Diferentemente de lança-perfume, maconha ou cocaína, as drogas do momento não estão nas mãos dos traficantes. Elas podem - e são - compradas em qualquer esquina. B-25, gás de buzina ou isqueiro, Special K e chá de chumbo e de "fita" fazem parte de uma lista de novos produtos que estão sendo livremente usados por adolescentes de São Paulo. São substâncias químicas vendidas licitamente e utilizadas pela indústria ou presentes em remédios para animais, pilhas, fitas cassete ou de vídeo, isqueiros e até em brinquedos. Altamente tóxicas, elas se tornam drogas perigosas nas mãos dos jovens. Algumas são inaladas ou ingeridas em sua composição original. Outras, fabricadas de forma caseira. ?Na sala de aula mesmo? Como estão "camufladas" em diversos produtos, os entorpecentes passam despercebidos até pela polícia e já chegaram às escolas, principalmente as particulares, aterrorizando pais e professores. "Usamos na sala de aula mesmo. A gente derrama o líquido na manga da blusa, e os professores não percebem. Nossos pais nem sonham. A sensação é igual à do lança-perfume, você fica tonto e meio aéreo. Só que o efeito é pior, parece que toma a cabeça", diz Marcos*, de 16 anos, estudante do 3º ano do ensino médio, que na última quinta-feira comprava com outros dois colegas 240 mililitros de cola para acrílico (conhecida como B-25), em uma loja na Rua Augusta. Desmaios Os três vestiam o uniforme de um dos colégios mais tradicionais da cidade, que fica perto da Avenida Paulista (*Os nomes citados são fictícios, para preservar a identidade dos adolescentes). "A gente cheira para desbaratear da aula. É só farra, mas eu já me senti mal e, uma vez, perdi os sentidos", diz Rodrigo, de 19 anos, colega de Marcos, responsável pela compra da substância, vendida a maiores de 18 anos. Segundo os garotos, pelo menos duas meninas já desmaiaram sob o efeito da droga, que é dividida entre os alunos. "Toda hora uma passa mal, e a gente tem que socorrer", diz Marcelo, 16 anos. "Elas são burras, não sabem usar o bagulho e ficam loucas." Riscos "As novas drogas preocupam porque não se sabe qual o seu limite e, portanto, o risco de overdose é alto", diz o psiquiatra Cláudio Jerônimo da Silva, coordenador do programa Einstein de Tratamento de Dependência de Álcool e Drogas e professor do curso de especialização em dependência química, da Escola Paulista de Medicina. Há um mês, um aluno do 3º ano do ensino médio de uma escola no bairro do Itaim, na zona sul, desmaiou em sala de aula, depois de inalar B-25. Outros cinco confessaram usar a droga com freqüência, e um deles foi expulso por estar passando o entorpecente para os outros garotos. Em uma escola da Vila Olímpia, pelo menos quatro alunos passaram mal, há cerca de duas semanas, e tiveram de ser atendidos no Centro de Assistência Toxicológica do Instituto da Criança e Hospital das Clínicas (Ceatox). Intoxicação "Percebemos nos últimos três anos um grande aumento no uso de drogas nas escolas. Mas o que está acontecendo agora assusta porque são substâncias lícitas, que os adolescentes compram e usam sem ter noção dos riscos que correm", afirma o médico Anthony Wong, diretor do Ceatox. "Estamos recebendo consultas de pais e professores sobre o que fazer em casos de intoxicação por inalação de gás propanobutano, do B-25 ou mesmo da ketamina praticamente todos os dias. E nós só estamos vendo a ponta do iceberg. Isso porque, em geral, as famílias e as escolas só procuram o médico quando percebem que não podem resolver o problema sozinhos. A droga ainda é um tabu." Velocidade De acordo com o psiquiatra Silva, do Einstein, os inalantes e as substâncias tidas como lícitas são, atualmente, a grande preocupação da comunidade acadêmica. "Elas começam a ser usadas para só depois serem pesquisadas, tamanha a velocidade com que surgem no mercado e rapidamente conquistam os adolescentes", afirma Silva. "Eles criam uma relação positiva com essas drogas, por serem lícitas. Os jovens as colocam na mesma categoria do álcool, muitas vezes aceito pelos pais, e acham que tudo bem usá-las. Nós, médicos, ficamos com a sensação de estarmos atrás do prejuízo." Facilidade A facilidade com que os garotos adquirem este e outros produtos entorpecentes choca. O gás butano, altamente tóxico, é encontrado em isqueiros e em cornetas vendidas em bancas e lojas de brinquedos. Substâncias entorpecentes presentes em fitas cassete e de vídeo, pilhas e até radiografias também estão sendo usadas como drogas. No caso do B-25, o líquido é vendido em um tubo de plástico branco, sem rótulo. O tubo de 120ml custa apenas R$ 6,00. "Só vendemos para maiores de 18 anos", diz a gerente administratva de uma loja de materiais plásticos, que não quis se identificar. "Suspeitamos que eles usam como entorpecente, mas não podemos fazer nada fora daqui." Substância liberada Em outubro, a loja foi investigada pelo Grupo de Apoio e Proteção à Escola (Gape), ligado ao Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), da Polícia Civil. "Apreendemos 10 frascos do líquido. O laudo técnico, porém , só apontou a presença de diclorometano, substância liberada", diz o delegado titular do Gape, Eduardo Narde. "Não há o que fazer neste caso." Na ficha técnica do produto, obtida pelo Estado, no entanto, consta cloreto de metileno, incluído pela Anvisa na lista de "insumos químicos utilizados como precursores para fabricação e síntese de entorpecentes e/ou psicotrópicos", ao lado de substâncias já reconhecidamente utilizadas como drogas, como o éter etílico, presente no lança-perfume, e o tolueno, encontrado na cola de sapateiro. O chamado Special K, droga ainda mais forte, que pode causar dependência e levar à morte, é vendida em lojas de produtos para veterinários e só pode ser comprada com a apresentação de uma receita médica. A realidade é outra Mas não é assim que acontece. Na semana passada, a reportagem do Estado esteve em uma loja no Centro e adquiriu um frasco de 10ml da marca Dopalen, sem apresentar qualquer receita ou documento. "Isso só é vendido com prescrição médica, mas abrimos algumas exceções", disse um funcionário da loja. "A facilidade de acesso é um fator determinante para o vício", diz o psiquiatra Cláudio Jerônimo da Silva, do Einstein. "O perfil desses garotos que usam as chamadas drogas lícitas é muito diferente daquele que busca maconha na boca de fumo. Eles têm medo e só usam estas drogas porque estão ali, fáceis e, mais importante, liberadas. O perigo é que, quanto mais expostos a estas substâncias entorpecentes, mais riscos eles correm de se tornarem verdadeiros dependentes químicos". Quem compra Ao contrário do que se imagina, o perfil dos adolescentes que usam as chamadas drogas "lícitas" é muito diferente daqueles que vão buscar maconha na boca-de-fumo. Normalmente, eles são os mesmos que comem cereais matinais, antes de ir para a escola, e praticam esportes à tarde. É exatamente essa característica que assusta os pais, deixando professores perdidos e especialistas preocupados. "Só nos últimos dois meses, atendi quatro casos de jovens, entre 12 e 14 anos, que inalaram B-25. Um deles, desmaiou após derramar o líquido embaixo da língua. No carnaval, socorri seis menores que haviam inalado o gás butano presente em uma corneta. Em um dos casos, um garoto de 22 anos entrou em coma, depois de usar a droga junto com álcool", diz o psiquiatra Gilberto Henrique Fleury, especialista em dependëncia química. "O mais alarmante, no entanto, é o fato de que todos eram adolescentes de famílias bem estruturadas de classe média-alta e que praticavam esportes.? ?Febre? ?Estamos lidando com o problema de forma deficitária. Não temos um esboço de medidas que nos tranqüilize", diz a educadora Helena Maria Becker Albertani, que assessora escolas no combate às drogas. "Já tive duas solicitações de escolas que não sabiam como lidar com estas novas drogas, principalmente o B-25 e a ketamina. Até o ano passado, se pensava que os inalantes eram coisa de meninos de rua, mas os casos mais recentes mostram que eles não fazem mais distinção de classe social." "Os inalantes são uma febre, porque são drogas lícitas e, por isso, não são vistas pelos adolescentes como algo perigoso ou problemático. E como não há muita informação sobre elas, fica quase impossível para os professores identificarem o problema", diz a psicóloga Ruth Broggin, responsável pelo setor de orientação educacional da escola Lourenço Castanho. "Repreender, no entanto, não adianta. Temos de abrir o debate e dar espaço para o diálogo entre alunos, pais e professores." Debate Na escola de ensino fundamental e médio Nossa Senhora das Graças, o assunto tem sido discutido abertamente entre alunos, pais e professores. "O mais difícil foi admitir que o problema existe, como em qualquer escola. A partir daí, contratamos uma assessoria psicopedagógica para recapacitar nossos professores e funcionários. O segundo passo foi reunir os pais e abrir o jogo com eles. Hoje, nos antecipamos ao problema com reuniões freqüentes sobre as drogas", afirma Eduardo Roberto da Silva, diretor da escola. "Se os adolescentes percebem que têm espaço para falar, eles conversam abertamente", afirma a professora de filosofia do Albert Sabin, Helena Millanezi. "Eles têm fascínio pela droga porque é algo desconhecido. Nosso papel não é discutir se é ou não ?legal?, mas até que ponto o ?legal? vale a pena."