SÃO PAULO - Seguranças acompanhando os passos pelos corredores e olhares desconfiados que só cessam após o pagamento. Em sites de queixas e nas redes sociais, relatos de pessoas negras que já viveram esse tipo de situação não são raros. Algumas ficam sem ação diante do preconceito, outras expõem com depoimentos online ou registram boletins de ocorrência quando surgem as ofensas e agressões. O caso de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, espancado e morto no estacionamento do Carrefour Passo D’Areia, na zona norte de Porto Alegre, no último dia 19, véspera do Dia da Consciência Negra, gerou uma onda de protestos. Também reacendeu a indignação e o medo de quem se sente intimidado e tratado de forma diferente dos demais por causa da cor da pele. O Estadão ouviu o depoimento de três mulheres que se depararam com o racismo ao fazer compras. A atendente Tulani Aisha de Souza Machado, de 23 anos, falou sobre a primeira vez que viveu a situação em um supermercado. A psicoterapeuta integrativa e sistêmica Renata Silva, de 40 anos, já sofreu com o racismo mais de uma vez, e da última vez fotografou o segurança e fez um post. "A gente sempre está em uma situação de pensar o que o outro vai achar que nós estamos fazendo. Não temos a liberdade de fazer uma compra como qualquer consumidor e não é a primeira vez que isso acontece. Agora, estou me posicionando a todas essas questões." A reportagem também conversou com a atendente-geralAline Cristina Lucas Santos, de 30 anos, que presenciou o filho, então com 11 anos, sendo barrado por seguranças na entrada de um shopping na zona oeste de São Paulo no ano passado. Leia os depoimentos.
Renata Silva, de 40 anos, psicoterapeuta integrativa e sistêmica especialista no Feminino e Feminino Ancestral
"Esse episódio aconteceu no dia 18 deste mês na Centauro do Norte Shopping, mas já fiz várias reclamações sobre outras lojas. Eu faço quase tudo no shopping. Malho e vou todos os dias. Entrei nessa loja de material esportivo para fazer uma compra e, a partir do momento que entrei, percebi que o segurança estava me olhando diferente em relação aos outros. Quando vou à loja com o meu marido, que é branco, o tratamento é totalmente diferente. É notória a diferença de entrar sozinha e estar com ele.
Quando estava na gôndola, esse segurança estava me observando o tempo todo. Trocava de gôndola e ele estava também. Até que chegou o ponto que ele me seguiu até o caixa. Ali, eu tirei uma foto e postei nas redes sociais. Cada movimento que eu fazia, ele estava atrás de mim. Tinha de ter uma movimentação minha, porque já fiz reclamações, mas nunca tirei foto, algo para ficar registrado para que não ocorra com outras pessoas.
Não era um segurança branco, mas, infelizmente, é uma questão do sistema, há um posicionamento que se coloca de que, se a pessoa é negra, vai ter o intuito de roubar. Não vê quem é, não vê a origem, o que está fazendo. Sou uma cliente como qualquer outra, uma consumidora.
A gente sempre está em uma situação de pensar o que o outro vai achar que estamos fazendo. Não temos a liberdade de fazer compra como qualquer consumidor e não é a primeira vez que isso acontece. Agora, estou me posicionando a todas essas questões.
No ano retrasado, cheguei ao ponto de ir à delegacia para fazer um boletim de ocorrência em relação a isso, porque, por causa da questão política, as pessoas acham todo mundo está livre para se expressar de forma preconceituosa. Eu entrei em um restaurante para comprar meu almoço e uma mulher olhou para mim e começou a gritar: 'Negra, sua negra. Não como em restaurante que tenha negro. Se ela não pagar, eu também não pago'. Era uma senhora e ninguém teve reação, ninguém filmou. Não fazem nada. É mais um caso.
A gente vive com medo de ser a próxima, do que vai acontecer com parentes meus. É triste, mas é a realidade que a gente vive. É necessário que mude o pensamento das pessoas e o comportamento delas, por mais que o sistema queira colocar que a partir do momento que a pessoa é negra, independentemente do tom da pele, porque tem vários, vai ser alguém para ser colocado dessa forma.
Estou no processo de gestar, estou tentando (engravidar), e a gente fica com medo. Tem noção do que é lidar com os preconceitos com uma filha negra? Se ela estiver sozinha, pode ser abordada de outra forma.
Vou viajar para Porto Alegre no mês que vem e a gente se sente preso a essas questões. A gente não sabe se vai ter uma situação de racismo lá na frente." * Em nota, a Centauro informou que uma investigação interna foi aberta para apurar o caso e ressaltou que esse tipo de comportamento não é prática da companhia. "A empresa, formada por 6 mil colaboradores multiculturais, não tolera atos de discriminação e preconceito, e tem avançado na pauta antirracista, por meio de seu Comitê de Diversidade. Caso o fato se comprove, a empresa tomará medidas conforme seu código de conduta e ética".
Tulani Aisha de Souza Machado, de 23 anos, atendente e aluna na Educafro
"Eu e minha mãe fomos fazer umas compras no Assaí do Jabaquara (na zona sul da capital) e íamos pagar com auxílio emergencial. A gente abriu (o aplicativo) e estava esperando um tempo para abrir o código. Percebi que já tinha uma segurança seguindo a gente. Paramos em um lugar e ela ficou parada do meu lado. Ela ficou seguindo pelos corredores. Quando viu que a gente ia para o caixa, que a gente ia pagar, ela sumiu no mercado. Foi entre abril e maio.
Não fiz nada. A gente nunca sabe o que fazer nessas horas. Reclamamos com uma fiscal do mercado e ela disse que ia verificar. No mercado, essa foi a primeira vez, mas eu sou muito distraída para essas coisas. Não reparo. Mas aconteceu uma vez na escola em 2016.
Um colega, que eu considerava muito meu amigo, do nada virou para mim e falou: 'Eu não gosto de você porque você é preta'. Começou a me chamar de 'macaca'. Foi a primeira vez que eu sofri um racismo verbalmente. Não soube o que fazer. Não lembro nem se eu comentei com a minha mãe. Para mim, não valia a pena discutir com aquela pessoa nem me estressar. Não sei se eu penso certo agindo desse jeito, mas me doeu tanto.
Tulani Aisha de Souza Machado, atendente
É difícil de acreditar que a gente passa por isso, porque, antes, não era tão exposto, a gente não sofria o racismo assim tão cara a cara. Hoje, a gente está sofrendo muito e é horrível.
O caso em Porto Alegre foi um fato bem triste. Fiquei chocada, porque a gente não pode mais sair de casa achando que está seguro porque tem segurança em um local. Está muito perigoso." * O Assaí Atacadista informou, em nota, que "não orienta colaboradores ou seguranças para quaisquer atitudes discriminatórias e as repudia veementemente em seu Código de Ética e em sua política de diversidadee direitos humanos". Disse ainda que tem um canal de ouvidoria "para denúncias sobre condutas ilegais ou antiéticas que garante o anonimato do denunciante".
Aline Cristina Lucas Santos, de 30 anos, ajudante-geral
"Eu trabalhava bastante, era operadora de caixa em uma padaria e tive um dia de folga (em setembro do ano passado). Fui ao Sesc e, depois, paramos para fazer um lanche. Estava frio e minha filha mais nova, que estava com 2 anos, estava chorando e não queria colocar o casaco. A gente entrou no Shopping Bourbon, mas caiu um brinquedinho dela e pedi para meu filho mais velho (então com 11 anos) voltar para buscar.
Foi quando eu vi que o segurança fez um gesto com a mão para o outro parar ele. Vi o vídeo depois, tinha um monte de gente olhando. Ele não podia entrar no shopping? Não recebi nenhum suporte do shopping, nunca entraram em contato comigo. Vi só uma postagem falando que barraram meu filho para ver se ele estava sozinho. Mas dois seguranças para uma criança? Foi um ato de racismo. Era um menino negro entrando no shopping.
Para mim, acabou o dia. Meu filho veio magoado dentro do ônibus, falando que tinha sido o pior dia da vida dele. A gente vê na televisão, mas nunca imagina que vai acontecer com a gente e fica sem reação. Nunca aconteceu na minha família.
Ele ficou um período sem querer ir para a escola,ficou bastante triste, porque as crianças ficaram comentando. Mexeu bastante e ele se fechou. Na primeira vez que voltou ao shopping, ficou com medo de ser barrado.
Meu filho está agora com 12 anos, entrando na adolescência, e eu falo que a gente tem de lutar para que isso não aconteça com outras pessoas. Ele fala: 'Mãe, quando a gente está no nosso direito, tem de abrir a boca e falar'.
Espero que esse tipo de coisa não venha a acontecer com ninguém. Somos humanos, não existe isso de branco e preto. Todos são iguais. Sempre procuro mostrar que não tem de ter preconceito, independentemente de raça, cor, religião. A gente não pode magoar as outras pessoas Ele é um menino forte e sempre estou colocando ele para cima. É superar os desafios e bola para frente. * O Shopping Bourbon São Paulo disse, em nota, que a ação dos seguranças foi baseada da orientação de abordar menores de idade que entram desacompanhados no local. "A atitude dos profissionais visa única e exclusivamente à proteção desse público." O shopping afirmou que "repudia qualquer forma de racismo ou ato discriminatório" e que os funcionários e terceirizados recebem treinamentos que abordam os "protocolos internos de conduta e responsabilidade no trato com clientes e visitantes".