Crônica, política e derivações

Acerca de um outro tipo de Luto - Yurtzait


Por Paulo Rosenbaum

Paulo Rosenbaum

Acerca de um outro tipo de Luto

Gershom Scholem em seu extraordinário livro as "Grandes Correntes da Mística Judaica" (Editora Perspectiva), escreveu sobre o movimento hassídico polonês ele sempre nos remete à dúvida. A dúvida, assim como consta nos ensinamentos talmúdicos originários nos ensina que, a princípio, sua manifestação é um sinal de saúde. A dúvida é a razão última do sentimento do inacabado, da lembrança constante da nossa condição inapreensível, tão pertinentes à especulação intelectual, à curiosidade universal e principalmente à busca por sentido.

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Ao duvidar, somos obrigados a nos perguntar e desafiar o dogmatismo e a tentação do sentimento peremptório. O luto de acordo com os preceitos judaicos é um mergulho inimaginável na meditação e na melancolia. Mas qual gênero de melancolia? Inicialmente trata-se da reafirmação da perda. Recitar o kaddish - uma curiosa oração em aramaico onde não há qualquer menção à morte -- duas vezes ao dia, vestir os mesmos trajes rasgados do sepultamento é repisar a dor e intensificar o sofrimento da privação da presença do ser amado reafirmada pela consciência de que será para toda vida. O esquecimento deve ficar provisoriamente abolido. É o elogio da exuberância incomoda, o enaltecimento da memória repisada, a persuasão baseada na insistência e, se quiserem, o anti negacionismo por excelência.

Com prazer convidaria Ernst Becker, o autor do icônico "A Negação da Morte" para passar alguns dias comigo ou com alguém enlutado para dividir a experiência. A ideia seria lhe repassar algo além do simbolismo, para que ele tivesse alguma ideia sobre os sentimentos que o ritual faz aflorar. Não renego a imensa sabedoria que o ritual oferece, pelo contrário, mas é evidente que se trata de um interregno intencionalmente doloroso. Te coloca frente a frente com o desamparo e o vazio abruptos.

Tortura? Autocomiseração?

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Apenas ocasionalmente a função me parece clara. Especulo que talvez seja para depois te oferecer a redenção e o alívio do final de uma caminhada através das oscilações entre túneis claros e obscuros. Mas quem está lá dentro, quem depara com a extensão e a densidade sabe, não há complacência, especialmente no meio da jornada, no corredor, no hiato.

Estas reflexões que faço aqui agora, como homenagem ao meu pai, cuja data de aniversário de falecimento é hoje, dia 17 de julho, e representam o dia de passagem através daquela que já foi definida como a porta irreversível. Uma porta que a despeito de ser irreversível pode ser entreaberta para recuperar pelo menos dois conceitos caros à filosofia monoteísta, seja qual for sua vertente: arrependimento (teshuvá) e (emuná) fé.

O Rabino, químico e sociólogo Adin Steinsaltz escreveu: "o Talmud não ensina sanidade: ele cria sanidade". O que este homem de caráter renascentista e de um sorriso todo compreensivo quis afinal dizer com isso? Ensaio uma resposta: o hábito de questionar desenvolve no sujeito a capacidade de arguir, de meditar sobre o que é significativo não só na palavra que simboliza Dus, mas, também, e principalmente, sobre o que é uma vida significativa e seu impacto no conceito de justiça.

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Não é insignificante que a santidade no judaísmo, e particularmente no hassidismo posterior, esteja na representação da tzedaká (algo aproximado de caridade), e, portanto, deriva de sua raiz hebraica, tzadik (o justo). Ser justo é mais do que ser apenas santo. Isto é, o justo sempre se aproximara da verdadeira natureza de Dus que é ser parte de uma justiça excelsa, as vezes incompreensível, a justiça divina. Ser justo é uma imitação simbólica, é preciso procurar ser parecido com a natureza do Altíssimo. Por isso o conceito de justiça é tão especial e único na tradição mosaica. Como escreveu Schlolem, o hassidismo "deu uma ênfase ao lado psicológico da vida." O hassidismo também incorporou os aspectos esotéricos de uma forma original e única. Para além da mistificação simplificadora, trouxe-os à vida. Descobre-se que descendo as profundezas do próprio eu pode-se "transcender os limites da existência natural" e descobrir D-us em tudo, ou melhor "não há nada senão Ele".

O cabalismo sob a visão hassídica - e é essa sua grande contribuição -- tornou-se um instrumento de análise psicológica, e de autoconhecimento, "um instrumento de precisão daquilo que é, não raro, espantoso" conforme escreveu o mesmo Scholem. Agregou e misturou o sentimento religioso à preocupação com a mente humana e seus impulsos e tendências. Na escola de um outro rabino menos conhecido do que Ball Schem Tov e Schneur Zalman, Tzvi Hirsch de Jidatschov: a busca de todos os homens poder-se-ia resumir como a mística da vida pessoal.

Relembro tudo isso neste dia do Yurtzait do meu pai pensando em todos que já perderam alguém que fazia o papel de âncora geopolitico-espiritual.  Por isso trago alguns parágrafos do que senti naquele dia específico há exatos três anos:

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"Você também trouxe para os teus uma outra espécie de compreensão do mundo prático. Fundou para além do teu núcleo de contatos imediatos, a vinda de uma mudança que ainda não chegou: a leveza da rotina, o estoicismo prático e o desprezo pela cultura do sofrimento. Foi quando adquiriste as passagens para as passárgadas elevadas. Um paraíso constituído por sítios imaginários. Mistura de jardins londrinos com estradas vicinais caipiras. Tua "Nova Inglaterra" não precisará mais esperar por todos nós. Reside aqui. Ela nos reunirá não como família, mas na grande cúpula da congregação sagrada. A utopia possível, aquela na qual você acredita como ninguém. E, cedo ou tarde, reconheceremos o que você vive a dizer:as leis não bastam, chega de revolução, de reformadores heroicos, de grandiloquências narcísicas, viemos civilizar o mundo através do afeto, e é por isso mesmo que sempre foi difícil nos tolerar. Nos últimos tempos, você vinha elaborando outro sistema de notação,  um tipo original de benevolência. Queres criar uma nova terminologia?  Para os sonhos de reerguimento?  Das pregações livres de dogmas. Da ridicularização amena dos fanatismos. Dos doutrinadores de ocasião. Lembras quando pintou as luzes como Chagall? Ou o amarelo-terra de Van Gogh? E pinceladas transversais? Os dinossauros-grúfalos com consciência?  Então, por mais invulneráveis, não podemos mais negar o trágico que tua ausência nos imporia. Perdão. Trágico nunca, apenas uma branda melancolia. Se exigíamos que ficasse mais era só porque sabíamos  da tua capacidade de nos achar. Em qualquer lugar. No espaço tempo, agora abolido. Mas se a escolha for a partida, que a direção seja unívoca, clara, rumo ao grande "quem". E eis que tuas dúvidas sobre o que era o outro mundo foram todas respondidas. Menos uma: o que faremos nós?Precisamos do teu olhar e discernimento. Entender como uma fé não intelectualizada conseguia superar a pressão dos ceticismos. Se precisamos te encontrar é para saber mais sobre o segredo do teu apreço pela vida. Você, como Leon Bloy, tinha aquela "imensa curiosidade" de saber o que se esconde atrás das cortinas. De onde nenhum visitante regressou.  Mero despiste, você sempre soube. O 'Grande Quem" você conhecia, um dia compartilhará conosco.

Como poderemos esquecer das tuas danças e sapateados, tuas experiências com sopa de galochas e o ingênuo pedido de isqueiro para bombeiros que quase te rendeu uma detenção? Teu exemplo de fortaleza não apagou tuas indignações. Como protestos privados. A fúria contra as autocracias disfarçadas. Tua crítica arguta contra a excesso de seriedade.  Quantas vezes tentou nos ensinar sobre as saudades do paraíso?Lugar que já foi ilha, já foi agricultura, já foi teu filho Sérgio que te antecedeu. Um Gan Eden que nos ofereceu uma visão de fora dos trópicos. O Jardim do Éden, como escreveu Gershom Scholem,  pode ser o símbolo da própria felicidade. Tua arquitetura de objetos indiretos e soluções geniais. Teus arranjos sofisticados pela simplicidade. Teu tirocínio compreensivo. A busca, como a de Tolstoy, por uma justiça baseada na espiritualidade pessoal. Assim como a relação com os céus, pessoal. Tudo isso foi só para te dizer que que se isso fosse uma separação ela não terá sentido nem a mínima duração. Já me ensinaram, primeiro a união, depois a havdalá, o apartamento, temporário. Forjaremos um novo tempo até este alcançar enfim o encontro da permanência. Para sempre, Pai, para sempre."

Se disserem que o tempo é o remédio, recuse. O tempo é um placebo que nos avisa que amanhã será mais fácil do que hoje. Não custa rir de mais este recibo passado por um estelionatário chamado destino.

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Dói, mas a alternativa seria esquecer que somos seres cômicos.

Não levar o luto a sério é a maior prova de respeito à irreverência sagrada.

Foi isso que meu Pai ensinou.

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https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/moishe-aharon-ben-chava-mauricio-rosenbaum/

Paulo Rosenbaum

Acerca de um outro tipo de Luto

Gershom Scholem em seu extraordinário livro as "Grandes Correntes da Mística Judaica" (Editora Perspectiva), escreveu sobre o movimento hassídico polonês ele sempre nos remete à dúvida. A dúvida, assim como consta nos ensinamentos talmúdicos originários nos ensina que, a princípio, sua manifestação é um sinal de saúde. A dúvida é a razão última do sentimento do inacabado, da lembrança constante da nossa condição inapreensível, tão pertinentes à especulação intelectual, à curiosidade universal e principalmente à busca por sentido.

Ao duvidar, somos obrigados a nos perguntar e desafiar o dogmatismo e a tentação do sentimento peremptório. O luto de acordo com os preceitos judaicos é um mergulho inimaginável na meditação e na melancolia. Mas qual gênero de melancolia? Inicialmente trata-se da reafirmação da perda. Recitar o kaddish - uma curiosa oração em aramaico onde não há qualquer menção à morte -- duas vezes ao dia, vestir os mesmos trajes rasgados do sepultamento é repisar a dor e intensificar o sofrimento da privação da presença do ser amado reafirmada pela consciência de que será para toda vida. O esquecimento deve ficar provisoriamente abolido. É o elogio da exuberância incomoda, o enaltecimento da memória repisada, a persuasão baseada na insistência e, se quiserem, o anti negacionismo por excelência.

Com prazer convidaria Ernst Becker, o autor do icônico "A Negação da Morte" para passar alguns dias comigo ou com alguém enlutado para dividir a experiência. A ideia seria lhe repassar algo além do simbolismo, para que ele tivesse alguma ideia sobre os sentimentos que o ritual faz aflorar. Não renego a imensa sabedoria que o ritual oferece, pelo contrário, mas é evidente que se trata de um interregno intencionalmente doloroso. Te coloca frente a frente com o desamparo e o vazio abruptos.

Tortura? Autocomiseração?

Apenas ocasionalmente a função me parece clara. Especulo que talvez seja para depois te oferecer a redenção e o alívio do final de uma caminhada através das oscilações entre túneis claros e obscuros. Mas quem está lá dentro, quem depara com a extensão e a densidade sabe, não há complacência, especialmente no meio da jornada, no corredor, no hiato.

Estas reflexões que faço aqui agora, como homenagem ao meu pai, cuja data de aniversário de falecimento é hoje, dia 17 de julho, e representam o dia de passagem através daquela que já foi definida como a porta irreversível. Uma porta que a despeito de ser irreversível pode ser entreaberta para recuperar pelo menos dois conceitos caros à filosofia monoteísta, seja qual for sua vertente: arrependimento (teshuvá) e (emuná) fé.

O Rabino, químico e sociólogo Adin Steinsaltz escreveu: "o Talmud não ensina sanidade: ele cria sanidade". O que este homem de caráter renascentista e de um sorriso todo compreensivo quis afinal dizer com isso? Ensaio uma resposta: o hábito de questionar desenvolve no sujeito a capacidade de arguir, de meditar sobre o que é significativo não só na palavra que simboliza Dus, mas, também, e principalmente, sobre o que é uma vida significativa e seu impacto no conceito de justiça.

Não é insignificante que a santidade no judaísmo, e particularmente no hassidismo posterior, esteja na representação da tzedaká (algo aproximado de caridade), e, portanto, deriva de sua raiz hebraica, tzadik (o justo). Ser justo é mais do que ser apenas santo. Isto é, o justo sempre se aproximara da verdadeira natureza de Dus que é ser parte de uma justiça excelsa, as vezes incompreensível, a justiça divina. Ser justo é uma imitação simbólica, é preciso procurar ser parecido com a natureza do Altíssimo. Por isso o conceito de justiça é tão especial e único na tradição mosaica. Como escreveu Schlolem, o hassidismo "deu uma ênfase ao lado psicológico da vida." O hassidismo também incorporou os aspectos esotéricos de uma forma original e única. Para além da mistificação simplificadora, trouxe-os à vida. Descobre-se que descendo as profundezas do próprio eu pode-se "transcender os limites da existência natural" e descobrir D-us em tudo, ou melhor "não há nada senão Ele".

O cabalismo sob a visão hassídica - e é essa sua grande contribuição -- tornou-se um instrumento de análise psicológica, e de autoconhecimento, "um instrumento de precisão daquilo que é, não raro, espantoso" conforme escreveu o mesmo Scholem. Agregou e misturou o sentimento religioso à preocupação com a mente humana e seus impulsos e tendências. Na escola de um outro rabino menos conhecido do que Ball Schem Tov e Schneur Zalman, Tzvi Hirsch de Jidatschov: a busca de todos os homens poder-se-ia resumir como a mística da vida pessoal.

Relembro tudo isso neste dia do Yurtzait do meu pai pensando em todos que já perderam alguém que fazia o papel de âncora geopolitico-espiritual.  Por isso trago alguns parágrafos do que senti naquele dia específico há exatos três anos:

"Você também trouxe para os teus uma outra espécie de compreensão do mundo prático. Fundou para além do teu núcleo de contatos imediatos, a vinda de uma mudança que ainda não chegou: a leveza da rotina, o estoicismo prático e o desprezo pela cultura do sofrimento. Foi quando adquiriste as passagens para as passárgadas elevadas. Um paraíso constituído por sítios imaginários. Mistura de jardins londrinos com estradas vicinais caipiras. Tua "Nova Inglaterra" não precisará mais esperar por todos nós. Reside aqui. Ela nos reunirá não como família, mas na grande cúpula da congregação sagrada. A utopia possível, aquela na qual você acredita como ninguém. E, cedo ou tarde, reconheceremos o que você vive a dizer:as leis não bastam, chega de revolução, de reformadores heroicos, de grandiloquências narcísicas, viemos civilizar o mundo através do afeto, e é por isso mesmo que sempre foi difícil nos tolerar. Nos últimos tempos, você vinha elaborando outro sistema de notação,  um tipo original de benevolência. Queres criar uma nova terminologia?  Para os sonhos de reerguimento?  Das pregações livres de dogmas. Da ridicularização amena dos fanatismos. Dos doutrinadores de ocasião. Lembras quando pintou as luzes como Chagall? Ou o amarelo-terra de Van Gogh? E pinceladas transversais? Os dinossauros-grúfalos com consciência?  Então, por mais invulneráveis, não podemos mais negar o trágico que tua ausência nos imporia. Perdão. Trágico nunca, apenas uma branda melancolia. Se exigíamos que ficasse mais era só porque sabíamos  da tua capacidade de nos achar. Em qualquer lugar. No espaço tempo, agora abolido. Mas se a escolha for a partida, que a direção seja unívoca, clara, rumo ao grande "quem". E eis que tuas dúvidas sobre o que era o outro mundo foram todas respondidas. Menos uma: o que faremos nós?Precisamos do teu olhar e discernimento. Entender como uma fé não intelectualizada conseguia superar a pressão dos ceticismos. Se precisamos te encontrar é para saber mais sobre o segredo do teu apreço pela vida. Você, como Leon Bloy, tinha aquela "imensa curiosidade" de saber o que se esconde atrás das cortinas. De onde nenhum visitante regressou.  Mero despiste, você sempre soube. O 'Grande Quem" você conhecia, um dia compartilhará conosco.

Como poderemos esquecer das tuas danças e sapateados, tuas experiências com sopa de galochas e o ingênuo pedido de isqueiro para bombeiros que quase te rendeu uma detenção? Teu exemplo de fortaleza não apagou tuas indignações. Como protestos privados. A fúria contra as autocracias disfarçadas. Tua crítica arguta contra a excesso de seriedade.  Quantas vezes tentou nos ensinar sobre as saudades do paraíso?Lugar que já foi ilha, já foi agricultura, já foi teu filho Sérgio que te antecedeu. Um Gan Eden que nos ofereceu uma visão de fora dos trópicos. O Jardim do Éden, como escreveu Gershom Scholem,  pode ser o símbolo da própria felicidade. Tua arquitetura de objetos indiretos e soluções geniais. Teus arranjos sofisticados pela simplicidade. Teu tirocínio compreensivo. A busca, como a de Tolstoy, por uma justiça baseada na espiritualidade pessoal. Assim como a relação com os céus, pessoal. Tudo isso foi só para te dizer que que se isso fosse uma separação ela não terá sentido nem a mínima duração. Já me ensinaram, primeiro a união, depois a havdalá, o apartamento, temporário. Forjaremos um novo tempo até este alcançar enfim o encontro da permanência. Para sempre, Pai, para sempre."

Se disserem que o tempo é o remédio, recuse. O tempo é um placebo que nos avisa que amanhã será mais fácil do que hoje. Não custa rir de mais este recibo passado por um estelionatário chamado destino.

Dói, mas a alternativa seria esquecer que somos seres cômicos.

Não levar o luto a sério é a maior prova de respeito à irreverência sagrada.

Foi isso que meu Pai ensinou.

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Paulo Rosenbaum

Acerca de um outro tipo de Luto

Gershom Scholem em seu extraordinário livro as "Grandes Correntes da Mística Judaica" (Editora Perspectiva), escreveu sobre o movimento hassídico polonês ele sempre nos remete à dúvida. A dúvida, assim como consta nos ensinamentos talmúdicos originários nos ensina que, a princípio, sua manifestação é um sinal de saúde. A dúvida é a razão última do sentimento do inacabado, da lembrança constante da nossa condição inapreensível, tão pertinentes à especulação intelectual, à curiosidade universal e principalmente à busca por sentido.

Ao duvidar, somos obrigados a nos perguntar e desafiar o dogmatismo e a tentação do sentimento peremptório. O luto de acordo com os preceitos judaicos é um mergulho inimaginável na meditação e na melancolia. Mas qual gênero de melancolia? Inicialmente trata-se da reafirmação da perda. Recitar o kaddish - uma curiosa oração em aramaico onde não há qualquer menção à morte -- duas vezes ao dia, vestir os mesmos trajes rasgados do sepultamento é repisar a dor e intensificar o sofrimento da privação da presença do ser amado reafirmada pela consciência de que será para toda vida. O esquecimento deve ficar provisoriamente abolido. É o elogio da exuberância incomoda, o enaltecimento da memória repisada, a persuasão baseada na insistência e, se quiserem, o anti negacionismo por excelência.

Com prazer convidaria Ernst Becker, o autor do icônico "A Negação da Morte" para passar alguns dias comigo ou com alguém enlutado para dividir a experiência. A ideia seria lhe repassar algo além do simbolismo, para que ele tivesse alguma ideia sobre os sentimentos que o ritual faz aflorar. Não renego a imensa sabedoria que o ritual oferece, pelo contrário, mas é evidente que se trata de um interregno intencionalmente doloroso. Te coloca frente a frente com o desamparo e o vazio abruptos.

Tortura? Autocomiseração?

Apenas ocasionalmente a função me parece clara. Especulo que talvez seja para depois te oferecer a redenção e o alívio do final de uma caminhada através das oscilações entre túneis claros e obscuros. Mas quem está lá dentro, quem depara com a extensão e a densidade sabe, não há complacência, especialmente no meio da jornada, no corredor, no hiato.

Estas reflexões que faço aqui agora, como homenagem ao meu pai, cuja data de aniversário de falecimento é hoje, dia 17 de julho, e representam o dia de passagem através daquela que já foi definida como a porta irreversível. Uma porta que a despeito de ser irreversível pode ser entreaberta para recuperar pelo menos dois conceitos caros à filosofia monoteísta, seja qual for sua vertente: arrependimento (teshuvá) e (emuná) fé.

O Rabino, químico e sociólogo Adin Steinsaltz escreveu: "o Talmud não ensina sanidade: ele cria sanidade". O que este homem de caráter renascentista e de um sorriso todo compreensivo quis afinal dizer com isso? Ensaio uma resposta: o hábito de questionar desenvolve no sujeito a capacidade de arguir, de meditar sobre o que é significativo não só na palavra que simboliza Dus, mas, também, e principalmente, sobre o que é uma vida significativa e seu impacto no conceito de justiça.

Não é insignificante que a santidade no judaísmo, e particularmente no hassidismo posterior, esteja na representação da tzedaká (algo aproximado de caridade), e, portanto, deriva de sua raiz hebraica, tzadik (o justo). Ser justo é mais do que ser apenas santo. Isto é, o justo sempre se aproximara da verdadeira natureza de Dus que é ser parte de uma justiça excelsa, as vezes incompreensível, a justiça divina. Ser justo é uma imitação simbólica, é preciso procurar ser parecido com a natureza do Altíssimo. Por isso o conceito de justiça é tão especial e único na tradição mosaica. Como escreveu Schlolem, o hassidismo "deu uma ênfase ao lado psicológico da vida." O hassidismo também incorporou os aspectos esotéricos de uma forma original e única. Para além da mistificação simplificadora, trouxe-os à vida. Descobre-se que descendo as profundezas do próprio eu pode-se "transcender os limites da existência natural" e descobrir D-us em tudo, ou melhor "não há nada senão Ele".

O cabalismo sob a visão hassídica - e é essa sua grande contribuição -- tornou-se um instrumento de análise psicológica, e de autoconhecimento, "um instrumento de precisão daquilo que é, não raro, espantoso" conforme escreveu o mesmo Scholem. Agregou e misturou o sentimento religioso à preocupação com a mente humana e seus impulsos e tendências. Na escola de um outro rabino menos conhecido do que Ball Schem Tov e Schneur Zalman, Tzvi Hirsch de Jidatschov: a busca de todos os homens poder-se-ia resumir como a mística da vida pessoal.

Relembro tudo isso neste dia do Yurtzait do meu pai pensando em todos que já perderam alguém que fazia o papel de âncora geopolitico-espiritual.  Por isso trago alguns parágrafos do que senti naquele dia específico há exatos três anos:

"Você também trouxe para os teus uma outra espécie de compreensão do mundo prático. Fundou para além do teu núcleo de contatos imediatos, a vinda de uma mudança que ainda não chegou: a leveza da rotina, o estoicismo prático e o desprezo pela cultura do sofrimento. Foi quando adquiriste as passagens para as passárgadas elevadas. Um paraíso constituído por sítios imaginários. Mistura de jardins londrinos com estradas vicinais caipiras. Tua "Nova Inglaterra" não precisará mais esperar por todos nós. Reside aqui. Ela nos reunirá não como família, mas na grande cúpula da congregação sagrada. A utopia possível, aquela na qual você acredita como ninguém. E, cedo ou tarde, reconheceremos o que você vive a dizer:as leis não bastam, chega de revolução, de reformadores heroicos, de grandiloquências narcísicas, viemos civilizar o mundo através do afeto, e é por isso mesmo que sempre foi difícil nos tolerar. Nos últimos tempos, você vinha elaborando outro sistema de notação,  um tipo original de benevolência. Queres criar uma nova terminologia?  Para os sonhos de reerguimento?  Das pregações livres de dogmas. Da ridicularização amena dos fanatismos. Dos doutrinadores de ocasião. Lembras quando pintou as luzes como Chagall? Ou o amarelo-terra de Van Gogh? E pinceladas transversais? Os dinossauros-grúfalos com consciência?  Então, por mais invulneráveis, não podemos mais negar o trágico que tua ausência nos imporia. Perdão. Trágico nunca, apenas uma branda melancolia. Se exigíamos que ficasse mais era só porque sabíamos  da tua capacidade de nos achar. Em qualquer lugar. No espaço tempo, agora abolido. Mas se a escolha for a partida, que a direção seja unívoca, clara, rumo ao grande "quem". E eis que tuas dúvidas sobre o que era o outro mundo foram todas respondidas. Menos uma: o que faremos nós?Precisamos do teu olhar e discernimento. Entender como uma fé não intelectualizada conseguia superar a pressão dos ceticismos. Se precisamos te encontrar é para saber mais sobre o segredo do teu apreço pela vida. Você, como Leon Bloy, tinha aquela "imensa curiosidade" de saber o que se esconde atrás das cortinas. De onde nenhum visitante regressou.  Mero despiste, você sempre soube. O 'Grande Quem" você conhecia, um dia compartilhará conosco.

Como poderemos esquecer das tuas danças e sapateados, tuas experiências com sopa de galochas e o ingênuo pedido de isqueiro para bombeiros que quase te rendeu uma detenção? Teu exemplo de fortaleza não apagou tuas indignações. Como protestos privados. A fúria contra as autocracias disfarçadas. Tua crítica arguta contra a excesso de seriedade.  Quantas vezes tentou nos ensinar sobre as saudades do paraíso?Lugar que já foi ilha, já foi agricultura, já foi teu filho Sérgio que te antecedeu. Um Gan Eden que nos ofereceu uma visão de fora dos trópicos. O Jardim do Éden, como escreveu Gershom Scholem,  pode ser o símbolo da própria felicidade. Tua arquitetura de objetos indiretos e soluções geniais. Teus arranjos sofisticados pela simplicidade. Teu tirocínio compreensivo. A busca, como a de Tolstoy, por uma justiça baseada na espiritualidade pessoal. Assim como a relação com os céus, pessoal. Tudo isso foi só para te dizer que que se isso fosse uma separação ela não terá sentido nem a mínima duração. Já me ensinaram, primeiro a união, depois a havdalá, o apartamento, temporário. Forjaremos um novo tempo até este alcançar enfim o encontro da permanência. Para sempre, Pai, para sempre."

Se disserem que o tempo é o remédio, recuse. O tempo é um placebo que nos avisa que amanhã será mais fácil do que hoje. Não custa rir de mais este recibo passado por um estelionatário chamado destino.

Dói, mas a alternativa seria esquecer que somos seres cômicos.

Não levar o luto a sério é a maior prova de respeito à irreverência sagrada.

Foi isso que meu Pai ensinou.

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Paulo Rosenbaum

Acerca de um outro tipo de Luto

Gershom Scholem em seu extraordinário livro as "Grandes Correntes da Mística Judaica" (Editora Perspectiva), escreveu sobre o movimento hassídico polonês ele sempre nos remete à dúvida. A dúvida, assim como consta nos ensinamentos talmúdicos originários nos ensina que, a princípio, sua manifestação é um sinal de saúde. A dúvida é a razão última do sentimento do inacabado, da lembrança constante da nossa condição inapreensível, tão pertinentes à especulação intelectual, à curiosidade universal e principalmente à busca por sentido.

Ao duvidar, somos obrigados a nos perguntar e desafiar o dogmatismo e a tentação do sentimento peremptório. O luto de acordo com os preceitos judaicos é um mergulho inimaginável na meditação e na melancolia. Mas qual gênero de melancolia? Inicialmente trata-se da reafirmação da perda. Recitar o kaddish - uma curiosa oração em aramaico onde não há qualquer menção à morte -- duas vezes ao dia, vestir os mesmos trajes rasgados do sepultamento é repisar a dor e intensificar o sofrimento da privação da presença do ser amado reafirmada pela consciência de que será para toda vida. O esquecimento deve ficar provisoriamente abolido. É o elogio da exuberância incomoda, o enaltecimento da memória repisada, a persuasão baseada na insistência e, se quiserem, o anti negacionismo por excelência.

Com prazer convidaria Ernst Becker, o autor do icônico "A Negação da Morte" para passar alguns dias comigo ou com alguém enlutado para dividir a experiência. A ideia seria lhe repassar algo além do simbolismo, para que ele tivesse alguma ideia sobre os sentimentos que o ritual faz aflorar. Não renego a imensa sabedoria que o ritual oferece, pelo contrário, mas é evidente que se trata de um interregno intencionalmente doloroso. Te coloca frente a frente com o desamparo e o vazio abruptos.

Tortura? Autocomiseração?

Apenas ocasionalmente a função me parece clara. Especulo que talvez seja para depois te oferecer a redenção e o alívio do final de uma caminhada através das oscilações entre túneis claros e obscuros. Mas quem está lá dentro, quem depara com a extensão e a densidade sabe, não há complacência, especialmente no meio da jornada, no corredor, no hiato.

Estas reflexões que faço aqui agora, como homenagem ao meu pai, cuja data de aniversário de falecimento é hoje, dia 17 de julho, e representam o dia de passagem através daquela que já foi definida como a porta irreversível. Uma porta que a despeito de ser irreversível pode ser entreaberta para recuperar pelo menos dois conceitos caros à filosofia monoteísta, seja qual for sua vertente: arrependimento (teshuvá) e (emuná) fé.

O Rabino, químico e sociólogo Adin Steinsaltz escreveu: "o Talmud não ensina sanidade: ele cria sanidade". O que este homem de caráter renascentista e de um sorriso todo compreensivo quis afinal dizer com isso? Ensaio uma resposta: o hábito de questionar desenvolve no sujeito a capacidade de arguir, de meditar sobre o que é significativo não só na palavra que simboliza Dus, mas, também, e principalmente, sobre o que é uma vida significativa e seu impacto no conceito de justiça.

Não é insignificante que a santidade no judaísmo, e particularmente no hassidismo posterior, esteja na representação da tzedaká (algo aproximado de caridade), e, portanto, deriva de sua raiz hebraica, tzadik (o justo). Ser justo é mais do que ser apenas santo. Isto é, o justo sempre se aproximara da verdadeira natureza de Dus que é ser parte de uma justiça excelsa, as vezes incompreensível, a justiça divina. Ser justo é uma imitação simbólica, é preciso procurar ser parecido com a natureza do Altíssimo. Por isso o conceito de justiça é tão especial e único na tradição mosaica. Como escreveu Schlolem, o hassidismo "deu uma ênfase ao lado psicológico da vida." O hassidismo também incorporou os aspectos esotéricos de uma forma original e única. Para além da mistificação simplificadora, trouxe-os à vida. Descobre-se que descendo as profundezas do próprio eu pode-se "transcender os limites da existência natural" e descobrir D-us em tudo, ou melhor "não há nada senão Ele".

O cabalismo sob a visão hassídica - e é essa sua grande contribuição -- tornou-se um instrumento de análise psicológica, e de autoconhecimento, "um instrumento de precisão daquilo que é, não raro, espantoso" conforme escreveu o mesmo Scholem. Agregou e misturou o sentimento religioso à preocupação com a mente humana e seus impulsos e tendências. Na escola de um outro rabino menos conhecido do que Ball Schem Tov e Schneur Zalman, Tzvi Hirsch de Jidatschov: a busca de todos os homens poder-se-ia resumir como a mística da vida pessoal.

Relembro tudo isso neste dia do Yurtzait do meu pai pensando em todos que já perderam alguém que fazia o papel de âncora geopolitico-espiritual.  Por isso trago alguns parágrafos do que senti naquele dia específico há exatos três anos:

"Você também trouxe para os teus uma outra espécie de compreensão do mundo prático. Fundou para além do teu núcleo de contatos imediatos, a vinda de uma mudança que ainda não chegou: a leveza da rotina, o estoicismo prático e o desprezo pela cultura do sofrimento. Foi quando adquiriste as passagens para as passárgadas elevadas. Um paraíso constituído por sítios imaginários. Mistura de jardins londrinos com estradas vicinais caipiras. Tua "Nova Inglaterra" não precisará mais esperar por todos nós. Reside aqui. Ela nos reunirá não como família, mas na grande cúpula da congregação sagrada. A utopia possível, aquela na qual você acredita como ninguém. E, cedo ou tarde, reconheceremos o que você vive a dizer:as leis não bastam, chega de revolução, de reformadores heroicos, de grandiloquências narcísicas, viemos civilizar o mundo através do afeto, e é por isso mesmo que sempre foi difícil nos tolerar. Nos últimos tempos, você vinha elaborando outro sistema de notação,  um tipo original de benevolência. Queres criar uma nova terminologia?  Para os sonhos de reerguimento?  Das pregações livres de dogmas. Da ridicularização amena dos fanatismos. Dos doutrinadores de ocasião. Lembras quando pintou as luzes como Chagall? Ou o amarelo-terra de Van Gogh? E pinceladas transversais? Os dinossauros-grúfalos com consciência?  Então, por mais invulneráveis, não podemos mais negar o trágico que tua ausência nos imporia. Perdão. Trágico nunca, apenas uma branda melancolia. Se exigíamos que ficasse mais era só porque sabíamos  da tua capacidade de nos achar. Em qualquer lugar. No espaço tempo, agora abolido. Mas se a escolha for a partida, que a direção seja unívoca, clara, rumo ao grande "quem". E eis que tuas dúvidas sobre o que era o outro mundo foram todas respondidas. Menos uma: o que faremos nós?Precisamos do teu olhar e discernimento. Entender como uma fé não intelectualizada conseguia superar a pressão dos ceticismos. Se precisamos te encontrar é para saber mais sobre o segredo do teu apreço pela vida. Você, como Leon Bloy, tinha aquela "imensa curiosidade" de saber o que se esconde atrás das cortinas. De onde nenhum visitante regressou.  Mero despiste, você sempre soube. O 'Grande Quem" você conhecia, um dia compartilhará conosco.

Como poderemos esquecer das tuas danças e sapateados, tuas experiências com sopa de galochas e o ingênuo pedido de isqueiro para bombeiros que quase te rendeu uma detenção? Teu exemplo de fortaleza não apagou tuas indignações. Como protestos privados. A fúria contra as autocracias disfarçadas. Tua crítica arguta contra a excesso de seriedade.  Quantas vezes tentou nos ensinar sobre as saudades do paraíso?Lugar que já foi ilha, já foi agricultura, já foi teu filho Sérgio que te antecedeu. Um Gan Eden que nos ofereceu uma visão de fora dos trópicos. O Jardim do Éden, como escreveu Gershom Scholem,  pode ser o símbolo da própria felicidade. Tua arquitetura de objetos indiretos e soluções geniais. Teus arranjos sofisticados pela simplicidade. Teu tirocínio compreensivo. A busca, como a de Tolstoy, por uma justiça baseada na espiritualidade pessoal. Assim como a relação com os céus, pessoal. Tudo isso foi só para te dizer que que se isso fosse uma separação ela não terá sentido nem a mínima duração. Já me ensinaram, primeiro a união, depois a havdalá, o apartamento, temporário. Forjaremos um novo tempo até este alcançar enfim o encontro da permanência. Para sempre, Pai, para sempre."

Se disserem que o tempo é o remédio, recuse. O tempo é um placebo que nos avisa que amanhã será mais fácil do que hoje. Não custa rir de mais este recibo passado por um estelionatário chamado destino.

Dói, mas a alternativa seria esquecer que somos seres cômicos.

Não levar o luto a sério é a maior prova de respeito à irreverência sagrada.

Foi isso que meu Pai ensinou.

(a continuar)

Para ler mais

https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/moishe-aharon-ben-chava-mauricio-rosenbaum/

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