mulher. Isso, para as mulheres, em termos de promover autonomia, empoderamento, é grande.

A urbanização qualificada de favelas é uma das maneiras de reduzir os impactos da crise climática e, também, experiências de países em desenvolvimento podem inspirar o planejamento urbano mundo afora, é o que defende a brasileira Anacláudia Rossbach. Em agosto, a economista foi empossada como subsecretária geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao assumir a diretoria executiva do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), sediado em Nairóbi, no Quênia.

Por videochamada, a nova subsecretária concedeu uma entrevista ao Estadão por chamada de vídeo, diretamente de Nova York, onde estava para compromissos do cargo. Antes, foi diretora para América Latina e Caribe do Instituto Lincoln de Política de Solo (EUA), com passagens e consultoria anteriores em outras instituições nacionais e internacionais, como o Cities Alliance e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

A economista teve a trajetória marcada pelo envolvimento em programas de planejamento urbano, habitação social e urbanização de assentamentos precários. Dentre outros, costuma destacar seu trabalho no Banco Mundial, pelo qual prestou consultoria durante o desenvolvimento do Minha Casa Minha Vida e do PAC Urbanização de Favelas.

Anacláudia Rossbach, diretora executiva do ONU-Habitat Foto: ONU-Habitat/Divulgação

A seguir, confira os principais tópicos abordados durante a entrevista exclusiva ao Estadão:

Indicação e seleção para o cargo

Fiquei muito feliz com o convite. Minhas passagens por diversas organizações, governo local, nacional, Banco Mundial, instituições internacionais, me ajudaram a perceber que, realmente, estava equipada para participar do processo. Foi um processo de seleção, né? Competitivo. Outros candidatos participaram. No fim, fui selecionada. É uma vitória que compactuo com as pessoas e as mulheres latino-americanas e do Sul Global.

Meio ambiente e COP

Tem uma intersecção grande entre questões urbanas e ambientais. Haverá uma conferência importante em novembro no Egito: o Fórum Urbano Mundial. Vamos lançar um relatório sobre cidades, o World Cities Report, que, neste ano, tem o tema mudança climática. Estamos entendendo, cada vez mais, essa intersecção (das políticas urbanas e de habitação). As cidades têm papel importante nas emissões, são responsáveis por 70% delas, mas por outro lado têm muitas oportunidades para trabalhar.

Problemas históricos das cidades

Qual é a história que temos na América Latina, no mundo em geral? Planos diretores, planos urbanos, que são técnicos, top-down (de cima para baixo), sem consulta, sem participação. Muitas vezes, no Sul Global, copiamos modelos de planejamento urbano de cidades que não têm nosso contexto. Algo bacana que aconteceu na América Latina mais recentemente e no Brasil é que começamos a aprender a planejar para o nosso contexto. Temos favelas? Sim, temos. Então, vamos coletar mais informações, aprender mais sobre esses assentamentos, desenhar políticas, identificar instrumentos de planejamento que possam ser atrelados a programas de investimento para a regularização fundiária ética.

Urbanização de favelas e meio ambiente

Se melhorar as condições de habitação nos assentamentos precários, se trabalhar políticas de regularização fundiária, minimiza a necessidade de construir novas habitações. Novas habitações têm impacto ambiental: onde construir? Já começa no uso do solo, nos materiais etc. Construir uma casa sustentável, do ponto de vista ambiental, é caro. Para as pessoas e para os governos, se precisa aplicar subsídios, embora a manutenção seja mais barata e o impacto ambiental, menor.

Anacláudia Rossbach durante agenda pelo ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/ONU-Habitat

Expansão das cidades

As cidades estão crescendo mais em território do que em população. É um fenômeno mundial. Essa expansão urbana vai muito à mercê de residências. Na covid, teve muita gente que se mudou para as outras áreas, condomínios fechados, subúrbios etc. Temos favelas, ocupações informais. E os projetos habitacionais construídos em áreas periféricas, onde o solo é mais barato. A cidade cresce levada por habitação, seja para classes mais altas, seja informalidade, seja habitação pública. Essa expansão urbana gera situações de risco. Estamos comendo o entorno ambiental, afetando a biodiversidade, com riscos de segurança alimentar. É um processo de transformação, de utilização do solo, de solo rural para urbano.

Cidades compactas

Como pensar um planejamento urbano que minimize a expansão urbana, que tenha estratégias equilibradas? Vamos adensar (aumentar população) de modo equilibrado, pensando em manter espaços públicos verdes etc. À medida que a cidade cresce (em território), é preciso construir mais infraestrutura. E isso tem pegada (de carbono), né? E custo fiscal para os municípios. Se trabalhar o planejamento urbano como espinha dorsal para onde e como as cidades vão se desenvolver, pode trabalhar uma série de estratégias de ganha-ganha, em termos sociais — de superar a fragmentação, a segregação, e gerar mais inclusão e integração. Pode ter um resultado ganha-ganha em termos de proteção do meio ambiente, geração de espaços verdes nas cidades.

Encontrar soluções nas cidades

Qualquer cidade, por mais adensada que esteja, a gente sempre vai achar oportunidades que possam ser utilizadas para atender às necessidades sociais e em equilíbrio com as questões ambientais. Tem vários estudos que mostram que, quando as cidades são mais compactas e adensadas, pode aumentar a arrecadação fiscal e minimizar os gastos em construção de infraestrutura. O planejamento urbano é uma ferramenta poderosa, mas ainda um ilustre desconhecido da sociedade.

Crise mundial da habitação

Não estaria aqui se não acreditasse que a transformação é possível. Especificamente na área urbana há uma crise mundial de habitação, é um dominador no Sul Global e no Norte Global. Temos brechas de poder aquisitivo grandes: a diferença entre o salário médio das pessoas e o preço das casas é historicamente grande. Temos o fenômeno de população de rua em muitas cidades do mundo. No Sul Global, há temas estruturais, que são as favelas. E o ONU-Habitat fala de 1 bilhão de pessoas em favelas, mas acho que, depois da covid, esse número aumentou. Há casas sendo destruídas pelas guerras, pelos desastres, as pessoas forçadas a migrar, saírem das suas áreas de origem por vários motivos, questões ambientais, econômicas, políticas, de segurança. É uma crise global.

Transformações possíveis

As cidades são segregadas, desiguais, com prevalência grande de pobreza urbana. Para sair desse beco que parece sem saída, precisa promover transformações estruturais e sistêmicas. No Brasil e na América Latina, avançamos em relação a isso. No Brasil, a Constituição e o Estatuto das Cidades reconhecem a função social do solo, da propriedade. É um elemento importante.

Exemplos do Sul Global

A Constituição do Equador entende que o solo é um bem finito, que se esgota e que precisamos maximizar sua função social e ecológica para proteger as pessoas e o planeta e, a partir daí, planejar as cidades, desenhar estratégias de habitação etc. A América Latina tem exemplos concretos e icônicos de avanços, como, por exemplo, o Plano Diretor de Bogotá, que inclui todo um sistema de cuidados, de proteção à biodiversidade do entorno ambiental do município. Mostra aí uma evolução importante, sistêmica, que serve de amparo para um planejamento mais sustentável, orientado às pessoas e à natureza, para políticas de habitação que sejam mais inclusivas, de urbanização de favelas, de transformação de assentamentos precários.

Desigualdades

Podemos estar em um caminho de encontrar soluções e superar essas questões estruturais, embora os desafios sejam grandes. O impacto dos desastres nas populações mais vulneráveis é desproporcional. Nesses dias, havia enchentes na Europa Central e na África Central. E, quando se olha as imagens, se pensa em redes de proteção social e de ajuda, na capacidade da Europa versus África Central, que está sofrendo muito mais. É questão de urgência trabalhar nisso. E é importante estabelecer prioridades.

Economista durante reunião recente no ONU-Habitat Foto: Julius Mwelu/UN-Habitat

Sabedoria local e tecnologia

As questões culturais estão cada vez vindo mais à tona. Na Colômbia, tem um caso icônico do plano diretor de Santa Marta, que incorpora elementos da sabedoria indígena no planejamento urbano. E, por outro lado, há o uso da tecnologia. O uso dos dois ajuda no processo de transformação sistêmica.

Smart cities

Estamos em uma encruzilhada: precisa ter bom senso sobre como utilizar as tecnologias. Ter cuidado para não contar só com isso. Se for utilizar, por exemplo, as informações de aplicativos de transporte para planejar uma cidade, tem de pensar que tem muitas mulheres pobres não pegam aplicativo de transporte. Então, a forma como se movem não vai estar incorporada. Há dados disponíveis, mas quem está refletido neles? Também precisa ter cuidado com a divisão digital: vimos, na covid, como pessoas em assentamentos precários sofreram porque tinham dificuldade de acesso à internet, seja para procurar emprego, seja para estudar. Nesse aspecto, o conceito de smart cities pode ajudar a trabalhar de maneira a promover a inclusão das pessoas em situação mais vulnerável.

Recursos

Há disputa por recursos, mas há a possibilidade de ter um caminho para identificar consciência, entendimentos, acordar o que é urgência, e enxergar para além disso. É complexo fazer isso em mundo que está cheio de conflitos, guerras, polarizado por questões políticas. A dimensão variada do Brasil é desafio, mas também uma oportunidade de encontrar soluções locais, soluções diversas. Precisa ter um Ministério das Cidades forte.

Anacláudia Rossbach tem experiência em ações de urbanização de favelas; na foto, Paraisópolis, em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 24/06/2020

Efeitos práticos de ações

Tive a oportunidade de conhecer pessoas que tiveram suas vidas transformadas simplesmente pelo acesso à habitação, a uma melhor infraestrutura onde vivem. E a transformação não se limita a uma geração. Os filhos dessas pessoas hoje estão em outro patamar de acesso a oportunidades, pelo simples fato de ter endereço, de poder pegar transporte para ir a uma entrevista de emprego, à escola. E aí tem a combinação, no Brasil, de políticas sociais de acesso à educação, educação superior etc, combinadas a políticas de geração de renda, de salário mínimo. Isso é inspirador: a vida das pessoas transformadas, crianças que nasceram em um barraco e que hoje estão concluindo a universidade.

PAC Urbanização de Favelas e Minha Casa Minha Vida

Obviamente têm impacto urbano, mas também social, ambiental, econômico. Do ponto de vista, por exemplo, de gênero, você regulariza o solo para as mulheres. O Minha Casa Minha Vida tem esse elemento: o título vai em nome da mulher; em caso de separação, fica com a mulher. Isso, para as mulheres, em termos de promover autonomia, empoderamento, é grande.

Entrevista por Priscila Mengue

Repórter de cidades, especialmente de urbanismo, administração pública e patrimônio cultural. Jornalista formada pela UFRGS, com especialização em Arquitetura e Urbanismo Sustentável pela UnB.

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