Descaminhos de uma vocação


Quando eu era adolescente, além de dormir, ir à escola, tomar banho e comer, eu fazia quatro coisas todos os dias: jogava futebol, desenhava, lia e escrevia. Hoje, aos 40 anos, jogo bem menos futebol, mas escrevo uma coluna e um blog sobre ele; parei de desenhar, mas as artes visuais continuam a ser uma paixão cultivada, até mesmo dando aulas de crítica de arte; leio quase no mesmo ritmo, embora sem a mesma ansiedade; e escrevo todos os dias sem exceção. Quando eu tinha 14 anos, assisti a um filme de Coppola, O Selvagem da Motocicleta, e fiquei tão impressionado que virei o caderno escolar do avesso, abri e escrevi sobre ele um ensaio de dez páginas a mão. Exatos 26 anos depois, essa é minha profissão, rotina e deleite: escrever sobre obras de arte e ideias que me atraem.

Por danielpiza

No entanto, essa história que parece de predestinação não foi essa linha reta, não; teve muitos hiatos e ziguezagues. Alguém poderia ter visto aquele texto no lado contrário do caderno e dito "Eis o que você vai ser, um jornalista, um crítico cultural, um autor". Mas ninguém me disse, e nem eu mesmo me disse. Naqueles tempos, embora lesse tudo que pudesse de Dostoievski, Machado de Assis, Baudelaire e Bertrand Russell, eu queria mesmo era ser biólogo, era sair pelo mundo estudando a natureza como Darwin a bordo do Beagle ou Cousteau a bordo do Calipso - para citar duas outras leituras obsessivas. Aos 17 anos, diante da tarefa surrealista de escolher a carreira que seguiria, eu já tinha desistido da biologia; mas optei por Direito, talvez pensando em ser diplomata como Rosa, Cabral ou Vinicius, e nem preciso explicar que não morri de amores pelos códigos civil, penal e comercial...

Outros três anos - incluindo um estágio num escritório no centro da cidade - foram necessários até que a ficha caísse: fui atrás de um emprego em um jornal. E ele veio, em 1991, e minha segunda matéria foi uma resenha sobre a crítica literária de um homem que se dizia "acima de tudo um jornalista cultural", Edmund Wilson, em livro selecionado por outro ídolo juvenil, Paulo Francis. A vocação tardou, mas não falhou? Pode ser. De qualquer modo, fico sempre pensando em como tudo poderia ter ido para outro rumo; em como é tênue e contingente essa noção de que temos somente uma opção ou o fracasso. Eu poderia ter sido um bom biólogo ou diplomata; poderia estar igualmente satisfeito, quem sabe até ter enriquecido. Em nenhum momento me sinto como alguém que se "encontrou" em definitivo. Continuo à minha procura... Mas quando se acorda sempre animado para trabalhar - no meu caso, para ler e escrever sobre arte e futebol - e não se tem nem sequer um segundo de tédio ou vontade de desistir, é porque faz algum sentido, não?

Os dissabores da escolha por uma carreira de jornalista são muitos, não me entenda mal. O trabalho intelectual em geral é muito pouco valorizado no Brasil, onde raros escritores vivem apenas de livros, onde tradutores ganham menos que motoristas de táxi, onde empresas endinheiradas querem colaborações gratuitas. O jornalista é um ser sem passado: tudo que ele escreveu, todas as resenhas, reportagens e colunas, foi embora com o vento, e cada texto é julgado como se fosse o primeiro. Isso para não falar de quando ele lê ou escuta alguém repetindo como se fosse sua a opinião ou a informação que ele tinha escrito antes. De vez em quando, sou abordado por alguém que vem me dizer uma frase que ele leu num dos meus textos - e ele diz como se estivesse me dizendo algo novo... Encontrar uma opinião própria é mais difícil que encontrar um saci.

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Mas o quero dizer é que, apesar de tudo isso, sou grato ao jornalismo como ao ar. Não só porque ele me paga as contas, com algum conforto até superior ao que eu imaginava poder atingir, mas porque segue sendo uma fonte de prazer constante e potável. Permite conhecer tantos tipos de pessoas, do carvoeiro que um dia foi vaqueiro no sertão que Rosa descreveu até os famosos como Pelé, Fidel ou Stephen Jay Gould (outro biólogo que eu lia sem parar desde que conheci seu Darwin e os Enigmas da Vida). Permite ir aos mais diversos lugares do mundo, com acessos que um turista normal não teria, e em situações especiais: o Japão quando Koizumi foi eleito, a Alemanha e a África do Sul quando sediaram Copas, a China quando sediou as Olimpíadas. Cobri bienais em Veneza e Nova York, estive na Rússia no centenário de Pushkin, fui para a Antártica, refiz o percurso de Euclides da Cunha na Amazônia. E, mais importante, o jornalismo permite levar informações e reflexões às pessoas. Não me importo muito com elogios; fico mais feliz quando alguém me conta que leu Milton Hatoum e Ian McEwan porque indiquei ou que "redescobriu" Machado de Assis por causa da biografia que escrevi dele.

Nunca fui conservador, sempre fui mais aventureiro que rotineiro, e o jornalismo atendeu ao meu modo de ser como poucas outras profissões poderiam. Sim, tenho minhas invejas, como todo mundo, mas não de quem ganha mais ou é mais famoso: tenho inveja de vidas como a de Joseph Conrad, que viajou os sete mares do mundo e, aos 38 anos, parou e se sentou para escrever livros como Coração das Trevas, Lorde Jim e Nostromo. Conrad, por sinal, é outra paixão descoberta antes da vida adulta e, ao contrário do que diz o senso comum, ela não arrefeceu em nenhum momento. Como de Machado, gosto de Conrad ainda mais hoje. Mas, não sei bem como dizer, uma vida dessas - de tantas experiências reais, de aventuras e aprendizados muitas vezes trágicos - é uma vida que acontece, dependendo mais das circunstâncias do que da escolha. E mesmo uma vida mais estável, como as de Machado ou Proust, dão material rico para qualquer escritor. No caso, ambos tiveram uma experiência social bem mais rica do que às vezes se imagina por suas biografias. E tenho tido minha cota de viagens e coragens.

O jornalismo esportivo veio mais tarde, mas já em 1995 lá estava eu na capa do caderno de esportes da Folha anunciando a reedição das crônicas de futebol de Nelson Rodrigues por Ruy Castro. E em 1997 defendendo Ronaldo de seus críticos, até que em 2001 tive o privilégio de contar em primeira mão que ele voltaria e muito bem (a Copa de 2002 não me deixa mentir). O futebol me abre contatos com pessoas de diferentes classes, idades e regiões e me possibilita ver o Brasil por outro ângulo, bastante educativo, ainda que tão menosprezado por intelectuais. Meu livro mais vendido até hoje, aliás, é um perfil de Ayrton Senna, publicado em 2003, em que adotei uma narrativa tão objetiva como ele guiando na pista e, ao mesmo tempo, mostrei que ele era um tipo de ídolo novo, uma tradução do Brasil e seus sonhos no período. Em tudo que faço, tento sempre "sujar" os gêneros, as fronteiras: o jornalismo esportivo pode assumir tons de jornalismo cultural; um ensaio sobre Picasso pode vir na forma de um romance epistolográfico juvenil; uma biografia pode descrever uma vida e também interpretar uma obra; uma resenha de livro pode virar uma crônica sobre os valores atuais; um livro de reportagem pode ter toques de opinião e ensaismo, etc.

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Aquele menino que jogava futebol, desenhava, lia e escrevia - quando os colegas se dividiam entre os esportivos, os artísticos e os estudiosos - é o que continuo a ser. Sem nunca saber direito o que queria ser, me tornei aquilo que parecia nascido para ser. Continuo em busca do que ainda não fui, claro. Mas tenho a impressão de que morrerei fazendo uma resenha de algum filme ou livro que me impressionou muito.

(Depoimento à revista Sesc E)

No entanto, essa história que parece de predestinação não foi essa linha reta, não; teve muitos hiatos e ziguezagues. Alguém poderia ter visto aquele texto no lado contrário do caderno e dito "Eis o que você vai ser, um jornalista, um crítico cultural, um autor". Mas ninguém me disse, e nem eu mesmo me disse. Naqueles tempos, embora lesse tudo que pudesse de Dostoievski, Machado de Assis, Baudelaire e Bertrand Russell, eu queria mesmo era ser biólogo, era sair pelo mundo estudando a natureza como Darwin a bordo do Beagle ou Cousteau a bordo do Calipso - para citar duas outras leituras obsessivas. Aos 17 anos, diante da tarefa surrealista de escolher a carreira que seguiria, eu já tinha desistido da biologia; mas optei por Direito, talvez pensando em ser diplomata como Rosa, Cabral ou Vinicius, e nem preciso explicar que não morri de amores pelos códigos civil, penal e comercial...

Outros três anos - incluindo um estágio num escritório no centro da cidade - foram necessários até que a ficha caísse: fui atrás de um emprego em um jornal. E ele veio, em 1991, e minha segunda matéria foi uma resenha sobre a crítica literária de um homem que se dizia "acima de tudo um jornalista cultural", Edmund Wilson, em livro selecionado por outro ídolo juvenil, Paulo Francis. A vocação tardou, mas não falhou? Pode ser. De qualquer modo, fico sempre pensando em como tudo poderia ter ido para outro rumo; em como é tênue e contingente essa noção de que temos somente uma opção ou o fracasso. Eu poderia ter sido um bom biólogo ou diplomata; poderia estar igualmente satisfeito, quem sabe até ter enriquecido. Em nenhum momento me sinto como alguém que se "encontrou" em definitivo. Continuo à minha procura... Mas quando se acorda sempre animado para trabalhar - no meu caso, para ler e escrever sobre arte e futebol - e não se tem nem sequer um segundo de tédio ou vontade de desistir, é porque faz algum sentido, não?

Os dissabores da escolha por uma carreira de jornalista são muitos, não me entenda mal. O trabalho intelectual em geral é muito pouco valorizado no Brasil, onde raros escritores vivem apenas de livros, onde tradutores ganham menos que motoristas de táxi, onde empresas endinheiradas querem colaborações gratuitas. O jornalista é um ser sem passado: tudo que ele escreveu, todas as resenhas, reportagens e colunas, foi embora com o vento, e cada texto é julgado como se fosse o primeiro. Isso para não falar de quando ele lê ou escuta alguém repetindo como se fosse sua a opinião ou a informação que ele tinha escrito antes. De vez em quando, sou abordado por alguém que vem me dizer uma frase que ele leu num dos meus textos - e ele diz como se estivesse me dizendo algo novo... Encontrar uma opinião própria é mais difícil que encontrar um saci.

Mas o quero dizer é que, apesar de tudo isso, sou grato ao jornalismo como ao ar. Não só porque ele me paga as contas, com algum conforto até superior ao que eu imaginava poder atingir, mas porque segue sendo uma fonte de prazer constante e potável. Permite conhecer tantos tipos de pessoas, do carvoeiro que um dia foi vaqueiro no sertão que Rosa descreveu até os famosos como Pelé, Fidel ou Stephen Jay Gould (outro biólogo que eu lia sem parar desde que conheci seu Darwin e os Enigmas da Vida). Permite ir aos mais diversos lugares do mundo, com acessos que um turista normal não teria, e em situações especiais: o Japão quando Koizumi foi eleito, a Alemanha e a África do Sul quando sediaram Copas, a China quando sediou as Olimpíadas. Cobri bienais em Veneza e Nova York, estive na Rússia no centenário de Pushkin, fui para a Antártica, refiz o percurso de Euclides da Cunha na Amazônia. E, mais importante, o jornalismo permite levar informações e reflexões às pessoas. Não me importo muito com elogios; fico mais feliz quando alguém me conta que leu Milton Hatoum e Ian McEwan porque indiquei ou que "redescobriu" Machado de Assis por causa da biografia que escrevi dele.

Nunca fui conservador, sempre fui mais aventureiro que rotineiro, e o jornalismo atendeu ao meu modo de ser como poucas outras profissões poderiam. Sim, tenho minhas invejas, como todo mundo, mas não de quem ganha mais ou é mais famoso: tenho inveja de vidas como a de Joseph Conrad, que viajou os sete mares do mundo e, aos 38 anos, parou e se sentou para escrever livros como Coração das Trevas, Lorde Jim e Nostromo. Conrad, por sinal, é outra paixão descoberta antes da vida adulta e, ao contrário do que diz o senso comum, ela não arrefeceu em nenhum momento. Como de Machado, gosto de Conrad ainda mais hoje. Mas, não sei bem como dizer, uma vida dessas - de tantas experiências reais, de aventuras e aprendizados muitas vezes trágicos - é uma vida que acontece, dependendo mais das circunstâncias do que da escolha. E mesmo uma vida mais estável, como as de Machado ou Proust, dão material rico para qualquer escritor. No caso, ambos tiveram uma experiência social bem mais rica do que às vezes se imagina por suas biografias. E tenho tido minha cota de viagens e coragens.

O jornalismo esportivo veio mais tarde, mas já em 1995 lá estava eu na capa do caderno de esportes da Folha anunciando a reedição das crônicas de futebol de Nelson Rodrigues por Ruy Castro. E em 1997 defendendo Ronaldo de seus críticos, até que em 2001 tive o privilégio de contar em primeira mão que ele voltaria e muito bem (a Copa de 2002 não me deixa mentir). O futebol me abre contatos com pessoas de diferentes classes, idades e regiões e me possibilita ver o Brasil por outro ângulo, bastante educativo, ainda que tão menosprezado por intelectuais. Meu livro mais vendido até hoje, aliás, é um perfil de Ayrton Senna, publicado em 2003, em que adotei uma narrativa tão objetiva como ele guiando na pista e, ao mesmo tempo, mostrei que ele era um tipo de ídolo novo, uma tradução do Brasil e seus sonhos no período. Em tudo que faço, tento sempre "sujar" os gêneros, as fronteiras: o jornalismo esportivo pode assumir tons de jornalismo cultural; um ensaio sobre Picasso pode vir na forma de um romance epistolográfico juvenil; uma biografia pode descrever uma vida e também interpretar uma obra; uma resenha de livro pode virar uma crônica sobre os valores atuais; um livro de reportagem pode ter toques de opinião e ensaismo, etc.

Aquele menino que jogava futebol, desenhava, lia e escrevia - quando os colegas se dividiam entre os esportivos, os artísticos e os estudiosos - é o que continuo a ser. Sem nunca saber direito o que queria ser, me tornei aquilo que parecia nascido para ser. Continuo em busca do que ainda não fui, claro. Mas tenho a impressão de que morrerei fazendo uma resenha de algum filme ou livro que me impressionou muito.

(Depoimento à revista Sesc E)

No entanto, essa história que parece de predestinação não foi essa linha reta, não; teve muitos hiatos e ziguezagues. Alguém poderia ter visto aquele texto no lado contrário do caderno e dito "Eis o que você vai ser, um jornalista, um crítico cultural, um autor". Mas ninguém me disse, e nem eu mesmo me disse. Naqueles tempos, embora lesse tudo que pudesse de Dostoievski, Machado de Assis, Baudelaire e Bertrand Russell, eu queria mesmo era ser biólogo, era sair pelo mundo estudando a natureza como Darwin a bordo do Beagle ou Cousteau a bordo do Calipso - para citar duas outras leituras obsessivas. Aos 17 anos, diante da tarefa surrealista de escolher a carreira que seguiria, eu já tinha desistido da biologia; mas optei por Direito, talvez pensando em ser diplomata como Rosa, Cabral ou Vinicius, e nem preciso explicar que não morri de amores pelos códigos civil, penal e comercial...

Outros três anos - incluindo um estágio num escritório no centro da cidade - foram necessários até que a ficha caísse: fui atrás de um emprego em um jornal. E ele veio, em 1991, e minha segunda matéria foi uma resenha sobre a crítica literária de um homem que se dizia "acima de tudo um jornalista cultural", Edmund Wilson, em livro selecionado por outro ídolo juvenil, Paulo Francis. A vocação tardou, mas não falhou? Pode ser. De qualquer modo, fico sempre pensando em como tudo poderia ter ido para outro rumo; em como é tênue e contingente essa noção de que temos somente uma opção ou o fracasso. Eu poderia ter sido um bom biólogo ou diplomata; poderia estar igualmente satisfeito, quem sabe até ter enriquecido. Em nenhum momento me sinto como alguém que se "encontrou" em definitivo. Continuo à minha procura... Mas quando se acorda sempre animado para trabalhar - no meu caso, para ler e escrever sobre arte e futebol - e não se tem nem sequer um segundo de tédio ou vontade de desistir, é porque faz algum sentido, não?

Os dissabores da escolha por uma carreira de jornalista são muitos, não me entenda mal. O trabalho intelectual em geral é muito pouco valorizado no Brasil, onde raros escritores vivem apenas de livros, onde tradutores ganham menos que motoristas de táxi, onde empresas endinheiradas querem colaborações gratuitas. O jornalista é um ser sem passado: tudo que ele escreveu, todas as resenhas, reportagens e colunas, foi embora com o vento, e cada texto é julgado como se fosse o primeiro. Isso para não falar de quando ele lê ou escuta alguém repetindo como se fosse sua a opinião ou a informação que ele tinha escrito antes. De vez em quando, sou abordado por alguém que vem me dizer uma frase que ele leu num dos meus textos - e ele diz como se estivesse me dizendo algo novo... Encontrar uma opinião própria é mais difícil que encontrar um saci.

Mas o quero dizer é que, apesar de tudo isso, sou grato ao jornalismo como ao ar. Não só porque ele me paga as contas, com algum conforto até superior ao que eu imaginava poder atingir, mas porque segue sendo uma fonte de prazer constante e potável. Permite conhecer tantos tipos de pessoas, do carvoeiro que um dia foi vaqueiro no sertão que Rosa descreveu até os famosos como Pelé, Fidel ou Stephen Jay Gould (outro biólogo que eu lia sem parar desde que conheci seu Darwin e os Enigmas da Vida). Permite ir aos mais diversos lugares do mundo, com acessos que um turista normal não teria, e em situações especiais: o Japão quando Koizumi foi eleito, a Alemanha e a África do Sul quando sediaram Copas, a China quando sediou as Olimpíadas. Cobri bienais em Veneza e Nova York, estive na Rússia no centenário de Pushkin, fui para a Antártica, refiz o percurso de Euclides da Cunha na Amazônia. E, mais importante, o jornalismo permite levar informações e reflexões às pessoas. Não me importo muito com elogios; fico mais feliz quando alguém me conta que leu Milton Hatoum e Ian McEwan porque indiquei ou que "redescobriu" Machado de Assis por causa da biografia que escrevi dele.

Nunca fui conservador, sempre fui mais aventureiro que rotineiro, e o jornalismo atendeu ao meu modo de ser como poucas outras profissões poderiam. Sim, tenho minhas invejas, como todo mundo, mas não de quem ganha mais ou é mais famoso: tenho inveja de vidas como a de Joseph Conrad, que viajou os sete mares do mundo e, aos 38 anos, parou e se sentou para escrever livros como Coração das Trevas, Lorde Jim e Nostromo. Conrad, por sinal, é outra paixão descoberta antes da vida adulta e, ao contrário do que diz o senso comum, ela não arrefeceu em nenhum momento. Como de Machado, gosto de Conrad ainda mais hoje. Mas, não sei bem como dizer, uma vida dessas - de tantas experiências reais, de aventuras e aprendizados muitas vezes trágicos - é uma vida que acontece, dependendo mais das circunstâncias do que da escolha. E mesmo uma vida mais estável, como as de Machado ou Proust, dão material rico para qualquer escritor. No caso, ambos tiveram uma experiência social bem mais rica do que às vezes se imagina por suas biografias. E tenho tido minha cota de viagens e coragens.

O jornalismo esportivo veio mais tarde, mas já em 1995 lá estava eu na capa do caderno de esportes da Folha anunciando a reedição das crônicas de futebol de Nelson Rodrigues por Ruy Castro. E em 1997 defendendo Ronaldo de seus críticos, até que em 2001 tive o privilégio de contar em primeira mão que ele voltaria e muito bem (a Copa de 2002 não me deixa mentir). O futebol me abre contatos com pessoas de diferentes classes, idades e regiões e me possibilita ver o Brasil por outro ângulo, bastante educativo, ainda que tão menosprezado por intelectuais. Meu livro mais vendido até hoje, aliás, é um perfil de Ayrton Senna, publicado em 2003, em que adotei uma narrativa tão objetiva como ele guiando na pista e, ao mesmo tempo, mostrei que ele era um tipo de ídolo novo, uma tradução do Brasil e seus sonhos no período. Em tudo que faço, tento sempre "sujar" os gêneros, as fronteiras: o jornalismo esportivo pode assumir tons de jornalismo cultural; um ensaio sobre Picasso pode vir na forma de um romance epistolográfico juvenil; uma biografia pode descrever uma vida e também interpretar uma obra; uma resenha de livro pode virar uma crônica sobre os valores atuais; um livro de reportagem pode ter toques de opinião e ensaismo, etc.

Aquele menino que jogava futebol, desenhava, lia e escrevia - quando os colegas se dividiam entre os esportivos, os artísticos e os estudiosos - é o que continuo a ser. Sem nunca saber direito o que queria ser, me tornei aquilo que parecia nascido para ser. Continuo em busca do que ainda não fui, claro. Mas tenho a impressão de que morrerei fazendo uma resenha de algum filme ou livro que me impressionou muito.

(Depoimento à revista Sesc E)

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