O decreto do presidente Jair Bolsonaro que facilita porte de armas de fogo para uma série de 19 categorias, entre elas políticos, caminhoneiros e moradores de área rural - e não apenas para um grupo restrito, como foi anunciado anteriormente -, é questionado por juristas e se tornou alvo de ação no Supremo Tribunal Federal (STF). O principal argumento é de que, em vez de regulamentar o porte, a regra ataca diretamente o Estatuto do Desarmamento, lei federal de 2003 que foi aprovada pelo Congresso.
Ao anunciar o Decreto 9.785, na terça-feira, Bolsonaro afirmou que seriam incluídos atiradores esportivos, caçadores e colecionadores (CACs), além de praças das Forças Armadas - o que daria cerca de 255 mil pessoas. O texto final, entretanto, que só foi publicado nesta quarta-feira, 8, no Diário Oficial da União, contempla diversas outras categorias - e cerca de 19,1 milhões de pessoas poderão ter acesso facilitado ao porte, segundo estimativa do Instituto Sou da Paz. O texto também permite que crianças e adolescentes pratiquem tiro desportivo sem aval judicial.
Entre os incluídos estão advogados, agentes penitenciários, conselheiros tutelares e jornalistas que atuam em cobertura policial. Nesta quarta, Bolsonaro voltou a defender essa política em evento no Rio. “Tudo o que podia ser concedido por decreto, nós o fizemos.” Veja aqui a íntegra do decreto.
Para o jurista Wálter Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e pesquisador de Segurança Pública, porém, seria ilegal estabelecer no decreto quais profissões têm direito ao porte. “Ao relacionar as profissões, a obrigação de demonstrar a efetiva necessidade da arma (critério estabelecido no Estatuto do Desarmamento) fica afastada”, afirma. O outro ponto ilegal, segundo ele, seria a presunção de veracidade na hora de declarar necessidade de ter arma. “No Direito brasileiro, só atos da administração (pública) têm presunção de veracidade. Aumentando isso, (o presidente) passa do poder regulador dele.”
“Esse decreto não regulamenta, ele cria regras novas”, critica o professor Cláudio Pereira de Souza Neto, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Direito Processual Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o professor Cláudio Langroiva também afirma que Bolsonaro não poderia se valer de decreto para tratar de temas tão abrangentes, como venda de armas e munição. Segundo ele, nos pontos em que o decreto contraria o Estatuto, a lei deve prevalecer.
“Esse tipo de ação é infeliz porque toma um papel do Legislativo”, diz Langroiva. “Essas incompatibilidades, infelizmente, muito provavelmente acabarão decididas no Judiciário.”
Apoiador do governo, o senador Major Olímpio (PSL-SP) discordou. “O porte de arma continua sendo regrado pelo Estatuto do Desarmamento. Eu vi como um avanço (a retirada da justificativa de necessidade).”
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) informou que vai realizar estudos e análises sobre os aspectos jurídicos envolvidos no decreto. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) defendeu, em nota, a revogação do trecho que permite aos profissionais de imprensa portarem arma.
Já o presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de São Paulo (Aprosoja), Gustavo Chavaglia, disse que o decreto vai ajudar os produtores rurais a se defenderem de roubos e furtos.
Em nota, a Sociedade Rural Brasileira disse que o investimento em inteligência e patrulhamento policial são a maneira "mais eficaz de combate a insegurança nas áreas rurais do País". A entidade reconhece, no entanto, que "decretos que oferecem aos proprietários acesso a armas de fogo e excludente de ilicitude possuem adeptos dentro do setor e podem ter efeito paliativo".
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O partido Rede Sustentabilidade entrou com uma ação no STF contra o decreto. Foi a 29.ª vez que o Supremo Tribunal Federal foi acionado para barrar medidas do governo Bolsonaro, aponta levantamento feito pelo Estado.
Para a Rede, o decreto é um “verdadeiro libera geral” e “põe em risco a segurança de toda a sociedade e a vida das pessoas”. “Não houve discussão com a sociedade, consulta pública do decreto ou qualquer outra medida afim”, afirma. Ainda segundo o partido, a regra vai favorecer “alguns poucos abastados que podem pagar para se armar até os dentes”. “Os pobres continuarão desarmados e à mercê da violência urbana, porque o governo não possui para a maior parte da sociedade nenhum projeto de segurança pública”, diz.
A consultoria legislativa da Câmara dos Deputados também prepara estudo de constitucionalidade do decreto. Segundo o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o pedido é padrão. “Para todo decreto presidencial, há uma análise de constitucionalidade”, disse.
Ainda nesta quarta-feira, em audiência na Câmara, o ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, se eximiu de dar explicações, apesar de subscrever o decreto. “É política do presidente da República e corresponde a uma promessa eleitoral”, afirmou. O ministro indicou, ainda, que houve “divergências”, quando questionado se assinou sem avalizar o conteúdo.
No Senado, o líder da minoria, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), apresentou um projeto de decreto legislativo que cancela os efeitos do decreto presidencial. E o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, rebateu os argumentos contrários. “Todo mundo que votou em Bolsonaro votou sabendo da sua posição de total respeito à vida, de garantir um instrumento, que são as armas de fogo, que hoje não existem nas mãos dos cidadãos ordeiros, para que pudessem defender suas vidas, famílias, propriedades.” / ANA PAULA NIEDERAUER, BRENO PIRES, BRUNO RIBEIRO, CAMILA TURTELLI, DENISE LUNA, DANIEL WETERMAN, FELIPE RESK, JULIANA DIÓGENES, LUCI RIBEIRO, RAFAEL MORAES MOURA e TULIO KRUSE