Quando Cláudia Sofia Pereira saltou de paraquedas, a paisagem era um detalhe dispensável. Ela não enxerga, também não escuta. É surda-cega. Na memória dos sentidos, Cláudia lembra o relato do corpo: “Pensei que era um passarinho”. O vento forte pressionou o rosto, a adrenalina fez cócegas, e ela gritou. Sentiu prazer de estar no alto e ser conduzida, como em uma dança, pela gravidade.
Para o marido, Carlos Jorge Rodrigues, também surdo-cego, o prazer é ter o corpo encharcado. Nadando, conquistou 26 medalhas em competições de surdos e de cegos. Na linguagem de sinais, as mãos comunicam: “Minha família me acha um herói”. Carlos, de 55 anos, e Cláudia, de 45, fazem parte de um universo invisível e inaudível de 250 pessoas em São Paulo. O levantamento da Prefeitura inclui somente pessoas que, por ter acesso à educação, puderam ser vistas e inseridas nas estatísticas municipais.
No Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a deficiência acumulada da surdez e cegueira não tem categoria própria. O Grupo Brasil, rede nacional filantrópica que oferece cursos à comunidade com deficiências auditiva e visual, estima que 2,8 mil surdos-cegos estejam espalhados por todo o País.
Cláudia, porém, teve imagens e sons em seus seis primeiros anos de vida, até que o sarampo a tornou surda. A visão começou a falhar gradativamente nos anos seguintes com a manifestação da síndrome de Usher, degeneração da retina em função de retinose pigmentar, doença genética. Os pais de Cláudia são primos.
Aos 19 anos, ela estava surda e cega. Assistia à televisão na sala, com a família, quando tudo ficou escuro. “É difícil aceitar a surdo-cegueira. Tudo depende da pessoa e da família”, diz ela, que tem uma irmã mais nova também surda-cega.
Conheça a rotina do casal Cláudia e Carlos
Rodrigues também tem a síndrome de Usher. Nasceu surdo e adquiriu cegueira. Aos 51, perdeu a visão por completo. Hoje é diretor-geral da Associação Brasileira de Surdo-Cegueira (Abrasc). Ele já conheceu os cinco continentes como representante latino-americano da Federação Mundial de Surdo-Cegueira. Recentemente, nas Filipinas, sobreviveu a um furacão. “Passei um sufoco muito grande. Senti um tremor muito forte, o vento próximo e algo branco”, conta.
Cláudia e Rodrigues se comunicam por libras táteis. Uma mão, em forma de concha, recebe a mensagem que o emissor elabora por meio de sinais. “A língua dos surdos-cegos é o toque. Eles conhecem o mundo e as pessoas assim”, explica Shirley Rodrigues Maia, presidente do Grupo Brasil.
Complicações. Segundo Andy de Oliveira Vicente, otorrinolaringologista do Hospital Cema, doenças contraídas na gravidez, como rubéola e toxoplasmose, podem causar surdo-cegueira na criança. No entanto, ele explica que, mesmo surda-cega, Cláudia consegue falar por causa dos resquícios da comunicação na infância.
Ela usa aparelho auditivo e desenvolveu um método de comunicação: o tadoma. Com o dedo indicador e o polegar no queixo e a palma da mão apoiada nas cordas vocais do interlocutor, é capaz de entender, pela vibração das cordas vocais, o que diz o falante. “É um dom. Não se ensina”, diz.
Com o aparelho, Cláudia capta poucos sons, caso estejam perto do ouvido. “Por enquanto, ela consegue usar o aparelho. Não sabemos até quando. Caso o aparelho não reverta mais a situação, existe a possibilidade de colocar um ouvido biônico”, diz o otorrino. Já para Rodrigues, por ter nascido totalmente surdo, o prognóstico é “um pouquinho pior, porque o ouvido nunca foi estimulado”.
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Deficientes auditivos e também visuais se comunicam por meio de libras táteis e outros métodos para tocar a vida em São Paulo