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Ex-diplomata de 93 anos reivindica carreira de volta após ser expulsa do Itamaraty por casamento com colega


Por Rádio Eldorado

Por Carolina Ercolin e Luciana Garbin

 

A paulista Cecília Maria do Amaral Prada tenta, há pelo menos meio século, voltar ao serviço diplomático brasileiro após ser obrigada a abandonar a carreira por uma regra sexista do Ministério das Relações Exteriores (MRE). 

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Ela foi uma das primeiras mulheres formadas pelo Instituto Rio Branco, que prepara os diplomatas para o Itamaraty. Aos 93 anos, a também jornalista se diz arrependida de não ter levado a cabo a contestação da norma que, ainda em 1958, proibia o exercício da profissão às mulheres que casassem com um colega diplomata. 

Cecília e Sérgio Paulo Rouanet, que se tornaria embaixador do Brasil na Dinamarca e na República Tcheca, ministro da Cultura e autor da Lei de Incentivo à Cultura, foram casados por 15 anos e tiveram três filhos. Desde o divórcio, na década de 1970, ela tenta ser reintegrada ao Itamaraty, serviço pelo qual poderia estar aposentada hoje. 

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Durante a conversa nos estúdios da Rádio Eldorado em São Paulo, Cecília se descreve hoje como feminista, mas admite que sua adesão ao movimento demorou décadas para amadurecer. 

"É interessante minha vida. Eu não sou feminista de ouvir cursinho, eu sou feminista a posteriori, depois de sofrer. A minha geração entendia que 'o mundo é assim', machista, (...) mas, de repente, quando você perde tudo aquilo pelo que tinha vivido, diz 'pombas, a coisa é feia. Estou atingida, isso não pode ser normal'", desabafa. 

 
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(Foto: Felipe Rau/Estadão)

A diplomata se refere às barreiras que se sucederam ao longo da vida para exercer as aspirações de estudar e trabalhar, ainda que não fossem comuns às jovens da década de 1940, que haviam recentemente conquistado o direito ao voto. "Quando eu tinha 10 anos comecei a escrever contos e dizia à minha mãe que queria ir para academia. Ela morria de rir e explicava que mulher não entrava lá", lembra. 

Ainda assim, Cecília se formou em Letras Neolatinas e em Jornalismo, em 1951, nas turmas inaugurais dos cursos no País. Ao concluir também a graduação no Instituto Rio Branco, anos depois, Prada conta que se viu obrigada pelo Itamaraty a deixar o ofício, com base em um decreto que obrigava a exoneração das servidoras casadas com diplomatas. 

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Foi somente em 1996 que foi garantida a igualdade de direitos entre homens e mulheres na diplomacia. O 'Estatuto da Mulher Casada', por exemplo, marco de mudanças na legislação conservadora do país, só foi criado anos depois, em 1962, permitindo que esposas não precisassem mais da autorização do marido para trabalhar. 

Cecília entendia a restrição imposta pelo governo como inconstitucional, mas o contexto da época a desencorajou a abrir uma reclamação formal. "Na época do meu casamento, eu achava que era assim mesmo. Que uma mulher que fez o curso realmente tinha que abrir mão de tudo para casar e ter filhos. E eu queria casar e ter filhos! Se me arrependo de não ter brigado pela carreira? Sim, mas era difícil. Como eu ia brigar com a União, meu patrão? Eu ia para a cadeia ou ia ser expulsa", lamenta. 

 
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(Foto: Felipe Rau/Estadao)

Pesou em sua decisão o que nomeia como o 'realismo' de Rouanet para não prejudicar a trajetória em comum do casal. Ouviu do marido o pedido para que desistisse de afrontar as regras que, agora, consegue identificar como machistas. "Sérgio Paulo Rouanet, que acabou por ser um marido muito bom, ao me ver tentada a fazer um mandado de segurança para contestar a regra do Itamaraty, me fez o apelo: 'Eu peço a você que não faça isso porque vai prejudicar minha carreira. Isso não deve ser entendido como uma coisa egoísta'. Sérgio falou com realismo do que ia acontecer, iríamos ser dois perseguidos. Em vez de irmos para Washington, Nova York e Genebra, como fomos, iríamos para Calcutá, Honduras e Tombuctu [postos de menos prestígio]. Ou seja, estaríamos fora do Itamaraty. Então, me conformei e fui ser dona de casa - ocupação na qual tive uma longa carreira".

Ao longo das décadas seguintes, foram várias as tentativas para reaver o posto na diplomacia brasileira, todos sem sucesso. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu sua história como "caso emblemático nacional de discriminação contra a mulher". "Nestes últimos quatro anos eu me mantive na minha catacumba, escrevendo meus livros. Agora eu saí e estou aqui também porque quero ajudar as mulheres. As que ainda não são feministas, precisamos entender o porquê, ainda que seja uma questão de geração e que não se resolva em uma, duas ou 50 gerações".

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Cecília se mostra hoje mais esperançosa a partir de movimentos de renovação que observa na gestão federal e em ações afirmativas, como a fundação da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) em janeiro desde ano. O grupo tem reivindicado medidas que podem ser tomadas pelo Ministério das Relações Exteriores para combater a desigualdade de gênero em seus quadros. Hoje, 23% dos diplomatas são mulheres, mas elas ocupam apenas 12,2% dos postos de chefia no exterior - muitos dos quais em consulados. Vagas estratégicas nas embaixadas e em secretarias importantes da pasta continuam redutos masculinos. "Quero voltar para a carreira com meu nome e o cargo que eu teria hoje, 'embaixadora aposentada', cargo ocupado por meu ex-marido quando morreu e no qual estão hoje meus colegas de turma, como Alberto Vasconcellos da Costa e Silva e Marcos Azambuja", reivindica.

Aos 93 anos, Cecília Prada vive com os rendimentos da aposentadoria por idade e mora em Campinas, no interior de São Paulo, com um dos filhos. Como jornalista, venceu o Prêmio Esso em 1980 com uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo sobre suspeitas de maus-tratos em uma instituição psiquiátrica para jovens. Segundo a família, a ex-diplomada acorda cedo e trabalha todos os dias para escrever. Atualmente se dedica a um romance policial que ainda pretende lançar. Tem 18 livros publicados - um deles, na versão e-book, se chama 'Sou mulher, logo, não existo'. 

"Eu venho inexistindo de tantas formas... espero que vocês cheguem a uma conclusão se eu existo ou não".

COM A PALAVRA, MRE

Procuramos o Ministério das Relações Exteriores, que ainda não se manifestou sobre o caso da ex-diplomata Cecília Prada. O espaço está aberto para manifestações.

 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadão)

Por Carolina Ercolin e Luciana Garbin

 

A paulista Cecília Maria do Amaral Prada tenta, há pelo menos meio século, voltar ao serviço diplomático brasileiro após ser obrigada a abandonar a carreira por uma regra sexista do Ministério das Relações Exteriores (MRE). 

Ela foi uma das primeiras mulheres formadas pelo Instituto Rio Branco, que prepara os diplomatas para o Itamaraty. Aos 93 anos, a também jornalista se diz arrependida de não ter levado a cabo a contestação da norma que, ainda em 1958, proibia o exercício da profissão às mulheres que casassem com um colega diplomata. 

Cecília e Sérgio Paulo Rouanet, que se tornaria embaixador do Brasil na Dinamarca e na República Tcheca, ministro da Cultura e autor da Lei de Incentivo à Cultura, foram casados por 15 anos e tiveram três filhos. Desde o divórcio, na década de 1970, ela tenta ser reintegrada ao Itamaraty, serviço pelo qual poderia estar aposentada hoje. 

Durante a conversa nos estúdios da Rádio Eldorado em São Paulo, Cecília se descreve hoje como feminista, mas admite que sua adesão ao movimento demorou décadas para amadurecer. 

"É interessante minha vida. Eu não sou feminista de ouvir cursinho, eu sou feminista a posteriori, depois de sofrer. A minha geração entendia que 'o mundo é assim', machista, (...) mas, de repente, quando você perde tudo aquilo pelo que tinha vivido, diz 'pombas, a coisa é feia. Estou atingida, isso não pode ser normal'", desabafa. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadão)

A diplomata se refere às barreiras que se sucederam ao longo da vida para exercer as aspirações de estudar e trabalhar, ainda que não fossem comuns às jovens da década de 1940, que haviam recentemente conquistado o direito ao voto. "Quando eu tinha 10 anos comecei a escrever contos e dizia à minha mãe que queria ir para academia. Ela morria de rir e explicava que mulher não entrava lá", lembra. 

Ainda assim, Cecília se formou em Letras Neolatinas e em Jornalismo, em 1951, nas turmas inaugurais dos cursos no País. Ao concluir também a graduação no Instituto Rio Branco, anos depois, Prada conta que se viu obrigada pelo Itamaraty a deixar o ofício, com base em um decreto que obrigava a exoneração das servidoras casadas com diplomatas. 

Foi somente em 1996 que foi garantida a igualdade de direitos entre homens e mulheres na diplomacia. O 'Estatuto da Mulher Casada', por exemplo, marco de mudanças na legislação conservadora do país, só foi criado anos depois, em 1962, permitindo que esposas não precisassem mais da autorização do marido para trabalhar. 

Cecília entendia a restrição imposta pelo governo como inconstitucional, mas o contexto da época a desencorajou a abrir uma reclamação formal. "Na época do meu casamento, eu achava que era assim mesmo. Que uma mulher que fez o curso realmente tinha que abrir mão de tudo para casar e ter filhos. E eu queria casar e ter filhos! Se me arrependo de não ter brigado pela carreira? Sim, mas era difícil. Como eu ia brigar com a União, meu patrão? Eu ia para a cadeia ou ia ser expulsa", lamenta. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadao)

Pesou em sua decisão o que nomeia como o 'realismo' de Rouanet para não prejudicar a trajetória em comum do casal. Ouviu do marido o pedido para que desistisse de afrontar as regras que, agora, consegue identificar como machistas. "Sérgio Paulo Rouanet, que acabou por ser um marido muito bom, ao me ver tentada a fazer um mandado de segurança para contestar a regra do Itamaraty, me fez o apelo: 'Eu peço a você que não faça isso porque vai prejudicar minha carreira. Isso não deve ser entendido como uma coisa egoísta'. Sérgio falou com realismo do que ia acontecer, iríamos ser dois perseguidos. Em vez de irmos para Washington, Nova York e Genebra, como fomos, iríamos para Calcutá, Honduras e Tombuctu [postos de menos prestígio]. Ou seja, estaríamos fora do Itamaraty. Então, me conformei e fui ser dona de casa - ocupação na qual tive uma longa carreira".

Ao longo das décadas seguintes, foram várias as tentativas para reaver o posto na diplomacia brasileira, todos sem sucesso. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu sua história como "caso emblemático nacional de discriminação contra a mulher". "Nestes últimos quatro anos eu me mantive na minha catacumba, escrevendo meus livros. Agora eu saí e estou aqui também porque quero ajudar as mulheres. As que ainda não são feministas, precisamos entender o porquê, ainda que seja uma questão de geração e que não se resolva em uma, duas ou 50 gerações".

Cecília se mostra hoje mais esperançosa a partir de movimentos de renovação que observa na gestão federal e em ações afirmativas, como a fundação da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) em janeiro desde ano. O grupo tem reivindicado medidas que podem ser tomadas pelo Ministério das Relações Exteriores para combater a desigualdade de gênero em seus quadros. Hoje, 23% dos diplomatas são mulheres, mas elas ocupam apenas 12,2% dos postos de chefia no exterior - muitos dos quais em consulados. Vagas estratégicas nas embaixadas e em secretarias importantes da pasta continuam redutos masculinos. "Quero voltar para a carreira com meu nome e o cargo que eu teria hoje, 'embaixadora aposentada', cargo ocupado por meu ex-marido quando morreu e no qual estão hoje meus colegas de turma, como Alberto Vasconcellos da Costa e Silva e Marcos Azambuja", reivindica.

Aos 93 anos, Cecília Prada vive com os rendimentos da aposentadoria por idade e mora em Campinas, no interior de São Paulo, com um dos filhos. Como jornalista, venceu o Prêmio Esso em 1980 com uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo sobre suspeitas de maus-tratos em uma instituição psiquiátrica para jovens. Segundo a família, a ex-diplomada acorda cedo e trabalha todos os dias para escrever. Atualmente se dedica a um romance policial que ainda pretende lançar. Tem 18 livros publicados - um deles, na versão e-book, se chama 'Sou mulher, logo, não existo'. 

"Eu venho inexistindo de tantas formas... espero que vocês cheguem a uma conclusão se eu existo ou não".

COM A PALAVRA, MRE

Procuramos o Ministério das Relações Exteriores, que ainda não se manifestou sobre o caso da ex-diplomata Cecília Prada. O espaço está aberto para manifestações.

 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadão)

Por Carolina Ercolin e Luciana Garbin

 

A paulista Cecília Maria do Amaral Prada tenta, há pelo menos meio século, voltar ao serviço diplomático brasileiro após ser obrigada a abandonar a carreira por uma regra sexista do Ministério das Relações Exteriores (MRE). 

Ela foi uma das primeiras mulheres formadas pelo Instituto Rio Branco, que prepara os diplomatas para o Itamaraty. Aos 93 anos, a também jornalista se diz arrependida de não ter levado a cabo a contestação da norma que, ainda em 1958, proibia o exercício da profissão às mulheres que casassem com um colega diplomata. 

Cecília e Sérgio Paulo Rouanet, que se tornaria embaixador do Brasil na Dinamarca e na República Tcheca, ministro da Cultura e autor da Lei de Incentivo à Cultura, foram casados por 15 anos e tiveram três filhos. Desde o divórcio, na década de 1970, ela tenta ser reintegrada ao Itamaraty, serviço pelo qual poderia estar aposentada hoje. 

Durante a conversa nos estúdios da Rádio Eldorado em São Paulo, Cecília se descreve hoje como feminista, mas admite que sua adesão ao movimento demorou décadas para amadurecer. 

"É interessante minha vida. Eu não sou feminista de ouvir cursinho, eu sou feminista a posteriori, depois de sofrer. A minha geração entendia que 'o mundo é assim', machista, (...) mas, de repente, quando você perde tudo aquilo pelo que tinha vivido, diz 'pombas, a coisa é feia. Estou atingida, isso não pode ser normal'", desabafa. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadão)

A diplomata se refere às barreiras que se sucederam ao longo da vida para exercer as aspirações de estudar e trabalhar, ainda que não fossem comuns às jovens da década de 1940, que haviam recentemente conquistado o direito ao voto. "Quando eu tinha 10 anos comecei a escrever contos e dizia à minha mãe que queria ir para academia. Ela morria de rir e explicava que mulher não entrava lá", lembra. 

Ainda assim, Cecília se formou em Letras Neolatinas e em Jornalismo, em 1951, nas turmas inaugurais dos cursos no País. Ao concluir também a graduação no Instituto Rio Branco, anos depois, Prada conta que se viu obrigada pelo Itamaraty a deixar o ofício, com base em um decreto que obrigava a exoneração das servidoras casadas com diplomatas. 

Foi somente em 1996 que foi garantida a igualdade de direitos entre homens e mulheres na diplomacia. O 'Estatuto da Mulher Casada', por exemplo, marco de mudanças na legislação conservadora do país, só foi criado anos depois, em 1962, permitindo que esposas não precisassem mais da autorização do marido para trabalhar. 

Cecília entendia a restrição imposta pelo governo como inconstitucional, mas o contexto da época a desencorajou a abrir uma reclamação formal. "Na época do meu casamento, eu achava que era assim mesmo. Que uma mulher que fez o curso realmente tinha que abrir mão de tudo para casar e ter filhos. E eu queria casar e ter filhos! Se me arrependo de não ter brigado pela carreira? Sim, mas era difícil. Como eu ia brigar com a União, meu patrão? Eu ia para a cadeia ou ia ser expulsa", lamenta. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadao)

Pesou em sua decisão o que nomeia como o 'realismo' de Rouanet para não prejudicar a trajetória em comum do casal. Ouviu do marido o pedido para que desistisse de afrontar as regras que, agora, consegue identificar como machistas. "Sérgio Paulo Rouanet, que acabou por ser um marido muito bom, ao me ver tentada a fazer um mandado de segurança para contestar a regra do Itamaraty, me fez o apelo: 'Eu peço a você que não faça isso porque vai prejudicar minha carreira. Isso não deve ser entendido como uma coisa egoísta'. Sérgio falou com realismo do que ia acontecer, iríamos ser dois perseguidos. Em vez de irmos para Washington, Nova York e Genebra, como fomos, iríamos para Calcutá, Honduras e Tombuctu [postos de menos prestígio]. Ou seja, estaríamos fora do Itamaraty. Então, me conformei e fui ser dona de casa - ocupação na qual tive uma longa carreira".

Ao longo das décadas seguintes, foram várias as tentativas para reaver o posto na diplomacia brasileira, todos sem sucesso. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu sua história como "caso emblemático nacional de discriminação contra a mulher". "Nestes últimos quatro anos eu me mantive na minha catacumba, escrevendo meus livros. Agora eu saí e estou aqui também porque quero ajudar as mulheres. As que ainda não são feministas, precisamos entender o porquê, ainda que seja uma questão de geração e que não se resolva em uma, duas ou 50 gerações".

Cecília se mostra hoje mais esperançosa a partir de movimentos de renovação que observa na gestão federal e em ações afirmativas, como a fundação da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) em janeiro desde ano. O grupo tem reivindicado medidas que podem ser tomadas pelo Ministério das Relações Exteriores para combater a desigualdade de gênero em seus quadros. Hoje, 23% dos diplomatas são mulheres, mas elas ocupam apenas 12,2% dos postos de chefia no exterior - muitos dos quais em consulados. Vagas estratégicas nas embaixadas e em secretarias importantes da pasta continuam redutos masculinos. "Quero voltar para a carreira com meu nome e o cargo que eu teria hoje, 'embaixadora aposentada', cargo ocupado por meu ex-marido quando morreu e no qual estão hoje meus colegas de turma, como Alberto Vasconcellos da Costa e Silva e Marcos Azambuja", reivindica.

Aos 93 anos, Cecília Prada vive com os rendimentos da aposentadoria por idade e mora em Campinas, no interior de São Paulo, com um dos filhos. Como jornalista, venceu o Prêmio Esso em 1980 com uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo sobre suspeitas de maus-tratos em uma instituição psiquiátrica para jovens. Segundo a família, a ex-diplomada acorda cedo e trabalha todos os dias para escrever. Atualmente se dedica a um romance policial que ainda pretende lançar. Tem 18 livros publicados - um deles, na versão e-book, se chama 'Sou mulher, logo, não existo'. 

"Eu venho inexistindo de tantas formas... espero que vocês cheguem a uma conclusão se eu existo ou não".

COM A PALAVRA, MRE

Procuramos o Ministério das Relações Exteriores, que ainda não se manifestou sobre o caso da ex-diplomata Cecília Prada. O espaço está aberto para manifestações.

 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadão)

Por Carolina Ercolin e Luciana Garbin

 

A paulista Cecília Maria do Amaral Prada tenta, há pelo menos meio século, voltar ao serviço diplomático brasileiro após ser obrigada a abandonar a carreira por uma regra sexista do Ministério das Relações Exteriores (MRE). 

Ela foi uma das primeiras mulheres formadas pelo Instituto Rio Branco, que prepara os diplomatas para o Itamaraty. Aos 93 anos, a também jornalista se diz arrependida de não ter levado a cabo a contestação da norma que, ainda em 1958, proibia o exercício da profissão às mulheres que casassem com um colega diplomata. 

Cecília e Sérgio Paulo Rouanet, que se tornaria embaixador do Brasil na Dinamarca e na República Tcheca, ministro da Cultura e autor da Lei de Incentivo à Cultura, foram casados por 15 anos e tiveram três filhos. Desde o divórcio, na década de 1970, ela tenta ser reintegrada ao Itamaraty, serviço pelo qual poderia estar aposentada hoje. 

Durante a conversa nos estúdios da Rádio Eldorado em São Paulo, Cecília se descreve hoje como feminista, mas admite que sua adesão ao movimento demorou décadas para amadurecer. 

"É interessante minha vida. Eu não sou feminista de ouvir cursinho, eu sou feminista a posteriori, depois de sofrer. A minha geração entendia que 'o mundo é assim', machista, (...) mas, de repente, quando você perde tudo aquilo pelo que tinha vivido, diz 'pombas, a coisa é feia. Estou atingida, isso não pode ser normal'", desabafa. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadão)

A diplomata se refere às barreiras que se sucederam ao longo da vida para exercer as aspirações de estudar e trabalhar, ainda que não fossem comuns às jovens da década de 1940, que haviam recentemente conquistado o direito ao voto. "Quando eu tinha 10 anos comecei a escrever contos e dizia à minha mãe que queria ir para academia. Ela morria de rir e explicava que mulher não entrava lá", lembra. 

Ainda assim, Cecília se formou em Letras Neolatinas e em Jornalismo, em 1951, nas turmas inaugurais dos cursos no País. Ao concluir também a graduação no Instituto Rio Branco, anos depois, Prada conta que se viu obrigada pelo Itamaraty a deixar o ofício, com base em um decreto que obrigava a exoneração das servidoras casadas com diplomatas. 

Foi somente em 1996 que foi garantida a igualdade de direitos entre homens e mulheres na diplomacia. O 'Estatuto da Mulher Casada', por exemplo, marco de mudanças na legislação conservadora do país, só foi criado anos depois, em 1962, permitindo que esposas não precisassem mais da autorização do marido para trabalhar. 

Cecília entendia a restrição imposta pelo governo como inconstitucional, mas o contexto da época a desencorajou a abrir uma reclamação formal. "Na época do meu casamento, eu achava que era assim mesmo. Que uma mulher que fez o curso realmente tinha que abrir mão de tudo para casar e ter filhos. E eu queria casar e ter filhos! Se me arrependo de não ter brigado pela carreira? Sim, mas era difícil. Como eu ia brigar com a União, meu patrão? Eu ia para a cadeia ou ia ser expulsa", lamenta. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadao)

Pesou em sua decisão o que nomeia como o 'realismo' de Rouanet para não prejudicar a trajetória em comum do casal. Ouviu do marido o pedido para que desistisse de afrontar as regras que, agora, consegue identificar como machistas. "Sérgio Paulo Rouanet, que acabou por ser um marido muito bom, ao me ver tentada a fazer um mandado de segurança para contestar a regra do Itamaraty, me fez o apelo: 'Eu peço a você que não faça isso porque vai prejudicar minha carreira. Isso não deve ser entendido como uma coisa egoísta'. Sérgio falou com realismo do que ia acontecer, iríamos ser dois perseguidos. Em vez de irmos para Washington, Nova York e Genebra, como fomos, iríamos para Calcutá, Honduras e Tombuctu [postos de menos prestígio]. Ou seja, estaríamos fora do Itamaraty. Então, me conformei e fui ser dona de casa - ocupação na qual tive uma longa carreira".

Ao longo das décadas seguintes, foram várias as tentativas para reaver o posto na diplomacia brasileira, todos sem sucesso. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu sua história como "caso emblemático nacional de discriminação contra a mulher". "Nestes últimos quatro anos eu me mantive na minha catacumba, escrevendo meus livros. Agora eu saí e estou aqui também porque quero ajudar as mulheres. As que ainda não são feministas, precisamos entender o porquê, ainda que seja uma questão de geração e que não se resolva em uma, duas ou 50 gerações".

Cecília se mostra hoje mais esperançosa a partir de movimentos de renovação que observa na gestão federal e em ações afirmativas, como a fundação da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) em janeiro desde ano. O grupo tem reivindicado medidas que podem ser tomadas pelo Ministério das Relações Exteriores para combater a desigualdade de gênero em seus quadros. Hoje, 23% dos diplomatas são mulheres, mas elas ocupam apenas 12,2% dos postos de chefia no exterior - muitos dos quais em consulados. Vagas estratégicas nas embaixadas e em secretarias importantes da pasta continuam redutos masculinos. "Quero voltar para a carreira com meu nome e o cargo que eu teria hoje, 'embaixadora aposentada', cargo ocupado por meu ex-marido quando morreu e no qual estão hoje meus colegas de turma, como Alberto Vasconcellos da Costa e Silva e Marcos Azambuja", reivindica.

Aos 93 anos, Cecília Prada vive com os rendimentos da aposentadoria por idade e mora em Campinas, no interior de São Paulo, com um dos filhos. Como jornalista, venceu o Prêmio Esso em 1980 com uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo sobre suspeitas de maus-tratos em uma instituição psiquiátrica para jovens. Segundo a família, a ex-diplomada acorda cedo e trabalha todos os dias para escrever. Atualmente se dedica a um romance policial que ainda pretende lançar. Tem 18 livros publicados - um deles, na versão e-book, se chama 'Sou mulher, logo, não existo'. 

"Eu venho inexistindo de tantas formas... espero que vocês cheguem a uma conclusão se eu existo ou não".

COM A PALAVRA, MRE

Procuramos o Ministério das Relações Exteriores, que ainda não se manifestou sobre o caso da ex-diplomata Cecília Prada. O espaço está aberto para manifestações.

 

 

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A paulista Cecília Maria do Amaral Prada tenta, há pelo menos meio século, voltar ao serviço diplomático brasileiro após ser obrigada a abandonar a carreira por uma regra sexista do Ministério das Relações Exteriores (MRE). 

Ela foi uma das primeiras mulheres formadas pelo Instituto Rio Branco, que prepara os diplomatas para o Itamaraty. Aos 93 anos, a também jornalista se diz arrependida de não ter levado a cabo a contestação da norma que, ainda em 1958, proibia o exercício da profissão às mulheres que casassem com um colega diplomata. 

Cecília e Sérgio Paulo Rouanet, que se tornaria embaixador do Brasil na Dinamarca e na República Tcheca, ministro da Cultura e autor da Lei de Incentivo à Cultura, foram casados por 15 anos e tiveram três filhos. Desde o divórcio, na década de 1970, ela tenta ser reintegrada ao Itamaraty, serviço pelo qual poderia estar aposentada hoje. 

Durante a conversa nos estúdios da Rádio Eldorado em São Paulo, Cecília se descreve hoje como feminista, mas admite que sua adesão ao movimento demorou décadas para amadurecer. 

"É interessante minha vida. Eu não sou feminista de ouvir cursinho, eu sou feminista a posteriori, depois de sofrer. A minha geração entendia que 'o mundo é assim', machista, (...) mas, de repente, quando você perde tudo aquilo pelo que tinha vivido, diz 'pombas, a coisa é feia. Estou atingida, isso não pode ser normal'", desabafa. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadão)

A diplomata se refere às barreiras que se sucederam ao longo da vida para exercer as aspirações de estudar e trabalhar, ainda que não fossem comuns às jovens da década de 1940, que haviam recentemente conquistado o direito ao voto. "Quando eu tinha 10 anos comecei a escrever contos e dizia à minha mãe que queria ir para academia. Ela morria de rir e explicava que mulher não entrava lá", lembra. 

Ainda assim, Cecília se formou em Letras Neolatinas e em Jornalismo, em 1951, nas turmas inaugurais dos cursos no País. Ao concluir também a graduação no Instituto Rio Branco, anos depois, Prada conta que se viu obrigada pelo Itamaraty a deixar o ofício, com base em um decreto que obrigava a exoneração das servidoras casadas com diplomatas. 

Foi somente em 1996 que foi garantida a igualdade de direitos entre homens e mulheres na diplomacia. O 'Estatuto da Mulher Casada', por exemplo, marco de mudanças na legislação conservadora do país, só foi criado anos depois, em 1962, permitindo que esposas não precisassem mais da autorização do marido para trabalhar. 

Cecília entendia a restrição imposta pelo governo como inconstitucional, mas o contexto da época a desencorajou a abrir uma reclamação formal. "Na época do meu casamento, eu achava que era assim mesmo. Que uma mulher que fez o curso realmente tinha que abrir mão de tudo para casar e ter filhos. E eu queria casar e ter filhos! Se me arrependo de não ter brigado pela carreira? Sim, mas era difícil. Como eu ia brigar com a União, meu patrão? Eu ia para a cadeia ou ia ser expulsa", lamenta. 

 

(Foto: Felipe Rau/Estadao)

Pesou em sua decisão o que nomeia como o 'realismo' de Rouanet para não prejudicar a trajetória em comum do casal. Ouviu do marido o pedido para que desistisse de afrontar as regras que, agora, consegue identificar como machistas. "Sérgio Paulo Rouanet, que acabou por ser um marido muito bom, ao me ver tentada a fazer um mandado de segurança para contestar a regra do Itamaraty, me fez o apelo: 'Eu peço a você que não faça isso porque vai prejudicar minha carreira. Isso não deve ser entendido como uma coisa egoísta'. Sérgio falou com realismo do que ia acontecer, iríamos ser dois perseguidos. Em vez de irmos para Washington, Nova York e Genebra, como fomos, iríamos para Calcutá, Honduras e Tombuctu [postos de menos prestígio]. Ou seja, estaríamos fora do Itamaraty. Então, me conformei e fui ser dona de casa - ocupação na qual tive uma longa carreira".

Ao longo das décadas seguintes, foram várias as tentativas para reaver o posto na diplomacia brasileira, todos sem sucesso. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu sua história como "caso emblemático nacional de discriminação contra a mulher". "Nestes últimos quatro anos eu me mantive na minha catacumba, escrevendo meus livros. Agora eu saí e estou aqui também porque quero ajudar as mulheres. As que ainda não são feministas, precisamos entender o porquê, ainda que seja uma questão de geração e que não se resolva em uma, duas ou 50 gerações".

Cecília se mostra hoje mais esperançosa a partir de movimentos de renovação que observa na gestão federal e em ações afirmativas, como a fundação da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) em janeiro desde ano. O grupo tem reivindicado medidas que podem ser tomadas pelo Ministério das Relações Exteriores para combater a desigualdade de gênero em seus quadros. Hoje, 23% dos diplomatas são mulheres, mas elas ocupam apenas 12,2% dos postos de chefia no exterior - muitos dos quais em consulados. Vagas estratégicas nas embaixadas e em secretarias importantes da pasta continuam redutos masculinos. "Quero voltar para a carreira com meu nome e o cargo que eu teria hoje, 'embaixadora aposentada', cargo ocupado por meu ex-marido quando morreu e no qual estão hoje meus colegas de turma, como Alberto Vasconcellos da Costa e Silva e Marcos Azambuja", reivindica.

Aos 93 anos, Cecília Prada vive com os rendimentos da aposentadoria por idade e mora em Campinas, no interior de São Paulo, com um dos filhos. Como jornalista, venceu o Prêmio Esso em 1980 com uma reportagem no jornal Folha de S. Paulo sobre suspeitas de maus-tratos em uma instituição psiquiátrica para jovens. Segundo a família, a ex-diplomada acorda cedo e trabalha todos os dias para escrever. Atualmente se dedica a um romance policial que ainda pretende lançar. Tem 18 livros publicados - um deles, na versão e-book, se chama 'Sou mulher, logo, não existo'. 

"Eu venho inexistindo de tantas formas... espero que vocês cheguem a uma conclusão se eu existo ou não".

COM A PALAVRA, MRE

Procuramos o Ministério das Relações Exteriores, que ainda não se manifestou sobre o caso da ex-diplomata Cecília Prada. O espaço está aberto para manifestações.

 

 

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