Crime organizado se espalha por territórios antes fora de disputa, diz pesquisadora


Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou dados de criminalidade no Brasil nesta terça-feira. Homicídios caíram nacionalmente, mas Região Norte observou alta de casos

Por Ítalo Lo Re
Atualização:

SÃO PAULO – Apesar da queda de homicídios observada em 2021, o crime organizado tem se espalhado agora por territórios que anteriormente estavam fora de disputa por grandes facções, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho. A nova dinâmica, contudo, não necessariamente indica que haverá queda nos assassinatos nos próximos anos. Isso é o que aponta em entrevista ao Estadão a pesquisadora Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Como consequência desse fenômeno, o Estado do Amazonas, por exemplo, viu as mortes subirem de 1.121, em 2020, para 1.670, no último ano. “Em 2019, houve uma redução significativa da violência letal no Amazonas, e agora a gente está falando que é o maior crescimento”, disse Samira. Atualmente, das 30 cidades mais violentas do País, 13 estão na Amazônia Legal, segundo levantamento divulgado pelo Fórum nesta terça-feira, 28. Confira abaixo a entrevista completa:

Pesquisadora não vê influência significativa das dinâmicas da pandemia sobre os dados de homicídio do ano passado. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
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Durante a apresentação do Anuário, falou-se que há uma migração dos homicídios para a região Norte e que alguns dos conflitos entre facções, que se intensificaram a partir de 2017, tiveram "vencedores", o que teria estabilizado as mortes em outros locais. Poderia comentar um pouco sobre essa dinâmica?

Houve uma guerra desencadeada por um grande conflito entre PCC (Primeiro Comando da Capital) e Comando Vermelho a partir de 2017, mas houve um processo de apaziguamento desses conflitos a partir de 2018. Isso aconteceu porque o conflito, por si só, custa caro. Ao manter esse nível tão elevado de conflito, a facção perde gente para a violência e chama atenção da polícia, o que acaba não fazendo sentido depois de um período muito longo. Outro motivo é que houve consolidação de algumas facções em determinados territórios. Quando se olha para o Acre hoje, o domínio é praticamente todo do Comando Vermelho. Quando se olha para o Pará, para a capital e a região metropolitana ou para Santarém, por exemplo, as áreas são dominadas pelo Comando Vermelho. 

Ao mesmo tempo, Altamira, que inclusive está entre as cidades com mais de 100 mil habitantes mais violentas do País, é um território que até hoje é cindido, porque se tem uma facção local, que é o Comando Classe A, que sempre atuou em parceria com o PCC, e o Comando Vermelho. A região é uma rota muito importante para o narcotráfico, então ali se tem um conflito frequente. No Amazonas, depois de uma aparente hegemonia do Comando Vermelho no Amazonas, em detrimento da FDN, há hoje em Manaus uma guerra declarada que está inclusive comprometendo a segurança de alguns territórios. Tem bairros inteiros de Manaus que estão conflagrados por conta do avanço da FDN, que está tentando reconquistar territórios que um dia foram dela e que o Comando Vermelho ocupou.

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Tem esse movimento de que, em alguns lugares do Nordeste, as facções estão migrando, mas eu não diria que é só no Norte. Tem, por exemplo, o Piauí, que é um Estado que sempre foi tido como uma espécie de bolsão de segurança do Nordeste, porque tem taxas muito mais baixas do que o resto do País, e que hoje está sofrendo com a atuação do crime organizado, que vem do Maranhão, do Ceará, e que invadiu o território do Piauí. Eu diria, então, que a gente tem um espalhamento da atuação do crime organizado por territórios que antigamente não necessariamente eram disputados.

Mas essas relações estão relativamente estabilizadas no Norte ou há uma perspectiva de que isso pode explodir, assim como explodiu em 2017, por exemplo?

Isso é sempre possível no mundo do crime. Quando a mediação dos conflitos e a solução dos conflitos passa pela violência, isso é sempre uma possibilidade. É menos provável em um Estado como São Paulo porque a gente tem um monopólio (do PCC), mas em qualquer território é possível. Em 2019, houve uma redução significativa da violência letal no Amazonas, e agora a gente está falando que é o maior crescimento. Esse equilíbrio é muito frágil, muito tênue. 

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Se a gente for olhar hoje as cidades mais violentas do País com mais de 100 mil habitantes, a maior parte delas estão no Nordeste. Se olhar, por exemplo, a taxa de violência letal na Bahia, é elevadíssima. Em Pernambuco, tem várias cidades com taxa de violência muito elevada, assim como em Sergipe. Essa disputa dos grupos criminosos e essa violência que decorre da atuação deles é algo que existe no País inteiro. Se for olhar hoje para o Rio Grande do Sul, é o Estado que tem o maior número de facções de que se tem notícia, segundo monitoramento da Abin (Agência Brasileira de Inteligência). A ação do crime organizado hoje está presente no País inteiro.

Os dados apontam que a quantidade de homicídios é a menor desde 2011. A pandemia também influiu nessa queda recente ou não teve tanto peso?

A princípio, a queda se deve mais a outros fatores. Em 2020, a gente já tinha a pandemia e (o número de homicídios) cresceu. A violência está caindo desde 2018, mas ela cai em 2018, cai em 2019, cresce um pouco em 2020, e volta a cair em 2021. Então, é difícil dizer. A gente até procurou algumas referências internacionais para tentar entender como é que a violência letal se manifestou em outros países do mundo. Tem vários lugares, várias cidades grandes dos Estados Unidos que mostraram crescimento da violência letal no último ano. Ao mesmo tempo, vários territórios e vários países latino americanos tiveram redução. Fica difícil atribuir à pandemia alguma mudança na dinâmica da violência letal. A gente consegue ver a influência da pandemia na violência doméstica, que cresce, uma mudança dos crimes patrimoniais.

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Os estupros cresceram 4,9%, mas os estupros de vulnerável aumentaram em maior proporção: 5,9%. A que isso pode ser atribuído?

Isso pode ter uma explicação em grande medida associada à pandemia. Historicamente, vulneráveis representam maior percentual das vítimas estupro no Brasil. Dentro desses vulneráveis, a gente está falando principalmente de crianças e adolescentes, mas o conceito de vulnerável é um conceito ampliado. São pessoas incapazes de consentir. Então, pode ter criança, mas pode ter uma mulher adulta que eventualmente está alcoolizada e foi estuprada, ou uma pessoa com algum tipo de transtorno mental que fosse incapaz de consentir.

Mas a maior parte das vítimas de estupro de vulneráveis são crianças e adolescentes. E a gente teve o fechamento das escolas nos últimos dois anos praticamente. Então, é muito provável que crianças que estavam vulneráveis à violência sexual, porque a gente está falando de uma violência que acontece necessariamente dentro de casa, de autoria de conhecidos, estivessem mais expostas ao risco porque eram de fácil acesso ao agressor e estavam sem acesso à escola.

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Isso é uma coisa muito importante: a escola é muitas vezes o lugar em que se identifica que essa criança está sofrendo violência, seja maus-tratos, seja violência sexual. E a violência sexual tem um efeito muito perverso na criança. Ela começa a fazer xixi na calça, tem queda no rendimento escolar, muda o comportamento. Então, o profissional de educação que convive com aquela criança percebe que tem algo diferente acontecendo em casa, que tem algo errado, e aí alerta a mãe. A gente está falando de uma violência que em 98% dos casos é de autoria de homens.

Com os fechamentos das escolas, essas crianças ficaram mais vulneráveis. As escolas voltaram a abrir no final do ano passado, muitas delas. A gente acredita tanto que as crianças ficaram mais expostas à violência sexual e que também a gente está tendo um movimento das escolas tendo de lidar com uma série de traumas e violências que essas crianças vivenciaram nesse período de pandemia. Como se não bastassem os traumas que decorrem das mortes por covid, muitas delas perderam parentes e tudo mais.

Um ponto colocado por vocês é que a queda dos homicídios não necessariamente indica que a sensação de insegurança tenha diminuído. Muito em conta dessa alta dos crimes de estelionato e também por influência da letalidade policial, que teve uma queda menor para negros. Como esses pontos podem estar aumentando a sensação de insegurança?

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A sensação de segurança não está associada ao crime contra a vida para a maior parte das pessoas. Como cidadão, qual é a possibilidade de você morrer vítima de uma ação de arma de fogo? Você pode até ter medo de ser vítima da violência letal, mas você sabe que a probabilidade disso acontecer, em geral, é baixa. A maior parte da população brasileira não associa uma coisa à outra. São Paulo é o maior exemplo disso. Porque houve uma redução de 80% dos homicídios ao longo dos últimos 20 anos, mas a sensação de insegurança da população hoje é pior do que era há duas décadas, quando os homicídios eram maiores.

A sensação de insegurança está associada a dois elementos que são centrais: primeiro, a segurança do ambiente, e aí os crimes contra o patrimônio importam muito. Você ter medo de ser roubado ou furtado porque está falando no celular andando na Avenida Paulista é algo muito provável e é algo real, você conhece gente que sofreu isso e o tempo todo está preocupado com isso. Segundo, a confiança no Estado. Você confiar que, se você levar uma demanda para o Estado porque foi vítima de alguma forma de crime, o Estado vai dar atenção e tentar solucionar o problema. 

Esses são os dois pilares das sensação de insegurança e onde o Estado brasileiro, em suas diferentes esferas, tem falhado. Tem falhado porque a gente vê o crescimento progressivo de todas as modalidades de crimes contra o patrimônio, que é o que mais gera insegurança, e porque a confiança nas instituições de Justiça de modo geral tende a ser muito baixa. Seja porque ela é percebida como violenta ou porque ela é percebida como incapaz de resolver um problema porque não tem recursos para investigar. Ou porque não tem pessoal qualificado para dar respostas para aquele crime.

A gente não resolve o problema da sensação de insegurança com redução da violência letal. A violência letal é um indicador muito importante de a gente reduzir, é importante para a gente entender o quão sólida é a nossa democracia, e esses elevados números da violência letal mostram como a gente não consegue consolidar a democracia de fato para as pessoas na periferia das grandes cidades. Os direitos que tem alguém de classe média que mora no centro expandido são completamente diferentes dos direitos civis que a população da periferia tem, o que é um ponto muito importante.

E isso está diretamente relacionado com a questão da letalidade policial, certo? Já que, como colocam no levantamento, é um indicador que teve queda, mas não de forma equânime.

Exato. A forma como o Estado atua e essa desigualdade da atuação do Estado, que muitas vezes se mostra seletiva, abordando mais pessoas negras do que brancas, matando mais pessoas negras do que brancas, é um indicador que leva as instituições policiais a serem percebidas como pouco confiáveis ou muito violentas. Tudo isso acaba contribuindo para essa sensação de insegurança que é elevadíssima em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a gente tem pesquisas frequentes sobre o fenômeno.

SÃO PAULO – Apesar da queda de homicídios observada em 2021, o crime organizado tem se espalhado agora por territórios que anteriormente estavam fora de disputa por grandes facções, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho. A nova dinâmica, contudo, não necessariamente indica que haverá queda nos assassinatos nos próximos anos. Isso é o que aponta em entrevista ao Estadão a pesquisadora Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Como consequência desse fenômeno, o Estado do Amazonas, por exemplo, viu as mortes subirem de 1.121, em 2020, para 1.670, no último ano. “Em 2019, houve uma redução significativa da violência letal no Amazonas, e agora a gente está falando que é o maior crescimento”, disse Samira. Atualmente, das 30 cidades mais violentas do País, 13 estão na Amazônia Legal, segundo levantamento divulgado pelo Fórum nesta terça-feira, 28. Confira abaixo a entrevista completa:

Pesquisadora não vê influência significativa das dinâmicas da pandemia sobre os dados de homicídio do ano passado. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Durante a apresentação do Anuário, falou-se que há uma migração dos homicídios para a região Norte e que alguns dos conflitos entre facções, que se intensificaram a partir de 2017, tiveram "vencedores", o que teria estabilizado as mortes em outros locais. Poderia comentar um pouco sobre essa dinâmica?

Houve uma guerra desencadeada por um grande conflito entre PCC (Primeiro Comando da Capital) e Comando Vermelho a partir de 2017, mas houve um processo de apaziguamento desses conflitos a partir de 2018. Isso aconteceu porque o conflito, por si só, custa caro. Ao manter esse nível tão elevado de conflito, a facção perde gente para a violência e chama atenção da polícia, o que acaba não fazendo sentido depois de um período muito longo. Outro motivo é que houve consolidação de algumas facções em determinados territórios. Quando se olha para o Acre hoje, o domínio é praticamente todo do Comando Vermelho. Quando se olha para o Pará, para a capital e a região metropolitana ou para Santarém, por exemplo, as áreas são dominadas pelo Comando Vermelho. 

Ao mesmo tempo, Altamira, que inclusive está entre as cidades com mais de 100 mil habitantes mais violentas do País, é um território que até hoje é cindido, porque se tem uma facção local, que é o Comando Classe A, que sempre atuou em parceria com o PCC, e o Comando Vermelho. A região é uma rota muito importante para o narcotráfico, então ali se tem um conflito frequente. No Amazonas, depois de uma aparente hegemonia do Comando Vermelho no Amazonas, em detrimento da FDN, há hoje em Manaus uma guerra declarada que está inclusive comprometendo a segurança de alguns territórios. Tem bairros inteiros de Manaus que estão conflagrados por conta do avanço da FDN, que está tentando reconquistar territórios que um dia foram dela e que o Comando Vermelho ocupou.

Tem esse movimento de que, em alguns lugares do Nordeste, as facções estão migrando, mas eu não diria que é só no Norte. Tem, por exemplo, o Piauí, que é um Estado que sempre foi tido como uma espécie de bolsão de segurança do Nordeste, porque tem taxas muito mais baixas do que o resto do País, e que hoje está sofrendo com a atuação do crime organizado, que vem do Maranhão, do Ceará, e que invadiu o território do Piauí. Eu diria, então, que a gente tem um espalhamento da atuação do crime organizado por territórios que antigamente não necessariamente eram disputados.

Mas essas relações estão relativamente estabilizadas no Norte ou há uma perspectiva de que isso pode explodir, assim como explodiu em 2017, por exemplo?

Isso é sempre possível no mundo do crime. Quando a mediação dos conflitos e a solução dos conflitos passa pela violência, isso é sempre uma possibilidade. É menos provável em um Estado como São Paulo porque a gente tem um monopólio (do PCC), mas em qualquer território é possível. Em 2019, houve uma redução significativa da violência letal no Amazonas, e agora a gente está falando que é o maior crescimento. Esse equilíbrio é muito frágil, muito tênue. 

Se a gente for olhar hoje as cidades mais violentas do País com mais de 100 mil habitantes, a maior parte delas estão no Nordeste. Se olhar, por exemplo, a taxa de violência letal na Bahia, é elevadíssima. Em Pernambuco, tem várias cidades com taxa de violência muito elevada, assim como em Sergipe. Essa disputa dos grupos criminosos e essa violência que decorre da atuação deles é algo que existe no País inteiro. Se for olhar hoje para o Rio Grande do Sul, é o Estado que tem o maior número de facções de que se tem notícia, segundo monitoramento da Abin (Agência Brasileira de Inteligência). A ação do crime organizado hoje está presente no País inteiro.

Os dados apontam que a quantidade de homicídios é a menor desde 2011. A pandemia também influiu nessa queda recente ou não teve tanto peso?

A princípio, a queda se deve mais a outros fatores. Em 2020, a gente já tinha a pandemia e (o número de homicídios) cresceu. A violência está caindo desde 2018, mas ela cai em 2018, cai em 2019, cresce um pouco em 2020, e volta a cair em 2021. Então, é difícil dizer. A gente até procurou algumas referências internacionais para tentar entender como é que a violência letal se manifestou em outros países do mundo. Tem vários lugares, várias cidades grandes dos Estados Unidos que mostraram crescimento da violência letal no último ano. Ao mesmo tempo, vários territórios e vários países latino americanos tiveram redução. Fica difícil atribuir à pandemia alguma mudança na dinâmica da violência letal. A gente consegue ver a influência da pandemia na violência doméstica, que cresce, uma mudança dos crimes patrimoniais.

Os estupros cresceram 4,9%, mas os estupros de vulnerável aumentaram em maior proporção: 5,9%. A que isso pode ser atribuído?

Isso pode ter uma explicação em grande medida associada à pandemia. Historicamente, vulneráveis representam maior percentual das vítimas estupro no Brasil. Dentro desses vulneráveis, a gente está falando principalmente de crianças e adolescentes, mas o conceito de vulnerável é um conceito ampliado. São pessoas incapazes de consentir. Então, pode ter criança, mas pode ter uma mulher adulta que eventualmente está alcoolizada e foi estuprada, ou uma pessoa com algum tipo de transtorno mental que fosse incapaz de consentir.

Mas a maior parte das vítimas de estupro de vulneráveis são crianças e adolescentes. E a gente teve o fechamento das escolas nos últimos dois anos praticamente. Então, é muito provável que crianças que estavam vulneráveis à violência sexual, porque a gente está falando de uma violência que acontece necessariamente dentro de casa, de autoria de conhecidos, estivessem mais expostas ao risco porque eram de fácil acesso ao agressor e estavam sem acesso à escola.

Isso é uma coisa muito importante: a escola é muitas vezes o lugar em que se identifica que essa criança está sofrendo violência, seja maus-tratos, seja violência sexual. E a violência sexual tem um efeito muito perverso na criança. Ela começa a fazer xixi na calça, tem queda no rendimento escolar, muda o comportamento. Então, o profissional de educação que convive com aquela criança percebe que tem algo diferente acontecendo em casa, que tem algo errado, e aí alerta a mãe. A gente está falando de uma violência que em 98% dos casos é de autoria de homens.

Com os fechamentos das escolas, essas crianças ficaram mais vulneráveis. As escolas voltaram a abrir no final do ano passado, muitas delas. A gente acredita tanto que as crianças ficaram mais expostas à violência sexual e que também a gente está tendo um movimento das escolas tendo de lidar com uma série de traumas e violências que essas crianças vivenciaram nesse período de pandemia. Como se não bastassem os traumas que decorrem das mortes por covid, muitas delas perderam parentes e tudo mais.

Um ponto colocado por vocês é que a queda dos homicídios não necessariamente indica que a sensação de insegurança tenha diminuído. Muito em conta dessa alta dos crimes de estelionato e também por influência da letalidade policial, que teve uma queda menor para negros. Como esses pontos podem estar aumentando a sensação de insegurança?

A sensação de segurança não está associada ao crime contra a vida para a maior parte das pessoas. Como cidadão, qual é a possibilidade de você morrer vítima de uma ação de arma de fogo? Você pode até ter medo de ser vítima da violência letal, mas você sabe que a probabilidade disso acontecer, em geral, é baixa. A maior parte da população brasileira não associa uma coisa à outra. São Paulo é o maior exemplo disso. Porque houve uma redução de 80% dos homicídios ao longo dos últimos 20 anos, mas a sensação de insegurança da população hoje é pior do que era há duas décadas, quando os homicídios eram maiores.

A sensação de insegurança está associada a dois elementos que são centrais: primeiro, a segurança do ambiente, e aí os crimes contra o patrimônio importam muito. Você ter medo de ser roubado ou furtado porque está falando no celular andando na Avenida Paulista é algo muito provável e é algo real, você conhece gente que sofreu isso e o tempo todo está preocupado com isso. Segundo, a confiança no Estado. Você confiar que, se você levar uma demanda para o Estado porque foi vítima de alguma forma de crime, o Estado vai dar atenção e tentar solucionar o problema. 

Esses são os dois pilares das sensação de insegurança e onde o Estado brasileiro, em suas diferentes esferas, tem falhado. Tem falhado porque a gente vê o crescimento progressivo de todas as modalidades de crimes contra o patrimônio, que é o que mais gera insegurança, e porque a confiança nas instituições de Justiça de modo geral tende a ser muito baixa. Seja porque ela é percebida como violenta ou porque ela é percebida como incapaz de resolver um problema porque não tem recursos para investigar. Ou porque não tem pessoal qualificado para dar respostas para aquele crime.

A gente não resolve o problema da sensação de insegurança com redução da violência letal. A violência letal é um indicador muito importante de a gente reduzir, é importante para a gente entender o quão sólida é a nossa democracia, e esses elevados números da violência letal mostram como a gente não consegue consolidar a democracia de fato para as pessoas na periferia das grandes cidades. Os direitos que tem alguém de classe média que mora no centro expandido são completamente diferentes dos direitos civis que a população da periferia tem, o que é um ponto muito importante.

E isso está diretamente relacionado com a questão da letalidade policial, certo? Já que, como colocam no levantamento, é um indicador que teve queda, mas não de forma equânime.

Exato. A forma como o Estado atua e essa desigualdade da atuação do Estado, que muitas vezes se mostra seletiva, abordando mais pessoas negras do que brancas, matando mais pessoas negras do que brancas, é um indicador que leva as instituições policiais a serem percebidas como pouco confiáveis ou muito violentas. Tudo isso acaba contribuindo para essa sensação de insegurança que é elevadíssima em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a gente tem pesquisas frequentes sobre o fenômeno.

SÃO PAULO – Apesar da queda de homicídios observada em 2021, o crime organizado tem se espalhado agora por territórios que anteriormente estavam fora de disputa por grandes facções, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho. A nova dinâmica, contudo, não necessariamente indica que haverá queda nos assassinatos nos próximos anos. Isso é o que aponta em entrevista ao Estadão a pesquisadora Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Como consequência desse fenômeno, o Estado do Amazonas, por exemplo, viu as mortes subirem de 1.121, em 2020, para 1.670, no último ano. “Em 2019, houve uma redução significativa da violência letal no Amazonas, e agora a gente está falando que é o maior crescimento”, disse Samira. Atualmente, das 30 cidades mais violentas do País, 13 estão na Amazônia Legal, segundo levantamento divulgado pelo Fórum nesta terça-feira, 28. Confira abaixo a entrevista completa:

Pesquisadora não vê influência significativa das dinâmicas da pandemia sobre os dados de homicídio do ano passado. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Durante a apresentação do Anuário, falou-se que há uma migração dos homicídios para a região Norte e que alguns dos conflitos entre facções, que se intensificaram a partir de 2017, tiveram "vencedores", o que teria estabilizado as mortes em outros locais. Poderia comentar um pouco sobre essa dinâmica?

Houve uma guerra desencadeada por um grande conflito entre PCC (Primeiro Comando da Capital) e Comando Vermelho a partir de 2017, mas houve um processo de apaziguamento desses conflitos a partir de 2018. Isso aconteceu porque o conflito, por si só, custa caro. Ao manter esse nível tão elevado de conflito, a facção perde gente para a violência e chama atenção da polícia, o que acaba não fazendo sentido depois de um período muito longo. Outro motivo é que houve consolidação de algumas facções em determinados territórios. Quando se olha para o Acre hoje, o domínio é praticamente todo do Comando Vermelho. Quando se olha para o Pará, para a capital e a região metropolitana ou para Santarém, por exemplo, as áreas são dominadas pelo Comando Vermelho. 

Ao mesmo tempo, Altamira, que inclusive está entre as cidades com mais de 100 mil habitantes mais violentas do País, é um território que até hoje é cindido, porque se tem uma facção local, que é o Comando Classe A, que sempre atuou em parceria com o PCC, e o Comando Vermelho. A região é uma rota muito importante para o narcotráfico, então ali se tem um conflito frequente. No Amazonas, depois de uma aparente hegemonia do Comando Vermelho no Amazonas, em detrimento da FDN, há hoje em Manaus uma guerra declarada que está inclusive comprometendo a segurança de alguns territórios. Tem bairros inteiros de Manaus que estão conflagrados por conta do avanço da FDN, que está tentando reconquistar territórios que um dia foram dela e que o Comando Vermelho ocupou.

Tem esse movimento de que, em alguns lugares do Nordeste, as facções estão migrando, mas eu não diria que é só no Norte. Tem, por exemplo, o Piauí, que é um Estado que sempre foi tido como uma espécie de bolsão de segurança do Nordeste, porque tem taxas muito mais baixas do que o resto do País, e que hoje está sofrendo com a atuação do crime organizado, que vem do Maranhão, do Ceará, e que invadiu o território do Piauí. Eu diria, então, que a gente tem um espalhamento da atuação do crime organizado por territórios que antigamente não necessariamente eram disputados.

Mas essas relações estão relativamente estabilizadas no Norte ou há uma perspectiva de que isso pode explodir, assim como explodiu em 2017, por exemplo?

Isso é sempre possível no mundo do crime. Quando a mediação dos conflitos e a solução dos conflitos passa pela violência, isso é sempre uma possibilidade. É menos provável em um Estado como São Paulo porque a gente tem um monopólio (do PCC), mas em qualquer território é possível. Em 2019, houve uma redução significativa da violência letal no Amazonas, e agora a gente está falando que é o maior crescimento. Esse equilíbrio é muito frágil, muito tênue. 

Se a gente for olhar hoje as cidades mais violentas do País com mais de 100 mil habitantes, a maior parte delas estão no Nordeste. Se olhar, por exemplo, a taxa de violência letal na Bahia, é elevadíssima. Em Pernambuco, tem várias cidades com taxa de violência muito elevada, assim como em Sergipe. Essa disputa dos grupos criminosos e essa violência que decorre da atuação deles é algo que existe no País inteiro. Se for olhar hoje para o Rio Grande do Sul, é o Estado que tem o maior número de facções de que se tem notícia, segundo monitoramento da Abin (Agência Brasileira de Inteligência). A ação do crime organizado hoje está presente no País inteiro.

Os dados apontam que a quantidade de homicídios é a menor desde 2011. A pandemia também influiu nessa queda recente ou não teve tanto peso?

A princípio, a queda se deve mais a outros fatores. Em 2020, a gente já tinha a pandemia e (o número de homicídios) cresceu. A violência está caindo desde 2018, mas ela cai em 2018, cai em 2019, cresce um pouco em 2020, e volta a cair em 2021. Então, é difícil dizer. A gente até procurou algumas referências internacionais para tentar entender como é que a violência letal se manifestou em outros países do mundo. Tem vários lugares, várias cidades grandes dos Estados Unidos que mostraram crescimento da violência letal no último ano. Ao mesmo tempo, vários territórios e vários países latino americanos tiveram redução. Fica difícil atribuir à pandemia alguma mudança na dinâmica da violência letal. A gente consegue ver a influência da pandemia na violência doméstica, que cresce, uma mudança dos crimes patrimoniais.

Os estupros cresceram 4,9%, mas os estupros de vulnerável aumentaram em maior proporção: 5,9%. A que isso pode ser atribuído?

Isso pode ter uma explicação em grande medida associada à pandemia. Historicamente, vulneráveis representam maior percentual das vítimas estupro no Brasil. Dentro desses vulneráveis, a gente está falando principalmente de crianças e adolescentes, mas o conceito de vulnerável é um conceito ampliado. São pessoas incapazes de consentir. Então, pode ter criança, mas pode ter uma mulher adulta que eventualmente está alcoolizada e foi estuprada, ou uma pessoa com algum tipo de transtorno mental que fosse incapaz de consentir.

Mas a maior parte das vítimas de estupro de vulneráveis são crianças e adolescentes. E a gente teve o fechamento das escolas nos últimos dois anos praticamente. Então, é muito provável que crianças que estavam vulneráveis à violência sexual, porque a gente está falando de uma violência que acontece necessariamente dentro de casa, de autoria de conhecidos, estivessem mais expostas ao risco porque eram de fácil acesso ao agressor e estavam sem acesso à escola.

Isso é uma coisa muito importante: a escola é muitas vezes o lugar em que se identifica que essa criança está sofrendo violência, seja maus-tratos, seja violência sexual. E a violência sexual tem um efeito muito perverso na criança. Ela começa a fazer xixi na calça, tem queda no rendimento escolar, muda o comportamento. Então, o profissional de educação que convive com aquela criança percebe que tem algo diferente acontecendo em casa, que tem algo errado, e aí alerta a mãe. A gente está falando de uma violência que em 98% dos casos é de autoria de homens.

Com os fechamentos das escolas, essas crianças ficaram mais vulneráveis. As escolas voltaram a abrir no final do ano passado, muitas delas. A gente acredita tanto que as crianças ficaram mais expostas à violência sexual e que também a gente está tendo um movimento das escolas tendo de lidar com uma série de traumas e violências que essas crianças vivenciaram nesse período de pandemia. Como se não bastassem os traumas que decorrem das mortes por covid, muitas delas perderam parentes e tudo mais.

Um ponto colocado por vocês é que a queda dos homicídios não necessariamente indica que a sensação de insegurança tenha diminuído. Muito em conta dessa alta dos crimes de estelionato e também por influência da letalidade policial, que teve uma queda menor para negros. Como esses pontos podem estar aumentando a sensação de insegurança?

A sensação de segurança não está associada ao crime contra a vida para a maior parte das pessoas. Como cidadão, qual é a possibilidade de você morrer vítima de uma ação de arma de fogo? Você pode até ter medo de ser vítima da violência letal, mas você sabe que a probabilidade disso acontecer, em geral, é baixa. A maior parte da população brasileira não associa uma coisa à outra. São Paulo é o maior exemplo disso. Porque houve uma redução de 80% dos homicídios ao longo dos últimos 20 anos, mas a sensação de insegurança da população hoje é pior do que era há duas décadas, quando os homicídios eram maiores.

A sensação de insegurança está associada a dois elementos que são centrais: primeiro, a segurança do ambiente, e aí os crimes contra o patrimônio importam muito. Você ter medo de ser roubado ou furtado porque está falando no celular andando na Avenida Paulista é algo muito provável e é algo real, você conhece gente que sofreu isso e o tempo todo está preocupado com isso. Segundo, a confiança no Estado. Você confiar que, se você levar uma demanda para o Estado porque foi vítima de alguma forma de crime, o Estado vai dar atenção e tentar solucionar o problema. 

Esses são os dois pilares das sensação de insegurança e onde o Estado brasileiro, em suas diferentes esferas, tem falhado. Tem falhado porque a gente vê o crescimento progressivo de todas as modalidades de crimes contra o patrimônio, que é o que mais gera insegurança, e porque a confiança nas instituições de Justiça de modo geral tende a ser muito baixa. Seja porque ela é percebida como violenta ou porque ela é percebida como incapaz de resolver um problema porque não tem recursos para investigar. Ou porque não tem pessoal qualificado para dar respostas para aquele crime.

A gente não resolve o problema da sensação de insegurança com redução da violência letal. A violência letal é um indicador muito importante de a gente reduzir, é importante para a gente entender o quão sólida é a nossa democracia, e esses elevados números da violência letal mostram como a gente não consegue consolidar a democracia de fato para as pessoas na periferia das grandes cidades. Os direitos que tem alguém de classe média que mora no centro expandido são completamente diferentes dos direitos civis que a população da periferia tem, o que é um ponto muito importante.

E isso está diretamente relacionado com a questão da letalidade policial, certo? Já que, como colocam no levantamento, é um indicador que teve queda, mas não de forma equânime.

Exato. A forma como o Estado atua e essa desigualdade da atuação do Estado, que muitas vezes se mostra seletiva, abordando mais pessoas negras do que brancas, matando mais pessoas negras do que brancas, é um indicador que leva as instituições policiais a serem percebidas como pouco confiáveis ou muito violentas. Tudo isso acaba contribuindo para essa sensação de insegurança que é elevadíssima em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a gente tem pesquisas frequentes sobre o fenômeno.

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