''Esta não é mais a Osesp que eu criei''


O maestro John Neschling lança livro e fala sobre passado, presente e futuro

Por João Luiz Sampaio

"Eu estou vivo", brinca o maestro John Neschling, um sorriso no rosto. Quase um ano após sua saída da direção da Osesp, ele está de volta. Na segunda, lança na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, a partir das 18h30, o livro Música Mundana (Rocco), em que mistura histórias da carreira com o relato da criação do projeto Osesp e de sua demissão do grupo. Não há grandes revelações - e supreende o tom contido com que Neschling conduz a narrativa. O maestro sem papas na língua está mais calmo? Não exatamente. Na entrevista concedida ao Estado ele fala sobre sua formação entre a Europa e o Brasil, a busca interna por uma identidade e, claro, sobre Osesp - diz que a tristeza pela maneira como foi demitido jamais vai passar e afirma: "Essa não é mais a minha orquestra."ESCREVEREu sempre gostei de escrever, é algo que faço bastante, mas esta foi a primeira vez que pensei no contexto de um livro. Mas fiquei com vontade, não agora, mais para frente, de fazer outro. Não na linha de memórias, mas talvez um livro sobre a música expressionista, a música da primeira metade do século 20. Ou sobre ópera, não causos ou algo parecido. Queria falar sobre a estrutura das grandes obras. Outro tema é o ato de reger. Em Música Mundana, falo sobre a figura do maestro, mas não toco no ato de reger em si. Mas nada que fique muito técnico. E tem meus anos de Rio, meu trabalho como compositor de trilhas de teatro, de cinema, minha atuação política no Partido Verde. Enfim, tem muita coisa, mas não agora. Mas também não vai demorar muito. E, claro, tem os próximos projetos. Saí da Osesp, mas continuo aqui. Estou vivo.REVELAÇÕESOlha, eu não entendo. Você escreveu que ficou decepcionado com a falta de revelações. Se eu solto o verbo, dizem que não sei me conter. Se não solto, as pessoas ficam decepcionadas... (Risos) Deu o maior trabalho para ficar me segurando e vocês reclamam? (Risos) Eu ia escrever sobre o quê? O episódio do You Tube, todo mundo sabe, aconteceu, pronto. O que eu queria era me ocupar de uma questão importante para mim, falar da minha identidade, de uma parte estrutural da minha personalidade, e do projeto que criei nos últimos anos.LATINO OU EUROPEU?Olha, estive em Atenas no começo do ano como regente convidado. Um dia antes do primeiro concerto, a guia que nos acompanhava disse: "Maestro, não se assuste se no primeiro dia a sala não estiver cheia. É que a música sinfônica não faz parte da nossa cultura." Deus do céu, eles são o berço de tudo, como que não é a nossa cultura? Cada vez mais entendo que a música sinfônica é uma criação centro européia, talvez até anglosaxônica. Mas isso não tem mais importância neste mundo globalizado, onde o contato é constante. Hoje você tem boas orquestras na Islândia, no Japão. A China anunciou que vai criar 200 orquestras na próxima década. A música, entenda, nunca foi uma questão para mim, o entendimento da linguagem nunca foi um problema. A questão era outra. A que terra eu pertenço? A que organização mental?IDENTIDADE E "ORGANIZAÇÃO MENTAL"Uma orquestra sinfônica, ela funciona na mentalidade anglosaxônica, é dessa cultura que ela vem. Orquestras latinas são fenômeno relativamente recente e pouco a pouco vamos aprendendo. A Osesp, para mim, foi uma questão de organização de pensamento. Bons músicos o Brasil tem, não é esse o problema, você tem aos montes. O problema é mudar a estrutura de trabalho. Então, a questão da identidade, para mim, tem duas facetas. Uma pessoal, telúrica: a que cultura pertenço, a luta interna dentro de mim para entender e descobrir meu pertencimento. E outra em termos de estrutura de pensamento, que é necessária para construir algo que não existia aqui, que era novo. A sociedade civil latina é mais bagunçada e calcada no indivíduo, é que nem no futebol, não tem só time, tem craque. Olha o tráfego em Nápoles: eu brinco que é a única experiência mundial de autogestão no tráfego (Risos). Nesse sentido, a Osesp me fez um bem danado, me fez entender melhor o Brasil, eu vivi aqui esse tempo todo, trabalhei com músicos, tive de aprender a me entender com a política. Nem sempre com sucesso, claro (Risos).PERSONALIDADEEu toco nessa questão do comportamento, na necessidade, quando cheguei à Osesp, de contrariar certas tradições de pensamento e estabelecer novos parâmetros. Mas não tem outro jeito, senão vira Fellini, Ensaio de Orquestra. Não é autoritarismo, não é verdade, é a busca por um novo modo de pensar e trabalhar. Eu sei que eu não sou fácil, nem aqui nem na Áustria. Mas isso faz parte do fogo que eu tenho de criar, de construir. Sei que fui perseguido por isso e talvez fosse mais fácil aceitar o que te dão, mas eu não sou assim. A VIDA PÓS-OSESPEstive em Buenos Aires no começo do ano e volto ano que vem para dirigir um Don Giovanni e fazer alguns concertos, além de ter convites em Palermo, Suíça, Espanha e na França, para onde vou agora receber o prêmio Diapason pelos Choros do Villa. Aliás, estou pensando em sugerir lá uma série integral dos Choros com a Orquestra Nacional da França, vamos ver. O negócio é que a ruptura com a Osesp foi tão traumática, tão forte na minha vida, uma amputação, que quando cheguei para reger a orquestra do Colón nunca havia me sentido tão livre. O convidado tem uma relação de amante, não de marido.MÁGOAHoje vivo uma vida muito mais tranquila do que antes. O que me machuca é a violência, a turbulência. Trabalhei 12 anos lá, tive glórias e dificuldades, como acontece em todo casamento. Mas me magoou demais a maneira como fui demitido, a truculência, a deselegância que não combina com os discursos de civilidade que o conselho da Fundação gosta de pregar. Eu estava fora do País, fui demitido por carta, e isso não se faz. Não recebi até hoje nenhum dos meus direitos. E me incomoda a maneira como agora eles narram a história do grupo como se eu não fizesse parte desta história, como se esse projeto não fosse meu. Essa tristeza não vai passar nunca. De resto, não me arrependo de nada. Quando comecei na orquestra, a cada dia eu pensava: um dia a menos à frente da Osesp. Eu nunca achei que fosse ficar para sempre na Osesp, sabia que ia acabar. Mas não esperava que fosse dessa forma, não mesmo.UM POSSÍVEL RETORNO?Eu te dou uma resposta agora e uma daqui a alguns anos. Agora é não, não há a menor possibilidade. Essa não é a orquestra que eu criei, não é mais meu projeto, os músicos agora tem outros ideais, o trabalho é conduzido de outra forma. Não sei como está a orquestra, nunca mais voltei à Sala São Paulo. Mas, desse jeito, com esses ideais, não faz sentido, não volto. Para que requentar o café? Não é mais o café que eu fiz, já é outro. Agora, no futuro: não sou idiota o suficiente para dizer que nunca mais vou reger a Osesp. Mas, para isso acontecer, vai ter de mudar muita coisa na minha vida e na Osesp. A Osesp já existia antes de mim e vai continuar existindo. Mas meu sonho de Osesp acabou.OUTRA OSESPNão ouvi mais a orquestra, não sei da sonoridade. Mas essa questão do aumento dos ingressos, de criação de taxas para os assinantes. É uma falta de modéstia, um desrespeito ao público mais fiel que é justamente o assinante, que vestia a camisa da Osesp, acompanhava em turnê, defendia os músicos em todas as polêmicas. Que sentido pode haver em tratar mal esse público? E com gente ainda dando desculpa esfarrapada, falando em curva de aprendizado, dizendo que se a orquestra mudou, o público também deve mudar. O que isso quer dizer? Agora, o que sei sobre isso é o que li nos jornais, é o que sai na imprensa. Nunca mais pisei na Sala São Paulo. Frases"A ruptura com a Osesp foi tão traumática, uma amputação, que quando cheguei em maio para reger a orquestra do Colón, em Buenos Aires, nunca havia me sentido tão livre. O maestro convidado tem uma relação de amante, nãode marido.""Eu sei que eu não sou fácil, nem aqui nem na Áustrianem em lugar algum. Mas isso faz parte do fogo que eu tenho de criar, de construir."Serviço Música Mundana. De John Neschling. Editora Rocco. 192 pág. R$ 29,50. Livraria Cultura. Av. Paulista, 2.073, 3170-4033. 2.ª, 18h30

"Eu estou vivo", brinca o maestro John Neschling, um sorriso no rosto. Quase um ano após sua saída da direção da Osesp, ele está de volta. Na segunda, lança na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, a partir das 18h30, o livro Música Mundana (Rocco), em que mistura histórias da carreira com o relato da criação do projeto Osesp e de sua demissão do grupo. Não há grandes revelações - e supreende o tom contido com que Neschling conduz a narrativa. O maestro sem papas na língua está mais calmo? Não exatamente. Na entrevista concedida ao Estado ele fala sobre sua formação entre a Europa e o Brasil, a busca interna por uma identidade e, claro, sobre Osesp - diz que a tristeza pela maneira como foi demitido jamais vai passar e afirma: "Essa não é mais a minha orquestra."ESCREVEREu sempre gostei de escrever, é algo que faço bastante, mas esta foi a primeira vez que pensei no contexto de um livro. Mas fiquei com vontade, não agora, mais para frente, de fazer outro. Não na linha de memórias, mas talvez um livro sobre a música expressionista, a música da primeira metade do século 20. Ou sobre ópera, não causos ou algo parecido. Queria falar sobre a estrutura das grandes obras. Outro tema é o ato de reger. Em Música Mundana, falo sobre a figura do maestro, mas não toco no ato de reger em si. Mas nada que fique muito técnico. E tem meus anos de Rio, meu trabalho como compositor de trilhas de teatro, de cinema, minha atuação política no Partido Verde. Enfim, tem muita coisa, mas não agora. Mas também não vai demorar muito. E, claro, tem os próximos projetos. Saí da Osesp, mas continuo aqui. Estou vivo.REVELAÇÕESOlha, eu não entendo. Você escreveu que ficou decepcionado com a falta de revelações. Se eu solto o verbo, dizem que não sei me conter. Se não solto, as pessoas ficam decepcionadas... (Risos) Deu o maior trabalho para ficar me segurando e vocês reclamam? (Risos) Eu ia escrever sobre o quê? O episódio do You Tube, todo mundo sabe, aconteceu, pronto. O que eu queria era me ocupar de uma questão importante para mim, falar da minha identidade, de uma parte estrutural da minha personalidade, e do projeto que criei nos últimos anos.LATINO OU EUROPEU?Olha, estive em Atenas no começo do ano como regente convidado. Um dia antes do primeiro concerto, a guia que nos acompanhava disse: "Maestro, não se assuste se no primeiro dia a sala não estiver cheia. É que a música sinfônica não faz parte da nossa cultura." Deus do céu, eles são o berço de tudo, como que não é a nossa cultura? Cada vez mais entendo que a música sinfônica é uma criação centro européia, talvez até anglosaxônica. Mas isso não tem mais importância neste mundo globalizado, onde o contato é constante. Hoje você tem boas orquestras na Islândia, no Japão. A China anunciou que vai criar 200 orquestras na próxima década. A música, entenda, nunca foi uma questão para mim, o entendimento da linguagem nunca foi um problema. A questão era outra. A que terra eu pertenço? A que organização mental?IDENTIDADE E "ORGANIZAÇÃO MENTAL"Uma orquestra sinfônica, ela funciona na mentalidade anglosaxônica, é dessa cultura que ela vem. Orquestras latinas são fenômeno relativamente recente e pouco a pouco vamos aprendendo. A Osesp, para mim, foi uma questão de organização de pensamento. Bons músicos o Brasil tem, não é esse o problema, você tem aos montes. O problema é mudar a estrutura de trabalho. Então, a questão da identidade, para mim, tem duas facetas. Uma pessoal, telúrica: a que cultura pertenço, a luta interna dentro de mim para entender e descobrir meu pertencimento. E outra em termos de estrutura de pensamento, que é necessária para construir algo que não existia aqui, que era novo. A sociedade civil latina é mais bagunçada e calcada no indivíduo, é que nem no futebol, não tem só time, tem craque. Olha o tráfego em Nápoles: eu brinco que é a única experiência mundial de autogestão no tráfego (Risos). Nesse sentido, a Osesp me fez um bem danado, me fez entender melhor o Brasil, eu vivi aqui esse tempo todo, trabalhei com músicos, tive de aprender a me entender com a política. Nem sempre com sucesso, claro (Risos).PERSONALIDADEEu toco nessa questão do comportamento, na necessidade, quando cheguei à Osesp, de contrariar certas tradições de pensamento e estabelecer novos parâmetros. Mas não tem outro jeito, senão vira Fellini, Ensaio de Orquestra. Não é autoritarismo, não é verdade, é a busca por um novo modo de pensar e trabalhar. Eu sei que eu não sou fácil, nem aqui nem na Áustria. Mas isso faz parte do fogo que eu tenho de criar, de construir. Sei que fui perseguido por isso e talvez fosse mais fácil aceitar o que te dão, mas eu não sou assim. A VIDA PÓS-OSESPEstive em Buenos Aires no começo do ano e volto ano que vem para dirigir um Don Giovanni e fazer alguns concertos, além de ter convites em Palermo, Suíça, Espanha e na França, para onde vou agora receber o prêmio Diapason pelos Choros do Villa. Aliás, estou pensando em sugerir lá uma série integral dos Choros com a Orquestra Nacional da França, vamos ver. O negócio é que a ruptura com a Osesp foi tão traumática, tão forte na minha vida, uma amputação, que quando cheguei para reger a orquestra do Colón nunca havia me sentido tão livre. O convidado tem uma relação de amante, não de marido.MÁGOAHoje vivo uma vida muito mais tranquila do que antes. O que me machuca é a violência, a turbulência. Trabalhei 12 anos lá, tive glórias e dificuldades, como acontece em todo casamento. Mas me magoou demais a maneira como fui demitido, a truculência, a deselegância que não combina com os discursos de civilidade que o conselho da Fundação gosta de pregar. Eu estava fora do País, fui demitido por carta, e isso não se faz. Não recebi até hoje nenhum dos meus direitos. E me incomoda a maneira como agora eles narram a história do grupo como se eu não fizesse parte desta história, como se esse projeto não fosse meu. Essa tristeza não vai passar nunca. De resto, não me arrependo de nada. Quando comecei na orquestra, a cada dia eu pensava: um dia a menos à frente da Osesp. Eu nunca achei que fosse ficar para sempre na Osesp, sabia que ia acabar. Mas não esperava que fosse dessa forma, não mesmo.UM POSSÍVEL RETORNO?Eu te dou uma resposta agora e uma daqui a alguns anos. Agora é não, não há a menor possibilidade. Essa não é a orquestra que eu criei, não é mais meu projeto, os músicos agora tem outros ideais, o trabalho é conduzido de outra forma. Não sei como está a orquestra, nunca mais voltei à Sala São Paulo. Mas, desse jeito, com esses ideais, não faz sentido, não volto. Para que requentar o café? Não é mais o café que eu fiz, já é outro. Agora, no futuro: não sou idiota o suficiente para dizer que nunca mais vou reger a Osesp. Mas, para isso acontecer, vai ter de mudar muita coisa na minha vida e na Osesp. A Osesp já existia antes de mim e vai continuar existindo. Mas meu sonho de Osesp acabou.OUTRA OSESPNão ouvi mais a orquestra, não sei da sonoridade. Mas essa questão do aumento dos ingressos, de criação de taxas para os assinantes. É uma falta de modéstia, um desrespeito ao público mais fiel que é justamente o assinante, que vestia a camisa da Osesp, acompanhava em turnê, defendia os músicos em todas as polêmicas. Que sentido pode haver em tratar mal esse público? E com gente ainda dando desculpa esfarrapada, falando em curva de aprendizado, dizendo que se a orquestra mudou, o público também deve mudar. O que isso quer dizer? Agora, o que sei sobre isso é o que li nos jornais, é o que sai na imprensa. Nunca mais pisei na Sala São Paulo. Frases"A ruptura com a Osesp foi tão traumática, uma amputação, que quando cheguei em maio para reger a orquestra do Colón, em Buenos Aires, nunca havia me sentido tão livre. O maestro convidado tem uma relação de amante, nãode marido.""Eu sei que eu não sou fácil, nem aqui nem na Áustrianem em lugar algum. Mas isso faz parte do fogo que eu tenho de criar, de construir."Serviço Música Mundana. De John Neschling. Editora Rocco. 192 pág. R$ 29,50. Livraria Cultura. Av. Paulista, 2.073, 3170-4033. 2.ª, 18h30

"Eu estou vivo", brinca o maestro John Neschling, um sorriso no rosto. Quase um ano após sua saída da direção da Osesp, ele está de volta. Na segunda, lança na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, a partir das 18h30, o livro Música Mundana (Rocco), em que mistura histórias da carreira com o relato da criação do projeto Osesp e de sua demissão do grupo. Não há grandes revelações - e supreende o tom contido com que Neschling conduz a narrativa. O maestro sem papas na língua está mais calmo? Não exatamente. Na entrevista concedida ao Estado ele fala sobre sua formação entre a Europa e o Brasil, a busca interna por uma identidade e, claro, sobre Osesp - diz que a tristeza pela maneira como foi demitido jamais vai passar e afirma: "Essa não é mais a minha orquestra."ESCREVEREu sempre gostei de escrever, é algo que faço bastante, mas esta foi a primeira vez que pensei no contexto de um livro. Mas fiquei com vontade, não agora, mais para frente, de fazer outro. Não na linha de memórias, mas talvez um livro sobre a música expressionista, a música da primeira metade do século 20. Ou sobre ópera, não causos ou algo parecido. Queria falar sobre a estrutura das grandes obras. Outro tema é o ato de reger. Em Música Mundana, falo sobre a figura do maestro, mas não toco no ato de reger em si. Mas nada que fique muito técnico. E tem meus anos de Rio, meu trabalho como compositor de trilhas de teatro, de cinema, minha atuação política no Partido Verde. Enfim, tem muita coisa, mas não agora. Mas também não vai demorar muito. E, claro, tem os próximos projetos. Saí da Osesp, mas continuo aqui. Estou vivo.REVELAÇÕESOlha, eu não entendo. Você escreveu que ficou decepcionado com a falta de revelações. Se eu solto o verbo, dizem que não sei me conter. Se não solto, as pessoas ficam decepcionadas... (Risos) Deu o maior trabalho para ficar me segurando e vocês reclamam? (Risos) Eu ia escrever sobre o quê? O episódio do You Tube, todo mundo sabe, aconteceu, pronto. O que eu queria era me ocupar de uma questão importante para mim, falar da minha identidade, de uma parte estrutural da minha personalidade, e do projeto que criei nos últimos anos.LATINO OU EUROPEU?Olha, estive em Atenas no começo do ano como regente convidado. Um dia antes do primeiro concerto, a guia que nos acompanhava disse: "Maestro, não se assuste se no primeiro dia a sala não estiver cheia. É que a música sinfônica não faz parte da nossa cultura." Deus do céu, eles são o berço de tudo, como que não é a nossa cultura? Cada vez mais entendo que a música sinfônica é uma criação centro européia, talvez até anglosaxônica. Mas isso não tem mais importância neste mundo globalizado, onde o contato é constante. Hoje você tem boas orquestras na Islândia, no Japão. A China anunciou que vai criar 200 orquestras na próxima década. A música, entenda, nunca foi uma questão para mim, o entendimento da linguagem nunca foi um problema. A questão era outra. A que terra eu pertenço? A que organização mental?IDENTIDADE E "ORGANIZAÇÃO MENTAL"Uma orquestra sinfônica, ela funciona na mentalidade anglosaxônica, é dessa cultura que ela vem. Orquestras latinas são fenômeno relativamente recente e pouco a pouco vamos aprendendo. A Osesp, para mim, foi uma questão de organização de pensamento. Bons músicos o Brasil tem, não é esse o problema, você tem aos montes. O problema é mudar a estrutura de trabalho. Então, a questão da identidade, para mim, tem duas facetas. Uma pessoal, telúrica: a que cultura pertenço, a luta interna dentro de mim para entender e descobrir meu pertencimento. E outra em termos de estrutura de pensamento, que é necessária para construir algo que não existia aqui, que era novo. A sociedade civil latina é mais bagunçada e calcada no indivíduo, é que nem no futebol, não tem só time, tem craque. Olha o tráfego em Nápoles: eu brinco que é a única experiência mundial de autogestão no tráfego (Risos). Nesse sentido, a Osesp me fez um bem danado, me fez entender melhor o Brasil, eu vivi aqui esse tempo todo, trabalhei com músicos, tive de aprender a me entender com a política. Nem sempre com sucesso, claro (Risos).PERSONALIDADEEu toco nessa questão do comportamento, na necessidade, quando cheguei à Osesp, de contrariar certas tradições de pensamento e estabelecer novos parâmetros. Mas não tem outro jeito, senão vira Fellini, Ensaio de Orquestra. Não é autoritarismo, não é verdade, é a busca por um novo modo de pensar e trabalhar. Eu sei que eu não sou fácil, nem aqui nem na Áustria. Mas isso faz parte do fogo que eu tenho de criar, de construir. Sei que fui perseguido por isso e talvez fosse mais fácil aceitar o que te dão, mas eu não sou assim. A VIDA PÓS-OSESPEstive em Buenos Aires no começo do ano e volto ano que vem para dirigir um Don Giovanni e fazer alguns concertos, além de ter convites em Palermo, Suíça, Espanha e na França, para onde vou agora receber o prêmio Diapason pelos Choros do Villa. Aliás, estou pensando em sugerir lá uma série integral dos Choros com a Orquestra Nacional da França, vamos ver. O negócio é que a ruptura com a Osesp foi tão traumática, tão forte na minha vida, uma amputação, que quando cheguei para reger a orquestra do Colón nunca havia me sentido tão livre. O convidado tem uma relação de amante, não de marido.MÁGOAHoje vivo uma vida muito mais tranquila do que antes. O que me machuca é a violência, a turbulência. Trabalhei 12 anos lá, tive glórias e dificuldades, como acontece em todo casamento. Mas me magoou demais a maneira como fui demitido, a truculência, a deselegância que não combina com os discursos de civilidade que o conselho da Fundação gosta de pregar. Eu estava fora do País, fui demitido por carta, e isso não se faz. Não recebi até hoje nenhum dos meus direitos. E me incomoda a maneira como agora eles narram a história do grupo como se eu não fizesse parte desta história, como se esse projeto não fosse meu. Essa tristeza não vai passar nunca. De resto, não me arrependo de nada. Quando comecei na orquestra, a cada dia eu pensava: um dia a menos à frente da Osesp. Eu nunca achei que fosse ficar para sempre na Osesp, sabia que ia acabar. Mas não esperava que fosse dessa forma, não mesmo.UM POSSÍVEL RETORNO?Eu te dou uma resposta agora e uma daqui a alguns anos. Agora é não, não há a menor possibilidade. Essa não é a orquestra que eu criei, não é mais meu projeto, os músicos agora tem outros ideais, o trabalho é conduzido de outra forma. Não sei como está a orquestra, nunca mais voltei à Sala São Paulo. Mas, desse jeito, com esses ideais, não faz sentido, não volto. Para que requentar o café? Não é mais o café que eu fiz, já é outro. Agora, no futuro: não sou idiota o suficiente para dizer que nunca mais vou reger a Osesp. Mas, para isso acontecer, vai ter de mudar muita coisa na minha vida e na Osesp. A Osesp já existia antes de mim e vai continuar existindo. Mas meu sonho de Osesp acabou.OUTRA OSESPNão ouvi mais a orquestra, não sei da sonoridade. Mas essa questão do aumento dos ingressos, de criação de taxas para os assinantes. É uma falta de modéstia, um desrespeito ao público mais fiel que é justamente o assinante, que vestia a camisa da Osesp, acompanhava em turnê, defendia os músicos em todas as polêmicas. Que sentido pode haver em tratar mal esse público? E com gente ainda dando desculpa esfarrapada, falando em curva de aprendizado, dizendo que se a orquestra mudou, o público também deve mudar. O que isso quer dizer? Agora, o que sei sobre isso é o que li nos jornais, é o que sai na imprensa. Nunca mais pisei na Sala São Paulo. Frases"A ruptura com a Osesp foi tão traumática, uma amputação, que quando cheguei em maio para reger a orquestra do Colón, em Buenos Aires, nunca havia me sentido tão livre. O maestro convidado tem uma relação de amante, nãode marido.""Eu sei que eu não sou fácil, nem aqui nem na Áustrianem em lugar algum. Mas isso faz parte do fogo que eu tenho de criar, de construir."Serviço Música Mundana. De John Neschling. Editora Rocco. 192 pág. R$ 29,50. Livraria Cultura. Av. Paulista, 2.073, 3170-4033. 2.ª, 18h30

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.