Memória, gente e lugares

Adeus, Maestro


Miguel Cidras foi responsável por grande parte dos arranjos das músicas de Raul Seixas

Por Edmundo Leite
Atualização:

A música  brasileira perdeu nesta quinta-feira, 20, um dos seus maiores arranjadores. Miguel Cidras, o maestro responsável por grande parte dos arranjos das músicas de Raul Seixas, morreu numa clínica em São Paulo, quando se preparava para passar por exames médicos e exercícios de fisioterapia.

Ele passou mal repentinamente, foi socorrido, mas não conseguiram reanimá-lo. Nascido em Montevidéu, no Uruguai, Miguel Angel Cidras Rivas tinha 71 anos. Não haverá velório. O corpo será levado para o crematório da Vila Alpina, onde acontecerá uma cerimônia às 13 horas desta sexta-feira.

Miguel Cidras em um café que gostava de frequentar na Vila Mariana.  Foto: Edmundo Leite
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Além de Raul Seixas, Cidras trabalhou com artistas dos mais variados estilos, como Ney Matogrosso, Alceu Valença, Hyldon, Elba e Zé Ramalho, Tim Maia, Erasmo Carlos, Zé Rodrix e Sidney Magal. Do último, é o autor de seu maior sucesso: “Sandra Rosa Madalena, a Cigana”.

Cidras acompanhou Raul Seixas em praticamente toda a carreira do roqueiro baiano. Se conheceram na CBS, no início dos anos 70, quando Raul era produtor dos artistas da gravadora. “Conhecia Raul superficialmente. Até que ele me chamou para fazer o arranjo de Ouro de Tolo, quando foi contratado pela Phillips”.

A música, carro-chefe do disco de estréia de Raul Seixas, foi uma das mais tocadas em 1973, iniciando um relacionamento que iria até o fim da vida do artista, 16 anos depois, em 1989.   “O meu trabalho com Raul foi uma fantasia, uma coisa muito bonita. Ele falava que bastava dar um toque que eu entendia o que ele queria. Mas isso é por conta da molecagem dele”, dizia o maestro, rindo muito, dando a entender que a processo de criação não era tão simples assim.

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Apesar de, em sua fala pausada, deixar claro que esta afinidade era fruto de um trabalho complexo, Cidras se esquivava de falar de sua importância na carreira do cantor. “Essa é uma pergunta que não posso responder. Não posso julgar o meu trabalho no trabalho de outro”.

Mas, didaticamente, explicava. “O trabalho de um arranjador é colocar uma roupa na música para que ela fique melhor. Para isso, tem que saber o que vai usar, para saber como ela vai ficar vestida. O crédito de uma gravação vai para o cantor, mas por trás dele tem todo um trabalho, do compositor, do arranjador, dos músicos”. Nem mesmo dizer qual trabalho considerava o seu melhor com o cantor ele admitia falar diretamente. Mas deixava uma brecha: “Gita (1974) é o melhor disco de Raul Seixas”.

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Além de maestro e arranjador, Cidras também foi empresário do baiano por um curto período nos anos 80, mas a experiência não deu certo, como acontecia musicalmente. Gargalhando e fazendo um gesto explicativo, contava que se deu mal na atividade, mas que isso não comprometeu a amizade dos dois. “Estava tudo em casa”, dizia, rindo e tirando da carteira uma lembrança desse época: um cheque de 1986 não descontado referente ao pagamento de um show do cantor.

Elis e medo

Cidras chegou ao Brasil, ainda jovem, em 1958 e a partir daí seu caminho se cruzou com o de vários artistas brasileiros. Foi Elis Regina, por exemplo que o levou para o Rio de Janeiro, no começo da década de 60. “Conheci a Elis menina, com 14 anos, cantando na Rádio Gaúcha de Porto Alegre, onde eu trabalhava e a acompanhei em suas primeiras apresentações. Depois que ela foi para o Rio, o pai dela veio para Porto Alegre me buscar, dizendo que ela se sentia só e para que eu fosse para lá acompanhá-la. Como naquele momento o rádio, que então contava com orquestras próprias, estava começando a perder espaço para a e televisão, resolvi ir. Também tinha o sonho de ir para o Rio. Morei 15 dias com a Elis e o pai dela.”

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A proximidade, porém, não resultou em trabalho conjunto. Não por vontade dela, que, já ficando famosa, o chamou para gravar. “Mas não fui. Tive medo. Sabe o que é medroso?” Medo que ele credita à inexperiência: “Você pensa que é fácil chegar para enfrentar músicos que já são conhecidos e não sabem quem você é? Eles querem saber o que você sabe, se está pelo menos no nível musical deles. Quando um músico te chama de maestro é porque ele reconhece a sua capacidade. É muita responsabilidade, isso assusta quando se está começando. Você não pode decepcionar.”

Para Elis, não poupava elogios: "Antes, durante e depois dela, não teve no Brasil cantora como ela. Já apareceram milhares, mas nem uma se compara a ela". Mesmo com uma ponta de arrependimento, ele achava que fez certo ao recusar o trabalho oferecido por Elis. "A cabeça é que manda. Se você tem medo de alguma coisa, tem que respeitar isso".

Gravata em Tim Maia

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Com outro ícone da música brasileira, Tim Maia, Cidras teve uma passagem turbulenta: protagonizou uma briga memorável com o cantor num estúdio de gravação depois que o cantor criticou um arranjo que o maestro havia feito para uma música de Tim.

O bate-boca terminou com os dois - que pesavam mais de 100 quilos cada - atracados após o maestro dar uma gravata no artista, que queria agredi-lo. A briga foi apartada por músicos e técnicos, mas Miguel trombou de novo com Tim Maia na saída do estúdio, desta vez com o cantor segurando uma pá de pedreiro e gritando: “vem que agora eu te mato!”

Miguel se divertia relembrando o episódio, contando que no dia seguinte vários músicos o cumprimentaram por ter feito “o que muitos queriam fazer” com o temperamental Tim. “O próprio Tim Maia dizia que se ele fosse eu, teria feito a mesma coisa.”

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Pianista exímio, Cidras chegou a fazer algum sucesso comercial com gravações de composições próprias em discos cheios de swing da série ‘Boogallo Combo’, nos anos 60 e 70. Mas seu único disco próprio foi o LP ‘Samba na Onda’, de 1965, quando ainda assinava como Miguel Angel. Nesse disco, acompanhado do conjunto Ipanemas, Cidras recria clássicos da bossa nova e do samba com um piano suingado e infuências de jazz.

Os problemas de saúde que enfrentava ultimamente não tiravam o humor do maestro, que se preparava para algumas apresentações a fim de relembrar momentos de sua carreira. “Gosto muito de fazer brincadeiras. Quando a gente passa por um problema sério, descobre uma porção de coisas. O que adianta eu falar de meus problemas, de coisa séria?”

Essa serenidade, segundo ele, refletia-se no seu trabalho: “quando eu vou fazer um arranjo sai muito mais fácil. Antes eu jogava coisa demais fora, ficava mudando, refazendo. Hoje, ele já vem pronto”.

Texto originalmente publicado em 20/3/2008 no Estadao.com

# Ouça alguns trabalhos de Miguel Cidras:

LP ‘Samba na Onda

Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho)

Prelúdio (Raul Seixas)

Sandra Rosa Madalena, a Cigana (Miguel Cidras e Roberto Livi)

A música  brasileira perdeu nesta quinta-feira, 20, um dos seus maiores arranjadores. Miguel Cidras, o maestro responsável por grande parte dos arranjos das músicas de Raul Seixas, morreu numa clínica em São Paulo, quando se preparava para passar por exames médicos e exercícios de fisioterapia.

Ele passou mal repentinamente, foi socorrido, mas não conseguiram reanimá-lo. Nascido em Montevidéu, no Uruguai, Miguel Angel Cidras Rivas tinha 71 anos. Não haverá velório. O corpo será levado para o crematório da Vila Alpina, onde acontecerá uma cerimônia às 13 horas desta sexta-feira.

Miguel Cidras em um café que gostava de frequentar na Vila Mariana.  Foto: Edmundo Leite

Além de Raul Seixas, Cidras trabalhou com artistas dos mais variados estilos, como Ney Matogrosso, Alceu Valença, Hyldon, Elba e Zé Ramalho, Tim Maia, Erasmo Carlos, Zé Rodrix e Sidney Magal. Do último, é o autor de seu maior sucesso: “Sandra Rosa Madalena, a Cigana”.

Cidras acompanhou Raul Seixas em praticamente toda a carreira do roqueiro baiano. Se conheceram na CBS, no início dos anos 70, quando Raul era produtor dos artistas da gravadora. “Conhecia Raul superficialmente. Até que ele me chamou para fazer o arranjo de Ouro de Tolo, quando foi contratado pela Phillips”.

A música, carro-chefe do disco de estréia de Raul Seixas, foi uma das mais tocadas em 1973, iniciando um relacionamento que iria até o fim da vida do artista, 16 anos depois, em 1989.   “O meu trabalho com Raul foi uma fantasia, uma coisa muito bonita. Ele falava que bastava dar um toque que eu entendia o que ele queria. Mas isso é por conta da molecagem dele”, dizia o maestro, rindo muito, dando a entender que a processo de criação não era tão simples assim.

Apesar de, em sua fala pausada, deixar claro que esta afinidade era fruto de um trabalho complexo, Cidras se esquivava de falar de sua importância na carreira do cantor. “Essa é uma pergunta que não posso responder. Não posso julgar o meu trabalho no trabalho de outro”.

Mas, didaticamente, explicava. “O trabalho de um arranjador é colocar uma roupa na música para que ela fique melhor. Para isso, tem que saber o que vai usar, para saber como ela vai ficar vestida. O crédito de uma gravação vai para o cantor, mas por trás dele tem todo um trabalho, do compositor, do arranjador, dos músicos”. Nem mesmo dizer qual trabalho considerava o seu melhor com o cantor ele admitia falar diretamente. Mas deixava uma brecha: “Gita (1974) é o melhor disco de Raul Seixas”.

Além de maestro e arranjador, Cidras também foi empresário do baiano por um curto período nos anos 80, mas a experiência não deu certo, como acontecia musicalmente. Gargalhando e fazendo um gesto explicativo, contava que se deu mal na atividade, mas que isso não comprometeu a amizade dos dois. “Estava tudo em casa”, dizia, rindo e tirando da carteira uma lembrança desse época: um cheque de 1986 não descontado referente ao pagamento de um show do cantor.

Elis e medo

Cidras chegou ao Brasil, ainda jovem, em 1958 e a partir daí seu caminho se cruzou com o de vários artistas brasileiros. Foi Elis Regina, por exemplo que o levou para o Rio de Janeiro, no começo da década de 60. “Conheci a Elis menina, com 14 anos, cantando na Rádio Gaúcha de Porto Alegre, onde eu trabalhava e a acompanhei em suas primeiras apresentações. Depois que ela foi para o Rio, o pai dela veio para Porto Alegre me buscar, dizendo que ela se sentia só e para que eu fosse para lá acompanhá-la. Como naquele momento o rádio, que então contava com orquestras próprias, estava começando a perder espaço para a e televisão, resolvi ir. Também tinha o sonho de ir para o Rio. Morei 15 dias com a Elis e o pai dela.”

A proximidade, porém, não resultou em trabalho conjunto. Não por vontade dela, que, já ficando famosa, o chamou para gravar. “Mas não fui. Tive medo. Sabe o que é medroso?” Medo que ele credita à inexperiência: “Você pensa que é fácil chegar para enfrentar músicos que já são conhecidos e não sabem quem você é? Eles querem saber o que você sabe, se está pelo menos no nível musical deles. Quando um músico te chama de maestro é porque ele reconhece a sua capacidade. É muita responsabilidade, isso assusta quando se está começando. Você não pode decepcionar.”

Para Elis, não poupava elogios: "Antes, durante e depois dela, não teve no Brasil cantora como ela. Já apareceram milhares, mas nem uma se compara a ela". Mesmo com uma ponta de arrependimento, ele achava que fez certo ao recusar o trabalho oferecido por Elis. "A cabeça é que manda. Se você tem medo de alguma coisa, tem que respeitar isso".

Gravata em Tim Maia

Com outro ícone da música brasileira, Tim Maia, Cidras teve uma passagem turbulenta: protagonizou uma briga memorável com o cantor num estúdio de gravação depois que o cantor criticou um arranjo que o maestro havia feito para uma música de Tim.

O bate-boca terminou com os dois - que pesavam mais de 100 quilos cada - atracados após o maestro dar uma gravata no artista, que queria agredi-lo. A briga foi apartada por músicos e técnicos, mas Miguel trombou de novo com Tim Maia na saída do estúdio, desta vez com o cantor segurando uma pá de pedreiro e gritando: “vem que agora eu te mato!”

Miguel se divertia relembrando o episódio, contando que no dia seguinte vários músicos o cumprimentaram por ter feito “o que muitos queriam fazer” com o temperamental Tim. “O próprio Tim Maia dizia que se ele fosse eu, teria feito a mesma coisa.”

Pianista exímio, Cidras chegou a fazer algum sucesso comercial com gravações de composições próprias em discos cheios de swing da série ‘Boogallo Combo’, nos anos 60 e 70. Mas seu único disco próprio foi o LP ‘Samba na Onda’, de 1965, quando ainda assinava como Miguel Angel. Nesse disco, acompanhado do conjunto Ipanemas, Cidras recria clássicos da bossa nova e do samba com um piano suingado e infuências de jazz.

Os problemas de saúde que enfrentava ultimamente não tiravam o humor do maestro, que se preparava para algumas apresentações a fim de relembrar momentos de sua carreira. “Gosto muito de fazer brincadeiras. Quando a gente passa por um problema sério, descobre uma porção de coisas. O que adianta eu falar de meus problemas, de coisa séria?”

Essa serenidade, segundo ele, refletia-se no seu trabalho: “quando eu vou fazer um arranjo sai muito mais fácil. Antes eu jogava coisa demais fora, ficava mudando, refazendo. Hoje, ele já vem pronto”.

Texto originalmente publicado em 20/3/2008 no Estadao.com

# Ouça alguns trabalhos de Miguel Cidras:

LP ‘Samba na Onda

Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho)

Prelúdio (Raul Seixas)

Sandra Rosa Madalena, a Cigana (Miguel Cidras e Roberto Livi)

A música  brasileira perdeu nesta quinta-feira, 20, um dos seus maiores arranjadores. Miguel Cidras, o maestro responsável por grande parte dos arranjos das músicas de Raul Seixas, morreu numa clínica em São Paulo, quando se preparava para passar por exames médicos e exercícios de fisioterapia.

Ele passou mal repentinamente, foi socorrido, mas não conseguiram reanimá-lo. Nascido em Montevidéu, no Uruguai, Miguel Angel Cidras Rivas tinha 71 anos. Não haverá velório. O corpo será levado para o crematório da Vila Alpina, onde acontecerá uma cerimônia às 13 horas desta sexta-feira.

Miguel Cidras em um café que gostava de frequentar na Vila Mariana.  Foto: Edmundo Leite

Além de Raul Seixas, Cidras trabalhou com artistas dos mais variados estilos, como Ney Matogrosso, Alceu Valença, Hyldon, Elba e Zé Ramalho, Tim Maia, Erasmo Carlos, Zé Rodrix e Sidney Magal. Do último, é o autor de seu maior sucesso: “Sandra Rosa Madalena, a Cigana”.

Cidras acompanhou Raul Seixas em praticamente toda a carreira do roqueiro baiano. Se conheceram na CBS, no início dos anos 70, quando Raul era produtor dos artistas da gravadora. “Conhecia Raul superficialmente. Até que ele me chamou para fazer o arranjo de Ouro de Tolo, quando foi contratado pela Phillips”.

A música, carro-chefe do disco de estréia de Raul Seixas, foi uma das mais tocadas em 1973, iniciando um relacionamento que iria até o fim da vida do artista, 16 anos depois, em 1989.   “O meu trabalho com Raul foi uma fantasia, uma coisa muito bonita. Ele falava que bastava dar um toque que eu entendia o que ele queria. Mas isso é por conta da molecagem dele”, dizia o maestro, rindo muito, dando a entender que a processo de criação não era tão simples assim.

Apesar de, em sua fala pausada, deixar claro que esta afinidade era fruto de um trabalho complexo, Cidras se esquivava de falar de sua importância na carreira do cantor. “Essa é uma pergunta que não posso responder. Não posso julgar o meu trabalho no trabalho de outro”.

Mas, didaticamente, explicava. “O trabalho de um arranjador é colocar uma roupa na música para que ela fique melhor. Para isso, tem que saber o que vai usar, para saber como ela vai ficar vestida. O crédito de uma gravação vai para o cantor, mas por trás dele tem todo um trabalho, do compositor, do arranjador, dos músicos”. Nem mesmo dizer qual trabalho considerava o seu melhor com o cantor ele admitia falar diretamente. Mas deixava uma brecha: “Gita (1974) é o melhor disco de Raul Seixas”.

Além de maestro e arranjador, Cidras também foi empresário do baiano por um curto período nos anos 80, mas a experiência não deu certo, como acontecia musicalmente. Gargalhando e fazendo um gesto explicativo, contava que se deu mal na atividade, mas que isso não comprometeu a amizade dos dois. “Estava tudo em casa”, dizia, rindo e tirando da carteira uma lembrança desse época: um cheque de 1986 não descontado referente ao pagamento de um show do cantor.

Elis e medo

Cidras chegou ao Brasil, ainda jovem, em 1958 e a partir daí seu caminho se cruzou com o de vários artistas brasileiros. Foi Elis Regina, por exemplo que o levou para o Rio de Janeiro, no começo da década de 60. “Conheci a Elis menina, com 14 anos, cantando na Rádio Gaúcha de Porto Alegre, onde eu trabalhava e a acompanhei em suas primeiras apresentações. Depois que ela foi para o Rio, o pai dela veio para Porto Alegre me buscar, dizendo que ela se sentia só e para que eu fosse para lá acompanhá-la. Como naquele momento o rádio, que então contava com orquestras próprias, estava começando a perder espaço para a e televisão, resolvi ir. Também tinha o sonho de ir para o Rio. Morei 15 dias com a Elis e o pai dela.”

A proximidade, porém, não resultou em trabalho conjunto. Não por vontade dela, que, já ficando famosa, o chamou para gravar. “Mas não fui. Tive medo. Sabe o que é medroso?” Medo que ele credita à inexperiência: “Você pensa que é fácil chegar para enfrentar músicos que já são conhecidos e não sabem quem você é? Eles querem saber o que você sabe, se está pelo menos no nível musical deles. Quando um músico te chama de maestro é porque ele reconhece a sua capacidade. É muita responsabilidade, isso assusta quando se está começando. Você não pode decepcionar.”

Para Elis, não poupava elogios: "Antes, durante e depois dela, não teve no Brasil cantora como ela. Já apareceram milhares, mas nem uma se compara a ela". Mesmo com uma ponta de arrependimento, ele achava que fez certo ao recusar o trabalho oferecido por Elis. "A cabeça é que manda. Se você tem medo de alguma coisa, tem que respeitar isso".

Gravata em Tim Maia

Com outro ícone da música brasileira, Tim Maia, Cidras teve uma passagem turbulenta: protagonizou uma briga memorável com o cantor num estúdio de gravação depois que o cantor criticou um arranjo que o maestro havia feito para uma música de Tim.

O bate-boca terminou com os dois - que pesavam mais de 100 quilos cada - atracados após o maestro dar uma gravata no artista, que queria agredi-lo. A briga foi apartada por músicos e técnicos, mas Miguel trombou de novo com Tim Maia na saída do estúdio, desta vez com o cantor segurando uma pá de pedreiro e gritando: “vem que agora eu te mato!”

Miguel se divertia relembrando o episódio, contando que no dia seguinte vários músicos o cumprimentaram por ter feito “o que muitos queriam fazer” com o temperamental Tim. “O próprio Tim Maia dizia que se ele fosse eu, teria feito a mesma coisa.”

Pianista exímio, Cidras chegou a fazer algum sucesso comercial com gravações de composições próprias em discos cheios de swing da série ‘Boogallo Combo’, nos anos 60 e 70. Mas seu único disco próprio foi o LP ‘Samba na Onda’, de 1965, quando ainda assinava como Miguel Angel. Nesse disco, acompanhado do conjunto Ipanemas, Cidras recria clássicos da bossa nova e do samba com um piano suingado e infuências de jazz.

Os problemas de saúde que enfrentava ultimamente não tiravam o humor do maestro, que se preparava para algumas apresentações a fim de relembrar momentos de sua carreira. “Gosto muito de fazer brincadeiras. Quando a gente passa por um problema sério, descobre uma porção de coisas. O que adianta eu falar de meus problemas, de coisa séria?”

Essa serenidade, segundo ele, refletia-se no seu trabalho: “quando eu vou fazer um arranjo sai muito mais fácil. Antes eu jogava coisa demais fora, ficava mudando, refazendo. Hoje, ele já vem pronto”.

Texto originalmente publicado em 20/3/2008 no Estadao.com

# Ouça alguns trabalhos de Miguel Cidras:

LP ‘Samba na Onda

Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho)

Prelúdio (Raul Seixas)

Sandra Rosa Madalena, a Cigana (Miguel Cidras e Roberto Livi)

A música  brasileira perdeu nesta quinta-feira, 20, um dos seus maiores arranjadores. Miguel Cidras, o maestro responsável por grande parte dos arranjos das músicas de Raul Seixas, morreu numa clínica em São Paulo, quando se preparava para passar por exames médicos e exercícios de fisioterapia.

Ele passou mal repentinamente, foi socorrido, mas não conseguiram reanimá-lo. Nascido em Montevidéu, no Uruguai, Miguel Angel Cidras Rivas tinha 71 anos. Não haverá velório. O corpo será levado para o crematório da Vila Alpina, onde acontecerá uma cerimônia às 13 horas desta sexta-feira.

Miguel Cidras em um café que gostava de frequentar na Vila Mariana.  Foto: Edmundo Leite

Além de Raul Seixas, Cidras trabalhou com artistas dos mais variados estilos, como Ney Matogrosso, Alceu Valença, Hyldon, Elba e Zé Ramalho, Tim Maia, Erasmo Carlos, Zé Rodrix e Sidney Magal. Do último, é o autor de seu maior sucesso: “Sandra Rosa Madalena, a Cigana”.

Cidras acompanhou Raul Seixas em praticamente toda a carreira do roqueiro baiano. Se conheceram na CBS, no início dos anos 70, quando Raul era produtor dos artistas da gravadora. “Conhecia Raul superficialmente. Até que ele me chamou para fazer o arranjo de Ouro de Tolo, quando foi contratado pela Phillips”.

A música, carro-chefe do disco de estréia de Raul Seixas, foi uma das mais tocadas em 1973, iniciando um relacionamento que iria até o fim da vida do artista, 16 anos depois, em 1989.   “O meu trabalho com Raul foi uma fantasia, uma coisa muito bonita. Ele falava que bastava dar um toque que eu entendia o que ele queria. Mas isso é por conta da molecagem dele”, dizia o maestro, rindo muito, dando a entender que a processo de criação não era tão simples assim.

Apesar de, em sua fala pausada, deixar claro que esta afinidade era fruto de um trabalho complexo, Cidras se esquivava de falar de sua importância na carreira do cantor. “Essa é uma pergunta que não posso responder. Não posso julgar o meu trabalho no trabalho de outro”.

Mas, didaticamente, explicava. “O trabalho de um arranjador é colocar uma roupa na música para que ela fique melhor. Para isso, tem que saber o que vai usar, para saber como ela vai ficar vestida. O crédito de uma gravação vai para o cantor, mas por trás dele tem todo um trabalho, do compositor, do arranjador, dos músicos”. Nem mesmo dizer qual trabalho considerava o seu melhor com o cantor ele admitia falar diretamente. Mas deixava uma brecha: “Gita (1974) é o melhor disco de Raul Seixas”.

Além de maestro e arranjador, Cidras também foi empresário do baiano por um curto período nos anos 80, mas a experiência não deu certo, como acontecia musicalmente. Gargalhando e fazendo um gesto explicativo, contava que se deu mal na atividade, mas que isso não comprometeu a amizade dos dois. “Estava tudo em casa”, dizia, rindo e tirando da carteira uma lembrança desse época: um cheque de 1986 não descontado referente ao pagamento de um show do cantor.

Elis e medo

Cidras chegou ao Brasil, ainda jovem, em 1958 e a partir daí seu caminho se cruzou com o de vários artistas brasileiros. Foi Elis Regina, por exemplo que o levou para o Rio de Janeiro, no começo da década de 60. “Conheci a Elis menina, com 14 anos, cantando na Rádio Gaúcha de Porto Alegre, onde eu trabalhava e a acompanhei em suas primeiras apresentações. Depois que ela foi para o Rio, o pai dela veio para Porto Alegre me buscar, dizendo que ela se sentia só e para que eu fosse para lá acompanhá-la. Como naquele momento o rádio, que então contava com orquestras próprias, estava começando a perder espaço para a e televisão, resolvi ir. Também tinha o sonho de ir para o Rio. Morei 15 dias com a Elis e o pai dela.”

A proximidade, porém, não resultou em trabalho conjunto. Não por vontade dela, que, já ficando famosa, o chamou para gravar. “Mas não fui. Tive medo. Sabe o que é medroso?” Medo que ele credita à inexperiência: “Você pensa que é fácil chegar para enfrentar músicos que já são conhecidos e não sabem quem você é? Eles querem saber o que você sabe, se está pelo menos no nível musical deles. Quando um músico te chama de maestro é porque ele reconhece a sua capacidade. É muita responsabilidade, isso assusta quando se está começando. Você não pode decepcionar.”

Para Elis, não poupava elogios: "Antes, durante e depois dela, não teve no Brasil cantora como ela. Já apareceram milhares, mas nem uma se compara a ela". Mesmo com uma ponta de arrependimento, ele achava que fez certo ao recusar o trabalho oferecido por Elis. "A cabeça é que manda. Se você tem medo de alguma coisa, tem que respeitar isso".

Gravata em Tim Maia

Com outro ícone da música brasileira, Tim Maia, Cidras teve uma passagem turbulenta: protagonizou uma briga memorável com o cantor num estúdio de gravação depois que o cantor criticou um arranjo que o maestro havia feito para uma música de Tim.

O bate-boca terminou com os dois - que pesavam mais de 100 quilos cada - atracados após o maestro dar uma gravata no artista, que queria agredi-lo. A briga foi apartada por músicos e técnicos, mas Miguel trombou de novo com Tim Maia na saída do estúdio, desta vez com o cantor segurando uma pá de pedreiro e gritando: “vem que agora eu te mato!”

Miguel se divertia relembrando o episódio, contando que no dia seguinte vários músicos o cumprimentaram por ter feito “o que muitos queriam fazer” com o temperamental Tim. “O próprio Tim Maia dizia que se ele fosse eu, teria feito a mesma coisa.”

Pianista exímio, Cidras chegou a fazer algum sucesso comercial com gravações de composições próprias em discos cheios de swing da série ‘Boogallo Combo’, nos anos 60 e 70. Mas seu único disco próprio foi o LP ‘Samba na Onda’, de 1965, quando ainda assinava como Miguel Angel. Nesse disco, acompanhado do conjunto Ipanemas, Cidras recria clássicos da bossa nova e do samba com um piano suingado e infuências de jazz.

Os problemas de saúde que enfrentava ultimamente não tiravam o humor do maestro, que se preparava para algumas apresentações a fim de relembrar momentos de sua carreira. “Gosto muito de fazer brincadeiras. Quando a gente passa por um problema sério, descobre uma porção de coisas. O que adianta eu falar de meus problemas, de coisa séria?”

Essa serenidade, segundo ele, refletia-se no seu trabalho: “quando eu vou fazer um arranjo sai muito mais fácil. Antes eu jogava coisa demais fora, ficava mudando, refazendo. Hoje, ele já vem pronto”.

Texto originalmente publicado em 20/3/2008 no Estadao.com

# Ouça alguns trabalhos de Miguel Cidras:

LP ‘Samba na Onda

Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho)

Prelúdio (Raul Seixas)

Sandra Rosa Madalena, a Cigana (Miguel Cidras e Roberto Livi)

A música  brasileira perdeu nesta quinta-feira, 20, um dos seus maiores arranjadores. Miguel Cidras, o maestro responsável por grande parte dos arranjos das músicas de Raul Seixas, morreu numa clínica em São Paulo, quando se preparava para passar por exames médicos e exercícios de fisioterapia.

Ele passou mal repentinamente, foi socorrido, mas não conseguiram reanimá-lo. Nascido em Montevidéu, no Uruguai, Miguel Angel Cidras Rivas tinha 71 anos. Não haverá velório. O corpo será levado para o crematório da Vila Alpina, onde acontecerá uma cerimônia às 13 horas desta sexta-feira.

Miguel Cidras em um café que gostava de frequentar na Vila Mariana.  Foto: Edmundo Leite

Além de Raul Seixas, Cidras trabalhou com artistas dos mais variados estilos, como Ney Matogrosso, Alceu Valença, Hyldon, Elba e Zé Ramalho, Tim Maia, Erasmo Carlos, Zé Rodrix e Sidney Magal. Do último, é o autor de seu maior sucesso: “Sandra Rosa Madalena, a Cigana”.

Cidras acompanhou Raul Seixas em praticamente toda a carreira do roqueiro baiano. Se conheceram na CBS, no início dos anos 70, quando Raul era produtor dos artistas da gravadora. “Conhecia Raul superficialmente. Até que ele me chamou para fazer o arranjo de Ouro de Tolo, quando foi contratado pela Phillips”.

A música, carro-chefe do disco de estréia de Raul Seixas, foi uma das mais tocadas em 1973, iniciando um relacionamento que iria até o fim da vida do artista, 16 anos depois, em 1989.   “O meu trabalho com Raul foi uma fantasia, uma coisa muito bonita. Ele falava que bastava dar um toque que eu entendia o que ele queria. Mas isso é por conta da molecagem dele”, dizia o maestro, rindo muito, dando a entender que a processo de criação não era tão simples assim.

Apesar de, em sua fala pausada, deixar claro que esta afinidade era fruto de um trabalho complexo, Cidras se esquivava de falar de sua importância na carreira do cantor. “Essa é uma pergunta que não posso responder. Não posso julgar o meu trabalho no trabalho de outro”.

Mas, didaticamente, explicava. “O trabalho de um arranjador é colocar uma roupa na música para que ela fique melhor. Para isso, tem que saber o que vai usar, para saber como ela vai ficar vestida. O crédito de uma gravação vai para o cantor, mas por trás dele tem todo um trabalho, do compositor, do arranjador, dos músicos”. Nem mesmo dizer qual trabalho considerava o seu melhor com o cantor ele admitia falar diretamente. Mas deixava uma brecha: “Gita (1974) é o melhor disco de Raul Seixas”.

Além de maestro e arranjador, Cidras também foi empresário do baiano por um curto período nos anos 80, mas a experiência não deu certo, como acontecia musicalmente. Gargalhando e fazendo um gesto explicativo, contava que se deu mal na atividade, mas que isso não comprometeu a amizade dos dois. “Estava tudo em casa”, dizia, rindo e tirando da carteira uma lembrança desse época: um cheque de 1986 não descontado referente ao pagamento de um show do cantor.

Elis e medo

Cidras chegou ao Brasil, ainda jovem, em 1958 e a partir daí seu caminho se cruzou com o de vários artistas brasileiros. Foi Elis Regina, por exemplo que o levou para o Rio de Janeiro, no começo da década de 60. “Conheci a Elis menina, com 14 anos, cantando na Rádio Gaúcha de Porto Alegre, onde eu trabalhava e a acompanhei em suas primeiras apresentações. Depois que ela foi para o Rio, o pai dela veio para Porto Alegre me buscar, dizendo que ela se sentia só e para que eu fosse para lá acompanhá-la. Como naquele momento o rádio, que então contava com orquestras próprias, estava começando a perder espaço para a e televisão, resolvi ir. Também tinha o sonho de ir para o Rio. Morei 15 dias com a Elis e o pai dela.”

A proximidade, porém, não resultou em trabalho conjunto. Não por vontade dela, que, já ficando famosa, o chamou para gravar. “Mas não fui. Tive medo. Sabe o que é medroso?” Medo que ele credita à inexperiência: “Você pensa que é fácil chegar para enfrentar músicos que já são conhecidos e não sabem quem você é? Eles querem saber o que você sabe, se está pelo menos no nível musical deles. Quando um músico te chama de maestro é porque ele reconhece a sua capacidade. É muita responsabilidade, isso assusta quando se está começando. Você não pode decepcionar.”

Para Elis, não poupava elogios: "Antes, durante e depois dela, não teve no Brasil cantora como ela. Já apareceram milhares, mas nem uma se compara a ela". Mesmo com uma ponta de arrependimento, ele achava que fez certo ao recusar o trabalho oferecido por Elis. "A cabeça é que manda. Se você tem medo de alguma coisa, tem que respeitar isso".

Gravata em Tim Maia

Com outro ícone da música brasileira, Tim Maia, Cidras teve uma passagem turbulenta: protagonizou uma briga memorável com o cantor num estúdio de gravação depois que o cantor criticou um arranjo que o maestro havia feito para uma música de Tim.

O bate-boca terminou com os dois - que pesavam mais de 100 quilos cada - atracados após o maestro dar uma gravata no artista, que queria agredi-lo. A briga foi apartada por músicos e técnicos, mas Miguel trombou de novo com Tim Maia na saída do estúdio, desta vez com o cantor segurando uma pá de pedreiro e gritando: “vem que agora eu te mato!”

Miguel se divertia relembrando o episódio, contando que no dia seguinte vários músicos o cumprimentaram por ter feito “o que muitos queriam fazer” com o temperamental Tim. “O próprio Tim Maia dizia que se ele fosse eu, teria feito a mesma coisa.”

Pianista exímio, Cidras chegou a fazer algum sucesso comercial com gravações de composições próprias em discos cheios de swing da série ‘Boogallo Combo’, nos anos 60 e 70. Mas seu único disco próprio foi o LP ‘Samba na Onda’, de 1965, quando ainda assinava como Miguel Angel. Nesse disco, acompanhado do conjunto Ipanemas, Cidras recria clássicos da bossa nova e do samba com um piano suingado e infuências de jazz.

Os problemas de saúde que enfrentava ultimamente não tiravam o humor do maestro, que se preparava para algumas apresentações a fim de relembrar momentos de sua carreira. “Gosto muito de fazer brincadeiras. Quando a gente passa por um problema sério, descobre uma porção de coisas. O que adianta eu falar de meus problemas, de coisa séria?”

Essa serenidade, segundo ele, refletia-se no seu trabalho: “quando eu vou fazer um arranjo sai muito mais fácil. Antes eu jogava coisa demais fora, ficava mudando, refazendo. Hoje, ele já vem pronto”.

Texto originalmente publicado em 20/3/2008 no Estadao.com

# Ouça alguns trabalhos de Miguel Cidras:

LP ‘Samba na Onda

Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho)

Prelúdio (Raul Seixas)

Sandra Rosa Madalena, a Cigana (Miguel Cidras e Roberto Livi)

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