Crônica, política e derivações

Rivellino e as partículas erráticas.


Por Paulo Rosenbaum

Rivellino e as partículas erráticas.

No dia 08 de janeiro, meu irmão Sérgio nasceu.

Faleceu há décadas no dia 06 de fevereiro com apenas 12 anos de idade.

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Nosso sofrimento, exacerbado pela situação de exílio, jamais caberia espremido em palavras. Sua ausência parece permanente, e, imagino, que assim é com todos que tem alguém que já habito o outro lado, de onde, segundo Hamlet, ninguém jamais voltou. O Rei, pai de Hamlet, recentemente falecido, manda recados para lhe revelar os segredos que dominarão o drama teatral mais completo e representativo da existência humana.

Shakespeare era um exímio instrumentador de metáforas: "jamais voltou". De fato, jamais voltou porque não era necessário, sempre estiveram por perto.

Num universo onde contamos com o princípio da indeterminação, a observação da expansão constante das galáxias a partir de um ponto central, a radiação cósmica de fundo, o cálculo teórico de Einstein sobre o raio de curvatura do Universo, cabe humildade. Com todos estes elementos acima não se pode ter as mesmas certezas que tínhamos na era positivista da ciência. A maioria confunde a incerteza com pseudociência. Muitos ainda vivem sob o paradigma não vitalista e sob a égide da imortalidade científica de princípios estanques, do binômio causa-efeito, e da ordenação mecanicista do mundo.

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Como dou fé que a ciência possui muito mais perguntas que respostas, tenho me permitido considerar que, se formos resolutos e honestos nessa premissa, teremos que admitir que quanto mais compreendemos o mundo, menos certezas teremos e mais conscientes do nosso desconhecimento ficaremos. Sócrates tentou sintetizar essa angústia.

A despeito das razões de chance precisamente no dia 08 de janeiro recuperei uma foto que o genial jogador de futebol Roberto Rivellino dedicou ao meu irmão.

 

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Acaso ou necessidade? Coincidência ou sincronicidade? Jogo de dados ou destino predeterminado?

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A razão tende a justificar tudo segundo a lógica de probabilidades aleatórias. É verdade, o pensamento rápido engana. Calma, sei que há um diagnóstico da psicopatologia para pessoas que enxergam padrões em tudo, porém ninguém pode refutar categoricamente a hipótese de que, mesmo na ausência, haja sempre um resíduo de presença.

É inexplicável, ainda que seja quase palpável. Muitos sabem que, ao meditar ou rezar, pressentimos. Preferem chamar de intuição? Estado alterado de consciência? Isto é, percebemos espécies de elétrons e partículas insistentes que circulam erráticas. São elas que perduram. E não se resumem apenas à memória ou a mera evocação intelectual.

Tal faísca pulula em nós, todos os dias. Num teclado, numa voz feminina, num coro, e lá está ela. É a forma que a morte encontrou para brincar conosco. Soa pouco lúgubre? Insuficientemente solene? O que podemos fazer se necessitamos do lúdico para sobreviver? Pelos menos é como tentamos nos esquivar da obscuridade. Aprendi com um justo: temos que rir a cada quinze minutos. Maimônides recomendava o mesmo. Psicólogos bem-humorados também. Médicos conscientes sabem que, a despeito de ter muitas prerrogativas, eles não têm nenhum direito de desanimar os pacientes.

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E como fazemos desaparecer a sensação das perdas irreparáveis?

Só hoje ficou claro para mim. Aquela foto do ídolo do Corinthians e a dedicatória que ele fez tem uma atualidade sobrenatural: ainda estão acontecendo. Com o que hoje sabemos é uma trapaça achar que o tempo é unidirecional. O tempo vai e vem porque é uma dimensão. E por que não seria assim com a vida?

Há mistérios que nunca desvendaremos. Jamais elucidaremos porque há uma simultaneidade inapreensível Isso indica que a vida é um projeto totalmente inacabado.

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E nem venham me falar sobre o neo paganismo da inteligência artificial e dos sucessos absolutos da tecnologia. Não, eu não os rejeito, apenas duvido que possam se expressar com a mesma desenvoltura das pessoas. Em outras palavras, saber que somos perecíveis nos coloca num lugar muito distinto de qualquer robô com quociente de inteligência interminável.  Computador quântico algum vai poder sentir como nós, que somos finitos sem precisar renunciar ao infinito -- que também somos. Estamos, portanto, num espaço singular, inimitável.

E o que nós temos que elas, as máquinas, não possuem? As máquinas e mesmo todas aquelas parafernálias que podem nos bater em acumulo de inteligência e cultura, não conseguem negar a morte para poder viver. Enquanto nós a negamos com os pés juntos. Exatamente ai está um privilégio exclusivo dos humanos.

Os elétrons estão soltos -- é permitido que também os chamemos de alma -- e por isso eu hoje me permito saber - e sem precisar recorrer a nenhuma mistificação - que há algo vivo em tudo. E porque não haveria de ter uma partícula do meu querido irmão também presente num objeto que ele tocou, sobre o qual ele se emocionou,, e sobre a qual ele sorriu tímido e envergonhado ao ler "Ao Sérgio, uma recordação de seu amigo. 27/11/69."

Imagino que Rivellino nunca soube disso, mas aquela foto, milagrosamente intacta, preservou um fragmento que simplesmente não existiria se, justamente, nesta data, eu não a tivesse encontrado, depois de estar perdida por décadas caído atrás de uma estante.

E isso me remete a totalidade daqueles que passam pelos lutos. Pessoas que perderam pessoas, filhos, mães, pais, avós e avôs, tios e amigas. Sem esquecer daqueles que caíram nas guerras e nos acidentes. Lembrando dos que não sabemos -- como o gato de Schrödinger --  se estão vivos ou mortos, dos que desapareceram sem deixar rastros, e, principalmente, dos que se encontram sequestrados e confinados nos calabouços da escuridão.

A memória é decerto um consolo ainda que de uma insuficiência desconcertante. O fundador da histologia, o médico Xavier Bichat escreveu que "a vida é o conjunto de fatores que resistem a morte". Mas, é aí mesmo que reside o centro da minha reflexão: a vida afinal é um esforço de recuperação permanente frente à morte. Se quiserem, a vida é uma convalescença antecipada.

Mas se a morte estiver inserida nesta estranha continuidade? Não, o artigo não é um corolário espírita ou religioso, ainda que Deus, como primeiro motor, seja a hipótese mais provável para justificar essa equação.

E se mostrássemos desde cedo às crianças que desaparecer é a única garantia da continuidade e da permanência. Não como um jogo de palavras, mas como a verdade da existência. De que é o significado de cada um que sobrevive à extinção de um corpo. Um significado fantasma, que benevolentemente nos acompanha para sempre.

Não, não é encosto.

Rivellino driblou o tempo com sua dedicatória. Aquela foto (aqui reproduzida) imortalizou sua jogada, mas foi a partícula do Serginho com a qual hoje pude entrar em contato que me encheu de uma esperança imotivada.

E isso não tem nada a ver com o incorrigível defeito de ainda torcer pelo Corinthians.

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Leia também

https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/macabeus-vivem/

Rivellino e as partículas erráticas.

No dia 08 de janeiro, meu irmão Sérgio nasceu.

Faleceu há décadas no dia 06 de fevereiro com apenas 12 anos de idade.

Nosso sofrimento, exacerbado pela situação de exílio, jamais caberia espremido em palavras. Sua ausência parece permanente, e, imagino, que assim é com todos que tem alguém que já habito o outro lado, de onde, segundo Hamlet, ninguém jamais voltou. O Rei, pai de Hamlet, recentemente falecido, manda recados para lhe revelar os segredos que dominarão o drama teatral mais completo e representativo da existência humana.

Shakespeare era um exímio instrumentador de metáforas: "jamais voltou". De fato, jamais voltou porque não era necessário, sempre estiveram por perto.

Num universo onde contamos com o princípio da indeterminação, a observação da expansão constante das galáxias a partir de um ponto central, a radiação cósmica de fundo, o cálculo teórico de Einstein sobre o raio de curvatura do Universo, cabe humildade. Com todos estes elementos acima não se pode ter as mesmas certezas que tínhamos na era positivista da ciência. A maioria confunde a incerteza com pseudociência. Muitos ainda vivem sob o paradigma não vitalista e sob a égide da imortalidade científica de princípios estanques, do binômio causa-efeito, e da ordenação mecanicista do mundo.

Como dou fé que a ciência possui muito mais perguntas que respostas, tenho me permitido considerar que, se formos resolutos e honestos nessa premissa, teremos que admitir que quanto mais compreendemos o mundo, menos certezas teremos e mais conscientes do nosso desconhecimento ficaremos. Sócrates tentou sintetizar essa angústia.

A despeito das razões de chance precisamente no dia 08 de janeiro recuperei uma foto que o genial jogador de futebol Roberto Rivellino dedicou ao meu irmão.

 

 
 

Acaso ou necessidade? Coincidência ou sincronicidade? Jogo de dados ou destino predeterminado?

A razão tende a justificar tudo segundo a lógica de probabilidades aleatórias. É verdade, o pensamento rápido engana. Calma, sei que há um diagnóstico da psicopatologia para pessoas que enxergam padrões em tudo, porém ninguém pode refutar categoricamente a hipótese de que, mesmo na ausência, haja sempre um resíduo de presença.

É inexplicável, ainda que seja quase palpável. Muitos sabem que, ao meditar ou rezar, pressentimos. Preferem chamar de intuição? Estado alterado de consciência? Isto é, percebemos espécies de elétrons e partículas insistentes que circulam erráticas. São elas que perduram. E não se resumem apenas à memória ou a mera evocação intelectual.

Tal faísca pulula em nós, todos os dias. Num teclado, numa voz feminina, num coro, e lá está ela. É a forma que a morte encontrou para brincar conosco. Soa pouco lúgubre? Insuficientemente solene? O que podemos fazer se necessitamos do lúdico para sobreviver? Pelos menos é como tentamos nos esquivar da obscuridade. Aprendi com um justo: temos que rir a cada quinze minutos. Maimônides recomendava o mesmo. Psicólogos bem-humorados também. Médicos conscientes sabem que, a despeito de ter muitas prerrogativas, eles não têm nenhum direito de desanimar os pacientes.

E como fazemos desaparecer a sensação das perdas irreparáveis?

Só hoje ficou claro para mim. Aquela foto do ídolo do Corinthians e a dedicatória que ele fez tem uma atualidade sobrenatural: ainda estão acontecendo. Com o que hoje sabemos é uma trapaça achar que o tempo é unidirecional. O tempo vai e vem porque é uma dimensão. E por que não seria assim com a vida?

Há mistérios que nunca desvendaremos. Jamais elucidaremos porque há uma simultaneidade inapreensível Isso indica que a vida é um projeto totalmente inacabado.

E nem venham me falar sobre o neo paganismo da inteligência artificial e dos sucessos absolutos da tecnologia. Não, eu não os rejeito, apenas duvido que possam se expressar com a mesma desenvoltura das pessoas. Em outras palavras, saber que somos perecíveis nos coloca num lugar muito distinto de qualquer robô com quociente de inteligência interminável.  Computador quântico algum vai poder sentir como nós, que somos finitos sem precisar renunciar ao infinito -- que também somos. Estamos, portanto, num espaço singular, inimitável.

E o que nós temos que elas, as máquinas, não possuem? As máquinas e mesmo todas aquelas parafernálias que podem nos bater em acumulo de inteligência e cultura, não conseguem negar a morte para poder viver. Enquanto nós a negamos com os pés juntos. Exatamente ai está um privilégio exclusivo dos humanos.

Os elétrons estão soltos -- é permitido que também os chamemos de alma -- e por isso eu hoje me permito saber - e sem precisar recorrer a nenhuma mistificação - que há algo vivo em tudo. E porque não haveria de ter uma partícula do meu querido irmão também presente num objeto que ele tocou, sobre o qual ele se emocionou,, e sobre a qual ele sorriu tímido e envergonhado ao ler "Ao Sérgio, uma recordação de seu amigo. 27/11/69."

Imagino que Rivellino nunca soube disso, mas aquela foto, milagrosamente intacta, preservou um fragmento que simplesmente não existiria se, justamente, nesta data, eu não a tivesse encontrado, depois de estar perdida por décadas caído atrás de uma estante.

E isso me remete a totalidade daqueles que passam pelos lutos. Pessoas que perderam pessoas, filhos, mães, pais, avós e avôs, tios e amigas. Sem esquecer daqueles que caíram nas guerras e nos acidentes. Lembrando dos que não sabemos -- como o gato de Schrödinger --  se estão vivos ou mortos, dos que desapareceram sem deixar rastros, e, principalmente, dos que se encontram sequestrados e confinados nos calabouços da escuridão.

A memória é decerto um consolo ainda que de uma insuficiência desconcertante. O fundador da histologia, o médico Xavier Bichat escreveu que "a vida é o conjunto de fatores que resistem a morte". Mas, é aí mesmo que reside o centro da minha reflexão: a vida afinal é um esforço de recuperação permanente frente à morte. Se quiserem, a vida é uma convalescença antecipada.

Mas se a morte estiver inserida nesta estranha continuidade? Não, o artigo não é um corolário espírita ou religioso, ainda que Deus, como primeiro motor, seja a hipótese mais provável para justificar essa equação.

E se mostrássemos desde cedo às crianças que desaparecer é a única garantia da continuidade e da permanência. Não como um jogo de palavras, mas como a verdade da existência. De que é o significado de cada um que sobrevive à extinção de um corpo. Um significado fantasma, que benevolentemente nos acompanha para sempre.

Não, não é encosto.

Rivellino driblou o tempo com sua dedicatória. Aquela foto (aqui reproduzida) imortalizou sua jogada, mas foi a partícula do Serginho com a qual hoje pude entrar em contato que me encheu de uma esperança imotivada.

E isso não tem nada a ver com o incorrigível defeito de ainda torcer pelo Corinthians.

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https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/macabeus-vivem/

Rivellino e as partículas erráticas.

No dia 08 de janeiro, meu irmão Sérgio nasceu.

Faleceu há décadas no dia 06 de fevereiro com apenas 12 anos de idade.

Nosso sofrimento, exacerbado pela situação de exílio, jamais caberia espremido em palavras. Sua ausência parece permanente, e, imagino, que assim é com todos que tem alguém que já habito o outro lado, de onde, segundo Hamlet, ninguém jamais voltou. O Rei, pai de Hamlet, recentemente falecido, manda recados para lhe revelar os segredos que dominarão o drama teatral mais completo e representativo da existência humana.

Shakespeare era um exímio instrumentador de metáforas: "jamais voltou". De fato, jamais voltou porque não era necessário, sempre estiveram por perto.

Num universo onde contamos com o princípio da indeterminação, a observação da expansão constante das galáxias a partir de um ponto central, a radiação cósmica de fundo, o cálculo teórico de Einstein sobre o raio de curvatura do Universo, cabe humildade. Com todos estes elementos acima não se pode ter as mesmas certezas que tínhamos na era positivista da ciência. A maioria confunde a incerteza com pseudociência. Muitos ainda vivem sob o paradigma não vitalista e sob a égide da imortalidade científica de princípios estanques, do binômio causa-efeito, e da ordenação mecanicista do mundo.

Como dou fé que a ciência possui muito mais perguntas que respostas, tenho me permitido considerar que, se formos resolutos e honestos nessa premissa, teremos que admitir que quanto mais compreendemos o mundo, menos certezas teremos e mais conscientes do nosso desconhecimento ficaremos. Sócrates tentou sintetizar essa angústia.

A despeito das razões de chance precisamente no dia 08 de janeiro recuperei uma foto que o genial jogador de futebol Roberto Rivellino dedicou ao meu irmão.

 

 
 

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A razão tende a justificar tudo segundo a lógica de probabilidades aleatórias. É verdade, o pensamento rápido engana. Calma, sei que há um diagnóstico da psicopatologia para pessoas que enxergam padrões em tudo, porém ninguém pode refutar categoricamente a hipótese de que, mesmo na ausência, haja sempre um resíduo de presença.

É inexplicável, ainda que seja quase palpável. Muitos sabem que, ao meditar ou rezar, pressentimos. Preferem chamar de intuição? Estado alterado de consciência? Isto é, percebemos espécies de elétrons e partículas insistentes que circulam erráticas. São elas que perduram. E não se resumem apenas à memória ou a mera evocação intelectual.

Tal faísca pulula em nós, todos os dias. Num teclado, numa voz feminina, num coro, e lá está ela. É a forma que a morte encontrou para brincar conosco. Soa pouco lúgubre? Insuficientemente solene? O que podemos fazer se necessitamos do lúdico para sobreviver? Pelos menos é como tentamos nos esquivar da obscuridade. Aprendi com um justo: temos que rir a cada quinze minutos. Maimônides recomendava o mesmo. Psicólogos bem-humorados também. Médicos conscientes sabem que, a despeito de ter muitas prerrogativas, eles não têm nenhum direito de desanimar os pacientes.

E como fazemos desaparecer a sensação das perdas irreparáveis?

Só hoje ficou claro para mim. Aquela foto do ídolo do Corinthians e a dedicatória que ele fez tem uma atualidade sobrenatural: ainda estão acontecendo. Com o que hoje sabemos é uma trapaça achar que o tempo é unidirecional. O tempo vai e vem porque é uma dimensão. E por que não seria assim com a vida?

Há mistérios que nunca desvendaremos. Jamais elucidaremos porque há uma simultaneidade inapreensível Isso indica que a vida é um projeto totalmente inacabado.

E nem venham me falar sobre o neo paganismo da inteligência artificial e dos sucessos absolutos da tecnologia. Não, eu não os rejeito, apenas duvido que possam se expressar com a mesma desenvoltura das pessoas. Em outras palavras, saber que somos perecíveis nos coloca num lugar muito distinto de qualquer robô com quociente de inteligência interminável.  Computador quântico algum vai poder sentir como nós, que somos finitos sem precisar renunciar ao infinito -- que também somos. Estamos, portanto, num espaço singular, inimitável.

E o que nós temos que elas, as máquinas, não possuem? As máquinas e mesmo todas aquelas parafernálias que podem nos bater em acumulo de inteligência e cultura, não conseguem negar a morte para poder viver. Enquanto nós a negamos com os pés juntos. Exatamente ai está um privilégio exclusivo dos humanos.

Os elétrons estão soltos -- é permitido que também os chamemos de alma -- e por isso eu hoje me permito saber - e sem precisar recorrer a nenhuma mistificação - que há algo vivo em tudo. E porque não haveria de ter uma partícula do meu querido irmão também presente num objeto que ele tocou, sobre o qual ele se emocionou,, e sobre a qual ele sorriu tímido e envergonhado ao ler "Ao Sérgio, uma recordação de seu amigo. 27/11/69."

Imagino que Rivellino nunca soube disso, mas aquela foto, milagrosamente intacta, preservou um fragmento que simplesmente não existiria se, justamente, nesta data, eu não a tivesse encontrado, depois de estar perdida por décadas caído atrás de uma estante.

E isso me remete a totalidade daqueles que passam pelos lutos. Pessoas que perderam pessoas, filhos, mães, pais, avós e avôs, tios e amigas. Sem esquecer daqueles que caíram nas guerras e nos acidentes. Lembrando dos que não sabemos -- como o gato de Schrödinger --  se estão vivos ou mortos, dos que desapareceram sem deixar rastros, e, principalmente, dos que se encontram sequestrados e confinados nos calabouços da escuridão.

A memória é decerto um consolo ainda que de uma insuficiência desconcertante. O fundador da histologia, o médico Xavier Bichat escreveu que "a vida é o conjunto de fatores que resistem a morte". Mas, é aí mesmo que reside o centro da minha reflexão: a vida afinal é um esforço de recuperação permanente frente à morte. Se quiserem, a vida é uma convalescença antecipada.

Mas se a morte estiver inserida nesta estranha continuidade? Não, o artigo não é um corolário espírita ou religioso, ainda que Deus, como primeiro motor, seja a hipótese mais provável para justificar essa equação.

E se mostrássemos desde cedo às crianças que desaparecer é a única garantia da continuidade e da permanência. Não como um jogo de palavras, mas como a verdade da existência. De que é o significado de cada um que sobrevive à extinção de um corpo. Um significado fantasma, que benevolentemente nos acompanha para sempre.

Não, não é encosto.

Rivellino driblou o tempo com sua dedicatória. Aquela foto (aqui reproduzida) imortalizou sua jogada, mas foi a partícula do Serginho com a qual hoje pude entrar em contato que me encheu de uma esperança imotivada.

E isso não tem nada a ver com o incorrigível defeito de ainda torcer pelo Corinthians.

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