O formato da governança da Internet é sempre tema de debates e confronto de opiniões, especialmente em tempos assim difíceis e complicados. Afinal, de que meios a sociedade deveria lançar mão para evitar os danos e riscos a que estamos expostos, enquanto preserva a civilidade e a volta da boa discussão de ideias?Tivemos há quatro dias um interessante painel sobre o jornalismo neste cenário de muita tecnologia, concentração de poder e crescente polarização da sociedade.Como escapar do caos e da barbárie que parecem nos espreitar?
Nesse debate é importante que se preservem os conceitos que fizeram da Internet o sucesso que é. Estes princípios eram presentes na definição de sua arquitetura, como inter-rede aberta, livre e sem controle central, e cujo único requisito para a adesão é que as redes ingressantes implementem os protocolos técnicos definidos e adotem identificadores coordenados, para a funcionalidade do todo. Esse conjunto de protocolos é o TCP/IP, definido por Vint Cerf e Bob Kahn e oficialmente implantado em toda a Arpanet em 1 de janeiro de 1983.
É inquestionável a solidez técnica da solução adotada em 1983, haja vista sua resiliência e a capacidade de suportar um incremento de milhões de vezes na carga de trabalho e capacidade de comunicação. Sobre essa estrutura aplicações são livremente criadas e oferecidas. Algumas, como a Web, ganharam tanta expressão que por vezes são confundidas com a Internet em si. Outras provêm a seus usuários facilidades e atrativos que os mantêm em sua órbita, fazendo-os esquecer da riqueza que também existe fora dos muros daqueles jardins.
Assim, há que se distinguir o que é a internet em essẽncia, cujos princípios e conceitos devem ser preservados e defendidos, das construções sobre ela, que prometem recursos e conforto, mas que também são fonte de abusos, de riscos aos usuários, além de representarem uma grande concentração de poder. Na ânsia de aplacar o que nos aflige, cuidemos em não propor “emenda que saia pior que o soneto”.
Voltando ao que um amigo chamou de a belle époque da Internet, Jon Postel, um pioneiro da rede, enunciou em 1980 um princípio de robustez para o TCP/IP que acabou conhecido como “a lei de Postel”: "para a rede se manter sólida e funcional, devemos ser conservadores no que fazemos, e liberais no que aceitamos dos demais”. É a própria definição de comportamento tolerante e sensato. Extrapolemos a “lei de Postel” para o comportamento dos usuários da rede e resultará que, se é certo que receberemos coisas indesejadas, falsas, ofensivas, até perigosas, de nosso lado, porém, deveríamos sempre agir de forma ética e contida.
Os fados, os ventos, as redes sociais, os ingressantes encantados com o poder de voz que a rede lhes trouxe, fizeram com que a sábia mensagem de Postel não apenas fosse praticamente esquecida, mas que seu oposto ganhasse espaço e prevalência. A moda hoje é falar desbragadamente sobre tudo e para todos, esperando que nossa voz ecoe e tenha o impacto que gostaríamos, ao mesmo tempo em que nos irritamos com o que recebemos, especialmente se confronta nossa posição. Somos zelosos em não aceitar o que chega até nós, e liberais no que enviamos aos demais. Prezamos nossa liberdade para falar o que for, para qualquer um, mas nos sentimos ofendidos e buscamos impedir que nos chegue o que não agrada. É esse mecanismo que inibe o debate de idéias e isola osindivíduos atrás de muros e ilhas sociais radicalizadas.
É a “anti lei de Postel”, que trabalha pela barbárie. Recuperemos o sábio e construtivo espírito da lei original.