Grão de areia na ampulheta
Dia de aniversário. Sempre há um elemento melancólico em fazer anos. Recebo mensagens de colegas amigos, conhecidos e desconhecidos com desejos de coisas boas. Fico atento à autenticidade nas comunicações. A maioria costuma ser protocolar. E dai? O que realmente importa é que você tenha pessoas que se lembrem de você, certo? Estar na memória de alguém é sobreviver para além do self.
Entretanto, hoje, um fato inusitado aconteceu. Uma das mensagens, de um remetente desconhecido, trouxe um estranho impacto. Eram 3.33 AM quando, sob a conhecida insônia crônica, e desaconselhando todas as recomendações dos especialistas, abri o celular depois que a luz piscou.
A mensagem:
"Que teus dias desçam livres como a areia de uma ampulheta!"
Sem dúvida era original.
Mas, como quem toca num objeto proibido larguei o artefato móvel. O objeto que alguns chamam de celular, o grande culpado por substituir a interlocução por comunicados unilaterais. O responsável pelo desvio de função, distração permanente e pela geração de alienados que digitam sem parar.
E então, sabendo que não mudaria a realidade, já me preparava para forçar o sono.
Inútil.
Sem conseguir voltar para dormir despertei matutando sobre o enigma.
Não havia remetente. A mensagem veio do vácuo?
Quanto vezes deparamos com falsos enigmas, mas ali havia realmente algo misterioso.
Acordei de vez e uma série de especulações vieram liberar o espírito da curiosidade. Prefiro o termo espírito à neurotransmissores por razões que talvez só alguns psiquiatras consigam especular. Afinal, o que aquele remetente desconhecido quis dizer com isso?
Arrisquei começar a digitar uma resposta e pensei em perguntar com delicadeza.
"Amigo, antes de tudo, muito obrigado. Poderia me explicar melhor o significado da sua mensagem?"
Mas a autocritica censurou.
"Patético" exclamei alto.
Era óbvio o significado. Algo como uma metáfora para me desejar uma vida longa. Apaguei.
Seria ridículo enviar aquilo.
E eu que sonhava com mensagens originais, autenticas - e esta era sobretudo criativa -- e me flagro tentando encontrar alguma mensagem cifrada num simples desejo de feliz aniversário?
Recostei-me e fechei os olhos, mas eis que a paranoia voltou violenta como os bumerangues que retornam quando falham em atingir seus alvos.
O que será que ele quis dizer fazendo a analogia dos meus dias descerem livres como a areia de uma ampulheta? Se ele tivesse escrito "que os teus dias sejam como a areia" seria auto evidente. Se tivesse escrito que os teus dias sejam contados como a areia teria me recordado da promessa que o Criador fez para Abraão sobre a descendência do patriarca: "que o número de teus descendentes seja como a areia das praias e as estrelas no céu". Mas que os meus dias "desçam livres como a areia de uma ampulheta"?
Então um sono pesado desceu sobre mim, e tive um daqueles sonhos que sabemos que não podem ser apenas sonhos.
Ali eu inspecionava uma ampulheta quando detectei um grão de areia que ficou preso no trajeto. Olhando melhor ele estava parado no ar. Por que o teimoso não descia como todos os demais?
Sacudi a ampulheta e eis que o obstinado floco teimava em ficar suspenso. Suspenso ou entalado? Olhei em volta e constatei que o mundo continuava a girar, a rotação da Terra intacta, os objetos e pessoas idem. As velhas leis do cosmos lá estavam, intactas. Se me pedissem uma explicação lógica para o fenômeno eu simplesmente diria:
"Não faço a menor ideia".
Deduzi que era algum fenômeno magnético, talvez eletrostático, interferia no movimento descendente da areia. Seria decorrente de um ciberataque? Fui pesquisar dentro de casa e os computadores estavam funcionando. Já os relógios não, os ponteiros parados naquele número: 3:33. Abri a janela, e havia um avião transitando no horizonte. A gravidade ainda parecia ser uma lei universal, menos em algum país do hemisfério norte. Intrigado, voltei-me à ampulheta e lá estava ele, o pó obstinado, parado bem no meio do afunilamento do vidro.
Naquele exato momento ouvi um som altíssimo: eram trombetas. Não tinha nada a ver com o novo presidente americano. Anúncio apocalíptico? Seria o prenuncio do fim? Virei-me, e um túnel enorme se abriu diante de mim:
-- Entre, uma voz emitiu sua ordem. Uma autoridade imperativa, excelsa, categórica.
Se não estivesse sóbrio pensaria numa alucinação alcoólica. Descartei um surto psicótico e continuei andando em direção ao túnel. Devo ter andado quilômetros até tentar alcançar o outro lado. Foi ficando cada vez mais estreito. Cogitei se aquilo era o que se costumava descrever na quase maioria das experiencias de quase morte.
Ao piscar os olhos a nuvem se desfez e finalmente consegui me desvencilhar. Eu era o grão em queda livre. A descida durou muito, até finalmente bater as costas no fundo da ampulheta. Quando me ergui uma luz branca espargiu um halo radiante que me atordoou.
Ao acordar meu travesseiro estava ensopado de suor.
Entendi que fluência é a liberdade de um grão de areia em uma ampulheta. Era a qualidade sobre a quantidade, a leveza do deslize contra a estagnação. Era a vida como rio, lutando para não ser mar morto. Era o tempo, que sendo uma dimensão pode ser interrompido. Era a liberdade, palavra cujo sentido foi se deformando para ser instrumentalizada pelos ditadores e tiranos do mundo. Ficar mais velho não é inevitável, mas o modo como descemos rumo ao fundo da ampulheta pode mudar tudo.
Não são apenas as mensagens cifradas que nos deslocam a um outro nível de consciência, é a interpretação das palavras que pode mudar tudo.
Este aniversário foi muito diferente graças a isso. Passei a olhar de outro modo a passagem do tempo.
Obrigado amigos, especialmente aquele -- ESTEJA ONDE ESTIVER -- que me enviou a mensagem anônima.
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