Entenda o que o governo Lula mudou sobre aborto legal no Brasil


Revogação de portaria desobriga profissionais da saúde a comunicarem caso à polícia; País também deixou pacto internacional antiaborto

Por Fabiana Cambricoli e Paula Ferreira
Atualização:

A revogação de uma portaria do Ministério da Saúde sobre aborto legal e a saída do Brasil de um pacto internacional antiaborto, anunciados no primeiro mês do governo Lula, retiram barreiras para os casos de interrupção da gravidez previstos em lei, mas não alteram os critérios para acesso ao procedimento.

A decisão da nova gestão do Ministério da Saúde de revogar uma portaria de 2020 que impunha processos extras para o aborto legal no Brasil traz, como principal mudança, a suspensão da regra que obrigava os profissionais da saúde a comunicarem a polícia, mesmo sem o aval da mulher, casos de violência sexual que levaram à interrupção da gestação.

O texto da portaria 2.561/2020, editada na gestão do ministro Eduardo Pazuello, previa que o médico e os demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolherem a paciente deveriam comunicar o fato à polícia e “preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial ou aos peritos oficiais, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime”.

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Para especialistas em saúde reprodutiva e em direitos das mulheres, a regra criava constrangimento e insegurança à paciente e aos profissionais de saúde e, na prática, poderia ser uma barreira ao acesso ao aborto legal e seguro.

A revogação da portaria 2.561/2020, no entanto, não altera nem amplia os critérios para a realização do aborto legal. Ele continua sendo permitido no País somente em três situações: risco de vida à mulher, gestação decorrente de estupro e feto com anencefalia (um tipo de má formação em que o cérebro não se desenvolve adequadamente, levando à morte da criança ainda dentro do útero ou poucas horas após o nascimento).

A supressão da portaria tampouco impede que o autor da violência sexual seja denunciado e responsabilizado. A denúncia pode ser feita pela vítima às autoridades competentes, mas a responsabilidade pelo relato do crime não recairá mais sobre os profissionais de saúde.

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“A norma revogada transformava os espaços de cuidado em espaços de investigação policial, e isso tem um custo. Quebra o ambiente de confiança entre a paciente e a equipe médica porque a decisão pela denúncia é complexa, ainda mais nos casos de estupro, crime muitas vezes cometido por integrantes do núcleo familiar e afetivo da mulher. Ela pode não querer denunciar por medo de correr mais risco ou por não ter condições de sair daquela condição naquele momento”, afirma a defensora Nalida Coelho Monte, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensora Pública do Estado de São Paulo.

Ministério da Saúde revogou portaria que criava barreira ao aborto legal em caso de estupro. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Para Agnaldo Lopes, presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a norma feria a autonomia da mulher. “A mulher sofria outra violência, era exposta, o que tornava o processo ainda mais penoso e sofrido”, diz ele.

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Para Nadila, a regra também trazia insegurança para os profissionais de saúde, que se sentiam coagidos a comunicar o fato mesmo contra a vontade da mulher e não foram orientados pela norma de como deveriam fazer isso. “Isso fazia com que eles tivessem mais medo de atender as mulheres nessa situação e, em algumas situações, negassem o atendimento”, afirma a especialista.

“A regra era uma barreira administrativa para o acesso ao aborto legal e considerada ilegal por exigir requisitos não previstos em lei. A revogação dessa portaria foi bem-vinda e é importante para que as mulheres mantenham seu direito à dignidade, privacidade e sigilo”, diz Nadila.

Ao anunciar a revogação, a nova gestão do Ministério da Saúde, liderada pela ministra Nísia Trindade, afirmou que a medida “foi necessária pois a publicação trazia uma série de exigências que dificultavam a garantia do acesso aos serviços de saúde pelas mulheres vítimas de violência sexual, sendo contrária aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)”. O órgão afirmou ainda que a portaria representava um “retrocesso aos direitos das mulheres”.

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Outras regras da portaria 2.561/2020 se mantêm porque já estavam previstas na norma anterior que regulamentava o tema, a portaria 1.508/2005. Entre as normas obrigatórias para os casos de interrupção de gravidez resultante de estupro estão a necessidade de assinatura pela mulher de Termo de Relato Circunstanciado, descrevendo a violência e características do agressor, e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual ela é informada sobre o procedimento que será realizado, seus riscos e a garantia de sigilo.

As outras duas etapas para a realização do aborto legal em caso de estupro são a avaliação por equipe multiprofissional e a assinatura, pela paciente, de termo de responsabilidade.

Ministério suspendeu nota técnica após reação de parlamentares

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Em fevereiro de 2024, após a publicação da primeira versão desta reportagem, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica para orientar serviços de saúde sobre realização do aborto nos casos previstos em lei na qual ressaltava que a legislação atual no Brasil não estabelece prazo para que a interrupção da gravidez ocorra nesses casos e que, portanto, caberia aos serviços de saúde interpretar esse direito e fixar prazos.

A publicação gerou amplas críticas de parlamentares conservadores, que argumentaram que o ministério estaria legislando sobre o aborto. Diante da reação, o ministério suspendeu a nota técnica um dia depois da publicação sob o argumento que a norma não teria passado por todas as esferas necessárias dentro do ministério, inclusive a consultoria jurídica.

Desligamento de declaração internacional antiaborto é ato simbólico

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Além de revogar a portaria de 2020, o Ministério da Saúde anunciou o desligamento do País da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, uma iniciativa internacional antiaborto idealizada pelos Estados Unidos em 2020 e assinada por 34 nações.

No documento, endereçado à Organização das Nações Unidas (ONU), os signatários se comprometem a “melhorar e garantir o acesso à saúde e ganhos de desenvolvimento para as mulheres, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, sem incluir o aborto” e afirmam que “não existe direito internacional ao aborto nem qualquer obrigação por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.

A declaração defende ainda que o aborto “não seja promovido como método de planejamento familiar” e que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local”, indicando, assim, que querem que as Nações Unidas se abstenham de promover ações e políticas públicas que possam promover o aborto seguro.

A saída do Brasil do grupo que apoia o documento, medida que já havia sido tomada pelos Estados Unidos após Joe Biden assumir a Presidência, foi comemorada por especialistas em saúde reprodutiva e criticada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas é considerada por especialistas um ato mais simbólico do que prático.

“Embora o desligamento da declaração não tenha nenhuma vinculação nem implique nenhuma obrigação, o ato é importante simbolicamente porque acaba servindo de norteador de normas e políticas públicas locais. Rejeitar essa declaração coloca o Brasil ao lado dos países mais civilizados do mundo em termos de debate sobre os direitos das mulheres”, afirma a defensora Nadila.

Gestão Bolsonaro tentou impor mais barreiras, mas recuou diante de críticas

Antes de publicar a portaria 2.561, em setembro de 2020, com a nova regra que obrigava os profissionais de saúde a comunicarem a polícia sobre casos de violência sexual que resultaram em gravidez e aborto, a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro tentou impor barreiras maiores às mulheres que buscavam aborto legal após uma gravidez decorrente de estupro.

Em agosto de 2020, o ministério publicou a portaria 2.282, que além de criar a obrigatoriedade de relato do caso à polícia, previa que a equipe médica deveria oferecer à paciente a possibilidade “de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia”.

Trazia ainda uma descrição detalhada de riscos raros do procedimento, o que foi visto por especialistas como uma forma de assustar a mulher e desencorajá-la a fazer o procedimento. Após reação de especialistas, ativistas e Poder Judiciário, o ministério recuou e retirou esses dois últimos pontos da norma.

A revogação de uma portaria do Ministério da Saúde sobre aborto legal e a saída do Brasil de um pacto internacional antiaborto, anunciados no primeiro mês do governo Lula, retiram barreiras para os casos de interrupção da gravidez previstos em lei, mas não alteram os critérios para acesso ao procedimento.

A decisão da nova gestão do Ministério da Saúde de revogar uma portaria de 2020 que impunha processos extras para o aborto legal no Brasil traz, como principal mudança, a suspensão da regra que obrigava os profissionais da saúde a comunicarem a polícia, mesmo sem o aval da mulher, casos de violência sexual que levaram à interrupção da gestação.

O texto da portaria 2.561/2020, editada na gestão do ministro Eduardo Pazuello, previa que o médico e os demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolherem a paciente deveriam comunicar o fato à polícia e “preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial ou aos peritos oficiais, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime”.

Para especialistas em saúde reprodutiva e em direitos das mulheres, a regra criava constrangimento e insegurança à paciente e aos profissionais de saúde e, na prática, poderia ser uma barreira ao acesso ao aborto legal e seguro.

A revogação da portaria 2.561/2020, no entanto, não altera nem amplia os critérios para a realização do aborto legal. Ele continua sendo permitido no País somente em três situações: risco de vida à mulher, gestação decorrente de estupro e feto com anencefalia (um tipo de má formação em que o cérebro não se desenvolve adequadamente, levando à morte da criança ainda dentro do útero ou poucas horas após o nascimento).

A supressão da portaria tampouco impede que o autor da violência sexual seja denunciado e responsabilizado. A denúncia pode ser feita pela vítima às autoridades competentes, mas a responsabilidade pelo relato do crime não recairá mais sobre os profissionais de saúde.

“A norma revogada transformava os espaços de cuidado em espaços de investigação policial, e isso tem um custo. Quebra o ambiente de confiança entre a paciente e a equipe médica porque a decisão pela denúncia é complexa, ainda mais nos casos de estupro, crime muitas vezes cometido por integrantes do núcleo familiar e afetivo da mulher. Ela pode não querer denunciar por medo de correr mais risco ou por não ter condições de sair daquela condição naquele momento”, afirma a defensora Nalida Coelho Monte, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensora Pública do Estado de São Paulo.

Ministério da Saúde revogou portaria que criava barreira ao aborto legal em caso de estupro. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Para Agnaldo Lopes, presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a norma feria a autonomia da mulher. “A mulher sofria outra violência, era exposta, o que tornava o processo ainda mais penoso e sofrido”, diz ele.

Para Nadila, a regra também trazia insegurança para os profissionais de saúde, que se sentiam coagidos a comunicar o fato mesmo contra a vontade da mulher e não foram orientados pela norma de como deveriam fazer isso. “Isso fazia com que eles tivessem mais medo de atender as mulheres nessa situação e, em algumas situações, negassem o atendimento”, afirma a especialista.

“A regra era uma barreira administrativa para o acesso ao aborto legal e considerada ilegal por exigir requisitos não previstos em lei. A revogação dessa portaria foi bem-vinda e é importante para que as mulheres mantenham seu direito à dignidade, privacidade e sigilo”, diz Nadila.

Ao anunciar a revogação, a nova gestão do Ministério da Saúde, liderada pela ministra Nísia Trindade, afirmou que a medida “foi necessária pois a publicação trazia uma série de exigências que dificultavam a garantia do acesso aos serviços de saúde pelas mulheres vítimas de violência sexual, sendo contrária aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)”. O órgão afirmou ainda que a portaria representava um “retrocesso aos direitos das mulheres”.

Outras regras da portaria 2.561/2020 se mantêm porque já estavam previstas na norma anterior que regulamentava o tema, a portaria 1.508/2005. Entre as normas obrigatórias para os casos de interrupção de gravidez resultante de estupro estão a necessidade de assinatura pela mulher de Termo de Relato Circunstanciado, descrevendo a violência e características do agressor, e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual ela é informada sobre o procedimento que será realizado, seus riscos e a garantia de sigilo.

As outras duas etapas para a realização do aborto legal em caso de estupro são a avaliação por equipe multiprofissional e a assinatura, pela paciente, de termo de responsabilidade.

Ministério suspendeu nota técnica após reação de parlamentares

Em fevereiro de 2024, após a publicação da primeira versão desta reportagem, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica para orientar serviços de saúde sobre realização do aborto nos casos previstos em lei na qual ressaltava que a legislação atual no Brasil não estabelece prazo para que a interrupção da gravidez ocorra nesses casos e que, portanto, caberia aos serviços de saúde interpretar esse direito e fixar prazos.

A publicação gerou amplas críticas de parlamentares conservadores, que argumentaram que o ministério estaria legislando sobre o aborto. Diante da reação, o ministério suspendeu a nota técnica um dia depois da publicação sob o argumento que a norma não teria passado por todas as esferas necessárias dentro do ministério, inclusive a consultoria jurídica.

Desligamento de declaração internacional antiaborto é ato simbólico

Além de revogar a portaria de 2020, o Ministério da Saúde anunciou o desligamento do País da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, uma iniciativa internacional antiaborto idealizada pelos Estados Unidos em 2020 e assinada por 34 nações.

No documento, endereçado à Organização das Nações Unidas (ONU), os signatários se comprometem a “melhorar e garantir o acesso à saúde e ganhos de desenvolvimento para as mulheres, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, sem incluir o aborto” e afirmam que “não existe direito internacional ao aborto nem qualquer obrigação por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.

A declaração defende ainda que o aborto “não seja promovido como método de planejamento familiar” e que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local”, indicando, assim, que querem que as Nações Unidas se abstenham de promover ações e políticas públicas que possam promover o aborto seguro.

A saída do Brasil do grupo que apoia o documento, medida que já havia sido tomada pelos Estados Unidos após Joe Biden assumir a Presidência, foi comemorada por especialistas em saúde reprodutiva e criticada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas é considerada por especialistas um ato mais simbólico do que prático.

“Embora o desligamento da declaração não tenha nenhuma vinculação nem implique nenhuma obrigação, o ato é importante simbolicamente porque acaba servindo de norteador de normas e políticas públicas locais. Rejeitar essa declaração coloca o Brasil ao lado dos países mais civilizados do mundo em termos de debate sobre os direitos das mulheres”, afirma a defensora Nadila.

Gestão Bolsonaro tentou impor mais barreiras, mas recuou diante de críticas

Antes de publicar a portaria 2.561, em setembro de 2020, com a nova regra que obrigava os profissionais de saúde a comunicarem a polícia sobre casos de violência sexual que resultaram em gravidez e aborto, a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro tentou impor barreiras maiores às mulheres que buscavam aborto legal após uma gravidez decorrente de estupro.

Em agosto de 2020, o ministério publicou a portaria 2.282, que além de criar a obrigatoriedade de relato do caso à polícia, previa que a equipe médica deveria oferecer à paciente a possibilidade “de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia”.

Trazia ainda uma descrição detalhada de riscos raros do procedimento, o que foi visto por especialistas como uma forma de assustar a mulher e desencorajá-la a fazer o procedimento. Após reação de especialistas, ativistas e Poder Judiciário, o ministério recuou e retirou esses dois últimos pontos da norma.

A revogação de uma portaria do Ministério da Saúde sobre aborto legal e a saída do Brasil de um pacto internacional antiaborto, anunciados no primeiro mês do governo Lula, retiram barreiras para os casos de interrupção da gravidez previstos em lei, mas não alteram os critérios para acesso ao procedimento.

A decisão da nova gestão do Ministério da Saúde de revogar uma portaria de 2020 que impunha processos extras para o aborto legal no Brasil traz, como principal mudança, a suspensão da regra que obrigava os profissionais da saúde a comunicarem a polícia, mesmo sem o aval da mulher, casos de violência sexual que levaram à interrupção da gestação.

O texto da portaria 2.561/2020, editada na gestão do ministro Eduardo Pazuello, previa que o médico e os demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolherem a paciente deveriam comunicar o fato à polícia e “preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial ou aos peritos oficiais, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime”.

Para especialistas em saúde reprodutiva e em direitos das mulheres, a regra criava constrangimento e insegurança à paciente e aos profissionais de saúde e, na prática, poderia ser uma barreira ao acesso ao aborto legal e seguro.

A revogação da portaria 2.561/2020, no entanto, não altera nem amplia os critérios para a realização do aborto legal. Ele continua sendo permitido no País somente em três situações: risco de vida à mulher, gestação decorrente de estupro e feto com anencefalia (um tipo de má formação em que o cérebro não se desenvolve adequadamente, levando à morte da criança ainda dentro do útero ou poucas horas após o nascimento).

A supressão da portaria tampouco impede que o autor da violência sexual seja denunciado e responsabilizado. A denúncia pode ser feita pela vítima às autoridades competentes, mas a responsabilidade pelo relato do crime não recairá mais sobre os profissionais de saúde.

“A norma revogada transformava os espaços de cuidado em espaços de investigação policial, e isso tem um custo. Quebra o ambiente de confiança entre a paciente e a equipe médica porque a decisão pela denúncia é complexa, ainda mais nos casos de estupro, crime muitas vezes cometido por integrantes do núcleo familiar e afetivo da mulher. Ela pode não querer denunciar por medo de correr mais risco ou por não ter condições de sair daquela condição naquele momento”, afirma a defensora Nalida Coelho Monte, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensora Pública do Estado de São Paulo.

Ministério da Saúde revogou portaria que criava barreira ao aborto legal em caso de estupro. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Para Agnaldo Lopes, presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a norma feria a autonomia da mulher. “A mulher sofria outra violência, era exposta, o que tornava o processo ainda mais penoso e sofrido”, diz ele.

Para Nadila, a regra também trazia insegurança para os profissionais de saúde, que se sentiam coagidos a comunicar o fato mesmo contra a vontade da mulher e não foram orientados pela norma de como deveriam fazer isso. “Isso fazia com que eles tivessem mais medo de atender as mulheres nessa situação e, em algumas situações, negassem o atendimento”, afirma a especialista.

“A regra era uma barreira administrativa para o acesso ao aborto legal e considerada ilegal por exigir requisitos não previstos em lei. A revogação dessa portaria foi bem-vinda e é importante para que as mulheres mantenham seu direito à dignidade, privacidade e sigilo”, diz Nadila.

Ao anunciar a revogação, a nova gestão do Ministério da Saúde, liderada pela ministra Nísia Trindade, afirmou que a medida “foi necessária pois a publicação trazia uma série de exigências que dificultavam a garantia do acesso aos serviços de saúde pelas mulheres vítimas de violência sexual, sendo contrária aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)”. O órgão afirmou ainda que a portaria representava um “retrocesso aos direitos das mulheres”.

Outras regras da portaria 2.561/2020 se mantêm porque já estavam previstas na norma anterior que regulamentava o tema, a portaria 1.508/2005. Entre as normas obrigatórias para os casos de interrupção de gravidez resultante de estupro estão a necessidade de assinatura pela mulher de Termo de Relato Circunstanciado, descrevendo a violência e características do agressor, e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual ela é informada sobre o procedimento que será realizado, seus riscos e a garantia de sigilo.

As outras duas etapas para a realização do aborto legal em caso de estupro são a avaliação por equipe multiprofissional e a assinatura, pela paciente, de termo de responsabilidade.

Ministério suspendeu nota técnica após reação de parlamentares

Em fevereiro de 2024, após a publicação da primeira versão desta reportagem, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica para orientar serviços de saúde sobre realização do aborto nos casos previstos em lei na qual ressaltava que a legislação atual no Brasil não estabelece prazo para que a interrupção da gravidez ocorra nesses casos e que, portanto, caberia aos serviços de saúde interpretar esse direito e fixar prazos.

A publicação gerou amplas críticas de parlamentares conservadores, que argumentaram que o ministério estaria legislando sobre o aborto. Diante da reação, o ministério suspendeu a nota técnica um dia depois da publicação sob o argumento que a norma não teria passado por todas as esferas necessárias dentro do ministério, inclusive a consultoria jurídica.

Desligamento de declaração internacional antiaborto é ato simbólico

Além de revogar a portaria de 2020, o Ministério da Saúde anunciou o desligamento do País da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, uma iniciativa internacional antiaborto idealizada pelos Estados Unidos em 2020 e assinada por 34 nações.

No documento, endereçado à Organização das Nações Unidas (ONU), os signatários se comprometem a “melhorar e garantir o acesso à saúde e ganhos de desenvolvimento para as mulheres, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, sem incluir o aborto” e afirmam que “não existe direito internacional ao aborto nem qualquer obrigação por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.

A declaração defende ainda que o aborto “não seja promovido como método de planejamento familiar” e que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local”, indicando, assim, que querem que as Nações Unidas se abstenham de promover ações e políticas públicas que possam promover o aborto seguro.

A saída do Brasil do grupo que apoia o documento, medida que já havia sido tomada pelos Estados Unidos após Joe Biden assumir a Presidência, foi comemorada por especialistas em saúde reprodutiva e criticada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas é considerada por especialistas um ato mais simbólico do que prático.

“Embora o desligamento da declaração não tenha nenhuma vinculação nem implique nenhuma obrigação, o ato é importante simbolicamente porque acaba servindo de norteador de normas e políticas públicas locais. Rejeitar essa declaração coloca o Brasil ao lado dos países mais civilizados do mundo em termos de debate sobre os direitos das mulheres”, afirma a defensora Nadila.

Gestão Bolsonaro tentou impor mais barreiras, mas recuou diante de críticas

Antes de publicar a portaria 2.561, em setembro de 2020, com a nova regra que obrigava os profissionais de saúde a comunicarem a polícia sobre casos de violência sexual que resultaram em gravidez e aborto, a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro tentou impor barreiras maiores às mulheres que buscavam aborto legal após uma gravidez decorrente de estupro.

Em agosto de 2020, o ministério publicou a portaria 2.282, que além de criar a obrigatoriedade de relato do caso à polícia, previa que a equipe médica deveria oferecer à paciente a possibilidade “de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia”.

Trazia ainda uma descrição detalhada de riscos raros do procedimento, o que foi visto por especialistas como uma forma de assustar a mulher e desencorajá-la a fazer o procedimento. Após reação de especialistas, ativistas e Poder Judiciário, o ministério recuou e retirou esses dois últimos pontos da norma.

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