Entenda por que o coronavírus é muito diferente da gripe espanhola de 1918


Foi uma doença tão terrível que aterrorizou as pessoas por gerações

Por Gina Kolata

A pandemia de gripe de 1918, considerada a mais mortal da história da humanidade, matou pelo menos 50 milhões de pessoas em todo o mundo (o equivalente a 200 milhões hoje), sendo meio milhão delas habitantes dos Estados Unidos. O vírus se espalhou por todas as partes do mundo, afetando populações de países como Japão, Argentina, Alemanha e dezenas de outros países.

Talvez o mais alarmante é que a maioria dos mortos pela doença estava no auge da vida - geralmente entre 20, 30 e 40 anos - em vez de idosos ou pessoas com a imunidade enfraquecida devido a outras condições médicas.

Coronavírus já foi registrado em mais de cem países e motiva medidas preventivas ao redor do mundo Foto: Rodrigo Buendia / AFP
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À medida que o coronavírus se espalha pelo mundo e a preocupação das pessoas ao redor do globo aumenta, as comparações entre a situação atual e a pandemia de gripe espanhola de 1918 estão se proliferando nos meios de comunicação e nas mídias sociais.

No entanto, mesmo com a atmosfera de medo - com direito a máscaras cirúrgicas, armazenamento de alimentos e assembleias públicas sobre a prevenção da doença - e possíveis consequências econômicas semelhantes às de 1918, a realidade médica é bem diferente.

"Enfermeiras costumavam dar de cara com cenas que remetiam às dos anos da praga do século 14", escreveu o historiador Alfred W. Crosby em America's Forgotten Pandemic: The Influenza of 1918 (Pandemia esquecida pelos Estados Unidos: a gripe espanhola de 1918, em tradução livre). “Uma enfermeira encontrou no mesmo quarto o corpo do marido morto pelo vírus e a esposa com gêmeos recém-nascidos. Vinte e quatro horas haviam se passado desde a morte e o nascimento naquela família, e a esposa tinha comido apenas uma maçã que estava perto dela."

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Em 1918, o mundo era um lugar muito diferente, mesmo sem a influência perturbadora da Primeira Guerra Mundial. Os médicos sabiam que existiam vírus, mas nunca haviam visto um - não havia microscópios eletrônicos, e o material genético dos vírus ainda não havia sido descoberto. Hoje, no entanto, os pesquisadores não apenas sabem como isolar um vírus, mas conseguem identificar sua sequência genética, testar medicamentos antivirais e desenvolver uma vacina.

Em 1918, era impossível testar pessoas com sintomas leves para que pudessem ser colocadas voluntariamente em quarentena. E era quase impraticável fazer o rastreamento do contágio pelo vírus, pois a gripe parecia infectar - e causar pânico em - cidades e comunidades inteiras de uma só vez. Além disso, havia pouco equipamento de proteção para os profissionais de saúde, e os aparelhos com respiradores, que podem ser usados por pessoas muito doentes devido ao coronavírus, não existiam.

Com uma taxa de mortalidade de casos de pelo menos 2,5%, a gripe de 1918 era muito mais mortal que a gripe comum, e tão infecciosa, que se espalhou amplamente e resultou em um número de mortes elevado.

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Pesquisadores acreditam que a gripe de 1918 poupou as pessoas mais velhas porque elas tinham alguma imunidade a ela. Eles teorizam que décadas antes houve uma versão desse vírus, embora não tão letal, que se espalhou como uma gripe comum. Os idosos de 1918 teriam sido expostos a essa gripe e desenvolveram anticorpos. Quanto às crianças, a maioria das doenças virais - sarampo, varicela - são mais mortais em adultos jovens, o que pode explicar por que os mais jovens foram poupados na epidemia de 1918.

Independentemente do motivo, foi um desastre para a expectativa de vida, que despencou. Em 1917, ela era de 51 anos nos Estados Unidos. A marca foi repetida em 1919, mas, em 1918, era de apenas 39 anos.

O novo coronavírus tende a matar pessoas mais velhas e pessoas com imunidade afetada por condições médicas, mas parece não matar crianças. Tudo isso significa que terá muito menos efeito, se houver algum, na expectativa de vida.

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Quanto à taxa de mortalidade dos casos de coronavírus, ela ainda não é conhecida, mas os dados mais recentes da Coreia do Sul, com 7.478 infecções confirmadas, mostram um quadro semelhante ao da gripe sazonal. Depois de testar 100.000 pessoas para saber se estavam ou não contaminadas com o vírus, o país parece ter uma taxa de mortalidade de 0,65%.

O que a situação atual tem em comum com 1918, porém, é o teor da preocupação pública.

Entre os primeiros lugares em que a gripe de 1918 foi identificada, está a instalação militar do exército americano, Fort Devens, perto de Boston. Havia tantos jovens soldados doentes e morrendo que o cirurgião-geral dos Estados Unidos, maior autoridade da saúde pública do país, enviou quatro dos principais médicos especialistas naquele momento para investigar o que acontecia.

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Um deles, William Vaughan, lembrou mais tarde: “Centenas de jovens robustos, vestindo o uniforme de seu país, entravam nas enfermarias do hospital em grupos de 10 ou mais. Eles eram colocados nos leitos até que todas as camas estivessem cheias, e, mesmo assim, muitos acabavam se amontoando nelas. Os rostos deles logo passavam a exibir um tom azulado e tossiam dolorosamente até expectorarem o catarro manchado de sangue. De manhã, os cadáveres eram empilhados no necrotério como se fossem pilhas de madeira."

Relatos como esses apavoraram profundamente os americanos

Em 3 de outubro de 1918, a Filadélfia fechou todas as escolas, igrejas, teatros, piscinas públicas e outros espaços públicos de encontro. As funerárias ficaram sobrecarregadas - algumas inflacionaram tanto os preços que familiares passaram a enterrar com as próprias mãos os parentes mortos.

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Em Tucson, no Arizona, o conselho de saúde proibiu as pessoas de saírem às ruas sem usar máscara. Em Albuquerque, Novo México, onde escolas e teatros foram fechados, um jornal local escreveu: "o fantasma do medo perambula por toda parte".

Ações semelhantes estão sendo tomadas hoje. Seattle fechou algumas escolas públicas. O festival de cultura e tecnologia SXSW, também conhecido como South by Southwest, em Austin, no Texas, foi cancelado. A Apple pediu que os funcionários trabalhassem de casa. Mais de 2.700 pessoas estão sob algum tipo de quarentena na cidade de Nova York. E algumas lojas da rede de varejo Costco estão enfrentando dificuldades em manter água engarrafada em estoque.

Mas até o presente momento, a epidemia anual da gripe sazonal está se mostrando muito mais devastadora do que o coronavírus nos Estados Unidos.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) informa que houve pelo menos 34 milhões de infectados com gripe durante os últimos meses, 350.000 hospitalizações e 20.000 mortes. Esses óbitos incluem 136 crianças, quase 10 vezes mais o número de mortes de adultos causadas pelo coronavírus. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA.

A pandemia de gripe de 1918, considerada a mais mortal da história da humanidade, matou pelo menos 50 milhões de pessoas em todo o mundo (o equivalente a 200 milhões hoje), sendo meio milhão delas habitantes dos Estados Unidos. O vírus se espalhou por todas as partes do mundo, afetando populações de países como Japão, Argentina, Alemanha e dezenas de outros países.

Talvez o mais alarmante é que a maioria dos mortos pela doença estava no auge da vida - geralmente entre 20, 30 e 40 anos - em vez de idosos ou pessoas com a imunidade enfraquecida devido a outras condições médicas.

Coronavírus já foi registrado em mais de cem países e motiva medidas preventivas ao redor do mundo Foto: Rodrigo Buendia / AFP

À medida que o coronavírus se espalha pelo mundo e a preocupação das pessoas ao redor do globo aumenta, as comparações entre a situação atual e a pandemia de gripe espanhola de 1918 estão se proliferando nos meios de comunicação e nas mídias sociais.

No entanto, mesmo com a atmosfera de medo - com direito a máscaras cirúrgicas, armazenamento de alimentos e assembleias públicas sobre a prevenção da doença - e possíveis consequências econômicas semelhantes às de 1918, a realidade médica é bem diferente.

"Enfermeiras costumavam dar de cara com cenas que remetiam às dos anos da praga do século 14", escreveu o historiador Alfred W. Crosby em America's Forgotten Pandemic: The Influenza of 1918 (Pandemia esquecida pelos Estados Unidos: a gripe espanhola de 1918, em tradução livre). “Uma enfermeira encontrou no mesmo quarto o corpo do marido morto pelo vírus e a esposa com gêmeos recém-nascidos. Vinte e quatro horas haviam se passado desde a morte e o nascimento naquela família, e a esposa tinha comido apenas uma maçã que estava perto dela."

Em 1918, o mundo era um lugar muito diferente, mesmo sem a influência perturbadora da Primeira Guerra Mundial. Os médicos sabiam que existiam vírus, mas nunca haviam visto um - não havia microscópios eletrônicos, e o material genético dos vírus ainda não havia sido descoberto. Hoje, no entanto, os pesquisadores não apenas sabem como isolar um vírus, mas conseguem identificar sua sequência genética, testar medicamentos antivirais e desenvolver uma vacina.

Em 1918, era impossível testar pessoas com sintomas leves para que pudessem ser colocadas voluntariamente em quarentena. E era quase impraticável fazer o rastreamento do contágio pelo vírus, pois a gripe parecia infectar - e causar pânico em - cidades e comunidades inteiras de uma só vez. Além disso, havia pouco equipamento de proteção para os profissionais de saúde, e os aparelhos com respiradores, que podem ser usados por pessoas muito doentes devido ao coronavírus, não existiam.

Com uma taxa de mortalidade de casos de pelo menos 2,5%, a gripe de 1918 era muito mais mortal que a gripe comum, e tão infecciosa, que se espalhou amplamente e resultou em um número de mortes elevado.

Pesquisadores acreditam que a gripe de 1918 poupou as pessoas mais velhas porque elas tinham alguma imunidade a ela. Eles teorizam que décadas antes houve uma versão desse vírus, embora não tão letal, que se espalhou como uma gripe comum. Os idosos de 1918 teriam sido expostos a essa gripe e desenvolveram anticorpos. Quanto às crianças, a maioria das doenças virais - sarampo, varicela - são mais mortais em adultos jovens, o que pode explicar por que os mais jovens foram poupados na epidemia de 1918.

Independentemente do motivo, foi um desastre para a expectativa de vida, que despencou. Em 1917, ela era de 51 anos nos Estados Unidos. A marca foi repetida em 1919, mas, em 1918, era de apenas 39 anos.

O novo coronavírus tende a matar pessoas mais velhas e pessoas com imunidade afetada por condições médicas, mas parece não matar crianças. Tudo isso significa que terá muito menos efeito, se houver algum, na expectativa de vida.

Quanto à taxa de mortalidade dos casos de coronavírus, ela ainda não é conhecida, mas os dados mais recentes da Coreia do Sul, com 7.478 infecções confirmadas, mostram um quadro semelhante ao da gripe sazonal. Depois de testar 100.000 pessoas para saber se estavam ou não contaminadas com o vírus, o país parece ter uma taxa de mortalidade de 0,65%.

O que a situação atual tem em comum com 1918, porém, é o teor da preocupação pública.

Entre os primeiros lugares em que a gripe de 1918 foi identificada, está a instalação militar do exército americano, Fort Devens, perto de Boston. Havia tantos jovens soldados doentes e morrendo que o cirurgião-geral dos Estados Unidos, maior autoridade da saúde pública do país, enviou quatro dos principais médicos especialistas naquele momento para investigar o que acontecia.

Um deles, William Vaughan, lembrou mais tarde: “Centenas de jovens robustos, vestindo o uniforme de seu país, entravam nas enfermarias do hospital em grupos de 10 ou mais. Eles eram colocados nos leitos até que todas as camas estivessem cheias, e, mesmo assim, muitos acabavam se amontoando nelas. Os rostos deles logo passavam a exibir um tom azulado e tossiam dolorosamente até expectorarem o catarro manchado de sangue. De manhã, os cadáveres eram empilhados no necrotério como se fossem pilhas de madeira."

Relatos como esses apavoraram profundamente os americanos

Em 3 de outubro de 1918, a Filadélfia fechou todas as escolas, igrejas, teatros, piscinas públicas e outros espaços públicos de encontro. As funerárias ficaram sobrecarregadas - algumas inflacionaram tanto os preços que familiares passaram a enterrar com as próprias mãos os parentes mortos.

Em Tucson, no Arizona, o conselho de saúde proibiu as pessoas de saírem às ruas sem usar máscara. Em Albuquerque, Novo México, onde escolas e teatros foram fechados, um jornal local escreveu: "o fantasma do medo perambula por toda parte".

Ações semelhantes estão sendo tomadas hoje. Seattle fechou algumas escolas públicas. O festival de cultura e tecnologia SXSW, também conhecido como South by Southwest, em Austin, no Texas, foi cancelado. A Apple pediu que os funcionários trabalhassem de casa. Mais de 2.700 pessoas estão sob algum tipo de quarentena na cidade de Nova York. E algumas lojas da rede de varejo Costco estão enfrentando dificuldades em manter água engarrafada em estoque.

Mas até o presente momento, a epidemia anual da gripe sazonal está se mostrando muito mais devastadora do que o coronavírus nos Estados Unidos.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) informa que houve pelo menos 34 milhões de infectados com gripe durante os últimos meses, 350.000 hospitalizações e 20.000 mortes. Esses óbitos incluem 136 crianças, quase 10 vezes mais o número de mortes de adultos causadas pelo coronavírus. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA.

A pandemia de gripe de 1918, considerada a mais mortal da história da humanidade, matou pelo menos 50 milhões de pessoas em todo o mundo (o equivalente a 200 milhões hoje), sendo meio milhão delas habitantes dos Estados Unidos. O vírus se espalhou por todas as partes do mundo, afetando populações de países como Japão, Argentina, Alemanha e dezenas de outros países.

Talvez o mais alarmante é que a maioria dos mortos pela doença estava no auge da vida - geralmente entre 20, 30 e 40 anos - em vez de idosos ou pessoas com a imunidade enfraquecida devido a outras condições médicas.

Coronavírus já foi registrado em mais de cem países e motiva medidas preventivas ao redor do mundo Foto: Rodrigo Buendia / AFP

À medida que o coronavírus se espalha pelo mundo e a preocupação das pessoas ao redor do globo aumenta, as comparações entre a situação atual e a pandemia de gripe espanhola de 1918 estão se proliferando nos meios de comunicação e nas mídias sociais.

No entanto, mesmo com a atmosfera de medo - com direito a máscaras cirúrgicas, armazenamento de alimentos e assembleias públicas sobre a prevenção da doença - e possíveis consequências econômicas semelhantes às de 1918, a realidade médica é bem diferente.

"Enfermeiras costumavam dar de cara com cenas que remetiam às dos anos da praga do século 14", escreveu o historiador Alfred W. Crosby em America's Forgotten Pandemic: The Influenza of 1918 (Pandemia esquecida pelos Estados Unidos: a gripe espanhola de 1918, em tradução livre). “Uma enfermeira encontrou no mesmo quarto o corpo do marido morto pelo vírus e a esposa com gêmeos recém-nascidos. Vinte e quatro horas haviam se passado desde a morte e o nascimento naquela família, e a esposa tinha comido apenas uma maçã que estava perto dela."

Em 1918, o mundo era um lugar muito diferente, mesmo sem a influência perturbadora da Primeira Guerra Mundial. Os médicos sabiam que existiam vírus, mas nunca haviam visto um - não havia microscópios eletrônicos, e o material genético dos vírus ainda não havia sido descoberto. Hoje, no entanto, os pesquisadores não apenas sabem como isolar um vírus, mas conseguem identificar sua sequência genética, testar medicamentos antivirais e desenvolver uma vacina.

Em 1918, era impossível testar pessoas com sintomas leves para que pudessem ser colocadas voluntariamente em quarentena. E era quase impraticável fazer o rastreamento do contágio pelo vírus, pois a gripe parecia infectar - e causar pânico em - cidades e comunidades inteiras de uma só vez. Além disso, havia pouco equipamento de proteção para os profissionais de saúde, e os aparelhos com respiradores, que podem ser usados por pessoas muito doentes devido ao coronavírus, não existiam.

Com uma taxa de mortalidade de casos de pelo menos 2,5%, a gripe de 1918 era muito mais mortal que a gripe comum, e tão infecciosa, que se espalhou amplamente e resultou em um número de mortes elevado.

Pesquisadores acreditam que a gripe de 1918 poupou as pessoas mais velhas porque elas tinham alguma imunidade a ela. Eles teorizam que décadas antes houve uma versão desse vírus, embora não tão letal, que se espalhou como uma gripe comum. Os idosos de 1918 teriam sido expostos a essa gripe e desenvolveram anticorpos. Quanto às crianças, a maioria das doenças virais - sarampo, varicela - são mais mortais em adultos jovens, o que pode explicar por que os mais jovens foram poupados na epidemia de 1918.

Independentemente do motivo, foi um desastre para a expectativa de vida, que despencou. Em 1917, ela era de 51 anos nos Estados Unidos. A marca foi repetida em 1919, mas, em 1918, era de apenas 39 anos.

O novo coronavírus tende a matar pessoas mais velhas e pessoas com imunidade afetada por condições médicas, mas parece não matar crianças. Tudo isso significa que terá muito menos efeito, se houver algum, na expectativa de vida.

Quanto à taxa de mortalidade dos casos de coronavírus, ela ainda não é conhecida, mas os dados mais recentes da Coreia do Sul, com 7.478 infecções confirmadas, mostram um quadro semelhante ao da gripe sazonal. Depois de testar 100.000 pessoas para saber se estavam ou não contaminadas com o vírus, o país parece ter uma taxa de mortalidade de 0,65%.

O que a situação atual tem em comum com 1918, porém, é o teor da preocupação pública.

Entre os primeiros lugares em que a gripe de 1918 foi identificada, está a instalação militar do exército americano, Fort Devens, perto de Boston. Havia tantos jovens soldados doentes e morrendo que o cirurgião-geral dos Estados Unidos, maior autoridade da saúde pública do país, enviou quatro dos principais médicos especialistas naquele momento para investigar o que acontecia.

Um deles, William Vaughan, lembrou mais tarde: “Centenas de jovens robustos, vestindo o uniforme de seu país, entravam nas enfermarias do hospital em grupos de 10 ou mais. Eles eram colocados nos leitos até que todas as camas estivessem cheias, e, mesmo assim, muitos acabavam se amontoando nelas. Os rostos deles logo passavam a exibir um tom azulado e tossiam dolorosamente até expectorarem o catarro manchado de sangue. De manhã, os cadáveres eram empilhados no necrotério como se fossem pilhas de madeira."

Relatos como esses apavoraram profundamente os americanos

Em 3 de outubro de 1918, a Filadélfia fechou todas as escolas, igrejas, teatros, piscinas públicas e outros espaços públicos de encontro. As funerárias ficaram sobrecarregadas - algumas inflacionaram tanto os preços que familiares passaram a enterrar com as próprias mãos os parentes mortos.

Em Tucson, no Arizona, o conselho de saúde proibiu as pessoas de saírem às ruas sem usar máscara. Em Albuquerque, Novo México, onde escolas e teatros foram fechados, um jornal local escreveu: "o fantasma do medo perambula por toda parte".

Ações semelhantes estão sendo tomadas hoje. Seattle fechou algumas escolas públicas. O festival de cultura e tecnologia SXSW, também conhecido como South by Southwest, em Austin, no Texas, foi cancelado. A Apple pediu que os funcionários trabalhassem de casa. Mais de 2.700 pessoas estão sob algum tipo de quarentena na cidade de Nova York. E algumas lojas da rede de varejo Costco estão enfrentando dificuldades em manter água engarrafada em estoque.

Mas até o presente momento, a epidemia anual da gripe sazonal está se mostrando muito mais devastadora do que o coronavírus nos Estados Unidos.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) informa que houve pelo menos 34 milhões de infectados com gripe durante os últimos meses, 350.000 hospitalizações e 20.000 mortes. Esses óbitos incluem 136 crianças, quase 10 vezes mais o número de mortes de adultos causadas pelo coronavírus. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA.

A pandemia de gripe de 1918, considerada a mais mortal da história da humanidade, matou pelo menos 50 milhões de pessoas em todo o mundo (o equivalente a 200 milhões hoje), sendo meio milhão delas habitantes dos Estados Unidos. O vírus se espalhou por todas as partes do mundo, afetando populações de países como Japão, Argentina, Alemanha e dezenas de outros países.

Talvez o mais alarmante é que a maioria dos mortos pela doença estava no auge da vida - geralmente entre 20, 30 e 40 anos - em vez de idosos ou pessoas com a imunidade enfraquecida devido a outras condições médicas.

Coronavírus já foi registrado em mais de cem países e motiva medidas preventivas ao redor do mundo Foto: Rodrigo Buendia / AFP

À medida que o coronavírus se espalha pelo mundo e a preocupação das pessoas ao redor do globo aumenta, as comparações entre a situação atual e a pandemia de gripe espanhola de 1918 estão se proliferando nos meios de comunicação e nas mídias sociais.

No entanto, mesmo com a atmosfera de medo - com direito a máscaras cirúrgicas, armazenamento de alimentos e assembleias públicas sobre a prevenção da doença - e possíveis consequências econômicas semelhantes às de 1918, a realidade médica é bem diferente.

"Enfermeiras costumavam dar de cara com cenas que remetiam às dos anos da praga do século 14", escreveu o historiador Alfred W. Crosby em America's Forgotten Pandemic: The Influenza of 1918 (Pandemia esquecida pelos Estados Unidos: a gripe espanhola de 1918, em tradução livre). “Uma enfermeira encontrou no mesmo quarto o corpo do marido morto pelo vírus e a esposa com gêmeos recém-nascidos. Vinte e quatro horas haviam se passado desde a morte e o nascimento naquela família, e a esposa tinha comido apenas uma maçã que estava perto dela."

Em 1918, o mundo era um lugar muito diferente, mesmo sem a influência perturbadora da Primeira Guerra Mundial. Os médicos sabiam que existiam vírus, mas nunca haviam visto um - não havia microscópios eletrônicos, e o material genético dos vírus ainda não havia sido descoberto. Hoje, no entanto, os pesquisadores não apenas sabem como isolar um vírus, mas conseguem identificar sua sequência genética, testar medicamentos antivirais e desenvolver uma vacina.

Em 1918, era impossível testar pessoas com sintomas leves para que pudessem ser colocadas voluntariamente em quarentena. E era quase impraticável fazer o rastreamento do contágio pelo vírus, pois a gripe parecia infectar - e causar pânico em - cidades e comunidades inteiras de uma só vez. Além disso, havia pouco equipamento de proteção para os profissionais de saúde, e os aparelhos com respiradores, que podem ser usados por pessoas muito doentes devido ao coronavírus, não existiam.

Com uma taxa de mortalidade de casos de pelo menos 2,5%, a gripe de 1918 era muito mais mortal que a gripe comum, e tão infecciosa, que se espalhou amplamente e resultou em um número de mortes elevado.

Pesquisadores acreditam que a gripe de 1918 poupou as pessoas mais velhas porque elas tinham alguma imunidade a ela. Eles teorizam que décadas antes houve uma versão desse vírus, embora não tão letal, que se espalhou como uma gripe comum. Os idosos de 1918 teriam sido expostos a essa gripe e desenvolveram anticorpos. Quanto às crianças, a maioria das doenças virais - sarampo, varicela - são mais mortais em adultos jovens, o que pode explicar por que os mais jovens foram poupados na epidemia de 1918.

Independentemente do motivo, foi um desastre para a expectativa de vida, que despencou. Em 1917, ela era de 51 anos nos Estados Unidos. A marca foi repetida em 1919, mas, em 1918, era de apenas 39 anos.

O novo coronavírus tende a matar pessoas mais velhas e pessoas com imunidade afetada por condições médicas, mas parece não matar crianças. Tudo isso significa que terá muito menos efeito, se houver algum, na expectativa de vida.

Quanto à taxa de mortalidade dos casos de coronavírus, ela ainda não é conhecida, mas os dados mais recentes da Coreia do Sul, com 7.478 infecções confirmadas, mostram um quadro semelhante ao da gripe sazonal. Depois de testar 100.000 pessoas para saber se estavam ou não contaminadas com o vírus, o país parece ter uma taxa de mortalidade de 0,65%.

O que a situação atual tem em comum com 1918, porém, é o teor da preocupação pública.

Entre os primeiros lugares em que a gripe de 1918 foi identificada, está a instalação militar do exército americano, Fort Devens, perto de Boston. Havia tantos jovens soldados doentes e morrendo que o cirurgião-geral dos Estados Unidos, maior autoridade da saúde pública do país, enviou quatro dos principais médicos especialistas naquele momento para investigar o que acontecia.

Um deles, William Vaughan, lembrou mais tarde: “Centenas de jovens robustos, vestindo o uniforme de seu país, entravam nas enfermarias do hospital em grupos de 10 ou mais. Eles eram colocados nos leitos até que todas as camas estivessem cheias, e, mesmo assim, muitos acabavam se amontoando nelas. Os rostos deles logo passavam a exibir um tom azulado e tossiam dolorosamente até expectorarem o catarro manchado de sangue. De manhã, os cadáveres eram empilhados no necrotério como se fossem pilhas de madeira."

Relatos como esses apavoraram profundamente os americanos

Em 3 de outubro de 1918, a Filadélfia fechou todas as escolas, igrejas, teatros, piscinas públicas e outros espaços públicos de encontro. As funerárias ficaram sobrecarregadas - algumas inflacionaram tanto os preços que familiares passaram a enterrar com as próprias mãos os parentes mortos.

Em Tucson, no Arizona, o conselho de saúde proibiu as pessoas de saírem às ruas sem usar máscara. Em Albuquerque, Novo México, onde escolas e teatros foram fechados, um jornal local escreveu: "o fantasma do medo perambula por toda parte".

Ações semelhantes estão sendo tomadas hoje. Seattle fechou algumas escolas públicas. O festival de cultura e tecnologia SXSW, também conhecido como South by Southwest, em Austin, no Texas, foi cancelado. A Apple pediu que os funcionários trabalhassem de casa. Mais de 2.700 pessoas estão sob algum tipo de quarentena na cidade de Nova York. E algumas lojas da rede de varejo Costco estão enfrentando dificuldades em manter água engarrafada em estoque.

Mas até o presente momento, a epidemia anual da gripe sazonal está se mostrando muito mais devastadora do que o coronavírus nos Estados Unidos.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) informa que houve pelo menos 34 milhões de infectados com gripe durante os últimos meses, 350.000 hospitalizações e 20.000 mortes. Esses óbitos incluem 136 crianças, quase 10 vezes mais o número de mortes de adultos causadas pelo coronavírus. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA.

A pandemia de gripe de 1918, considerada a mais mortal da história da humanidade, matou pelo menos 50 milhões de pessoas em todo o mundo (o equivalente a 200 milhões hoje), sendo meio milhão delas habitantes dos Estados Unidos. O vírus se espalhou por todas as partes do mundo, afetando populações de países como Japão, Argentina, Alemanha e dezenas de outros países.

Talvez o mais alarmante é que a maioria dos mortos pela doença estava no auge da vida - geralmente entre 20, 30 e 40 anos - em vez de idosos ou pessoas com a imunidade enfraquecida devido a outras condições médicas.

Coronavírus já foi registrado em mais de cem países e motiva medidas preventivas ao redor do mundo Foto: Rodrigo Buendia / AFP

À medida que o coronavírus se espalha pelo mundo e a preocupação das pessoas ao redor do globo aumenta, as comparações entre a situação atual e a pandemia de gripe espanhola de 1918 estão se proliferando nos meios de comunicação e nas mídias sociais.

No entanto, mesmo com a atmosfera de medo - com direito a máscaras cirúrgicas, armazenamento de alimentos e assembleias públicas sobre a prevenção da doença - e possíveis consequências econômicas semelhantes às de 1918, a realidade médica é bem diferente.

"Enfermeiras costumavam dar de cara com cenas que remetiam às dos anos da praga do século 14", escreveu o historiador Alfred W. Crosby em America's Forgotten Pandemic: The Influenza of 1918 (Pandemia esquecida pelos Estados Unidos: a gripe espanhola de 1918, em tradução livre). “Uma enfermeira encontrou no mesmo quarto o corpo do marido morto pelo vírus e a esposa com gêmeos recém-nascidos. Vinte e quatro horas haviam se passado desde a morte e o nascimento naquela família, e a esposa tinha comido apenas uma maçã que estava perto dela."

Em 1918, o mundo era um lugar muito diferente, mesmo sem a influência perturbadora da Primeira Guerra Mundial. Os médicos sabiam que existiam vírus, mas nunca haviam visto um - não havia microscópios eletrônicos, e o material genético dos vírus ainda não havia sido descoberto. Hoje, no entanto, os pesquisadores não apenas sabem como isolar um vírus, mas conseguem identificar sua sequência genética, testar medicamentos antivirais e desenvolver uma vacina.

Em 1918, era impossível testar pessoas com sintomas leves para que pudessem ser colocadas voluntariamente em quarentena. E era quase impraticável fazer o rastreamento do contágio pelo vírus, pois a gripe parecia infectar - e causar pânico em - cidades e comunidades inteiras de uma só vez. Além disso, havia pouco equipamento de proteção para os profissionais de saúde, e os aparelhos com respiradores, que podem ser usados por pessoas muito doentes devido ao coronavírus, não existiam.

Com uma taxa de mortalidade de casos de pelo menos 2,5%, a gripe de 1918 era muito mais mortal que a gripe comum, e tão infecciosa, que se espalhou amplamente e resultou em um número de mortes elevado.

Pesquisadores acreditam que a gripe de 1918 poupou as pessoas mais velhas porque elas tinham alguma imunidade a ela. Eles teorizam que décadas antes houve uma versão desse vírus, embora não tão letal, que se espalhou como uma gripe comum. Os idosos de 1918 teriam sido expostos a essa gripe e desenvolveram anticorpos. Quanto às crianças, a maioria das doenças virais - sarampo, varicela - são mais mortais em adultos jovens, o que pode explicar por que os mais jovens foram poupados na epidemia de 1918.

Independentemente do motivo, foi um desastre para a expectativa de vida, que despencou. Em 1917, ela era de 51 anos nos Estados Unidos. A marca foi repetida em 1919, mas, em 1918, era de apenas 39 anos.

O novo coronavírus tende a matar pessoas mais velhas e pessoas com imunidade afetada por condições médicas, mas parece não matar crianças. Tudo isso significa que terá muito menos efeito, se houver algum, na expectativa de vida.

Quanto à taxa de mortalidade dos casos de coronavírus, ela ainda não é conhecida, mas os dados mais recentes da Coreia do Sul, com 7.478 infecções confirmadas, mostram um quadro semelhante ao da gripe sazonal. Depois de testar 100.000 pessoas para saber se estavam ou não contaminadas com o vírus, o país parece ter uma taxa de mortalidade de 0,65%.

O que a situação atual tem em comum com 1918, porém, é o teor da preocupação pública.

Entre os primeiros lugares em que a gripe de 1918 foi identificada, está a instalação militar do exército americano, Fort Devens, perto de Boston. Havia tantos jovens soldados doentes e morrendo que o cirurgião-geral dos Estados Unidos, maior autoridade da saúde pública do país, enviou quatro dos principais médicos especialistas naquele momento para investigar o que acontecia.

Um deles, William Vaughan, lembrou mais tarde: “Centenas de jovens robustos, vestindo o uniforme de seu país, entravam nas enfermarias do hospital em grupos de 10 ou mais. Eles eram colocados nos leitos até que todas as camas estivessem cheias, e, mesmo assim, muitos acabavam se amontoando nelas. Os rostos deles logo passavam a exibir um tom azulado e tossiam dolorosamente até expectorarem o catarro manchado de sangue. De manhã, os cadáveres eram empilhados no necrotério como se fossem pilhas de madeira."

Relatos como esses apavoraram profundamente os americanos

Em 3 de outubro de 1918, a Filadélfia fechou todas as escolas, igrejas, teatros, piscinas públicas e outros espaços públicos de encontro. As funerárias ficaram sobrecarregadas - algumas inflacionaram tanto os preços que familiares passaram a enterrar com as próprias mãos os parentes mortos.

Em Tucson, no Arizona, o conselho de saúde proibiu as pessoas de saírem às ruas sem usar máscara. Em Albuquerque, Novo México, onde escolas e teatros foram fechados, um jornal local escreveu: "o fantasma do medo perambula por toda parte".

Ações semelhantes estão sendo tomadas hoje. Seattle fechou algumas escolas públicas. O festival de cultura e tecnologia SXSW, também conhecido como South by Southwest, em Austin, no Texas, foi cancelado. A Apple pediu que os funcionários trabalhassem de casa. Mais de 2.700 pessoas estão sob algum tipo de quarentena na cidade de Nova York. E algumas lojas da rede de varejo Costco estão enfrentando dificuldades em manter água engarrafada em estoque.

Mas até o presente momento, a epidemia anual da gripe sazonal está se mostrando muito mais devastadora do que o coronavírus nos Estados Unidos.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) informa que houve pelo menos 34 milhões de infectados com gripe durante os últimos meses, 350.000 hospitalizações e 20.000 mortes. Esses óbitos incluem 136 crianças, quase 10 vezes mais o número de mortes de adultos causadas pelo coronavírus. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA.

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