WASHINGTON, BRASÍLIA E SÃO PAULO - O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assinou nesta quarta-feira, 15, ordem executiva que dá ao Tesouro americano novas ferramentas para sancionar estrangeiros envolvidos no tráfico internacional de drogas. No anúncio sobre a nova competência do Tesouro, o governo dos EUA listou 25 atores, entre indivíduos e organizações, que estão na mira de Washington e terão sanções aplicadas. Entre eles, está a facção Primeiro Comando da Capital (PCC). O governo brasileiro foi notificado da decisão pela Casa Branca.
Na divulgação, os EUA classificaram o PCC como o mais poderoso grupo do crime organizado do Brasil e um dos mais poderosos do mundo. “O PCC surgiu em São Paulo na década de 1990 e abriu caminho sangrento para o domínio por meio do tráfico de drogas, bem como da lavagem de dinheiro, extorsão, assassinato de aluguel e cobrança de dívidas de drogas. O PCC opera em toda a América do Sul, Paraguai e Bolívia, e suas operações alcançam os Estados Unidos, Europa, África e Ásia”, descreveu o Tesouro americano.
A ordem executiva assinada por Biden permite que o Tesouro mire suas medidas de combate ao tráfico em qualquer estrangeiro envolvido em tráfico, independentemente da vinculação a um grupo. As medidas previstas envolvem, por exemplo, o bloqueio de propriedade de suspeitos e a proibição de transferências, empréstimos e financiamentos bancários. A nova regra também dá ao Tesouro autoridade para sancionar estrangeiros que recebam propriedades derivadas da receita do tráfico.
A designação do PCC como facção sob sanção é um primeiro passo para que, no futuro, seja possível congelar bens como aeronaves, embarcações, imóveis, dinheiro em contas bancárias e ativos financeiros vinculados ao narcotráfico. Também serve de alerta aos bancos norte-americanos ou com operações em território dos EUA para que passem a mapear se seus clientes podem ser integrantes ou vinculados à facção. Na prática, isso pode fazer com que os bancos como um todo fechem cada vez mais as portas a negócios do PCC.
As discussões ocorriam desde o governo Donald Trump, mas a decisão é unilateral dos EUA e serve de alerta ao sistema financeiro global. Bancos e empresas do sistema financeiro que fizeram negócios no futuro com o PCC podem ser punidas, com multas e ter operação desautorizada nos EUA, perdendo acesso ao mercado do dólar americano. Os EUA dizem querer combater um mercado que contribui com mais de 100 mil mortes por overdose no país nos 12 meses até abril deste ano.
Em carta à liderança do Congresso americano, Biden destaca a atuação de cartéis e organizações criminosas transnacionais na crise de opioides que o país enfrenta. “Acredito que o tráfico internacional de drogas - incluindo a produção ilegal, a venda em escala mundial e a ampla distribuição ilegal de drogas (...) - constitui uma incomum e extraordinária ameaça à segurança nacional, à política diplomática e à economia dos Estados Unidos. Essa séria ameaça requer que o nosso país se modernize e atualize a resposta contra o tráfico de drogas. Declaro uma emergência nacional para lidar com essa ameaça”, escreveu o presidente.
Dentro da nova medida, os americanos acusam 10 indivíduos e 15 grupos, em quatro países, de envolvimento ou tentativa de envolvimento em transações que “contribuíram materialmente ou representam um risco significativo de contribuir materialmente para a proliferação internacional de drogas ilícitas ou seus meios de produção”. Além do Brasil, há sanções a grupos da China, Colômbia e México.
Organizações listadas pelo governo americano
- Brasil: PCC;
- China: Chuen Fat Yip, Wuhan Yuancheng Gongchuang Technology, Shanghai Fast-Fine Chemicals, Hebei Huanhao Biotechnology e Hebei Atun Trading;
- México: Los Rojos DTO, Guerreros Unidos (GU), Cartel de Jalisco Nueva Generacion (CJNG), Nemesio Oseguera Cervantes, Cartel de Sinaloa (e os líderes Ivan Archivaldo Guzman Salazar, Jesus Alfredo Guzman Salazar e Ovidio Guzman Lopez), Ismael Zambada Garcia, Beltran Leyva Organization (BLO), Fausto Isidro Meza Flores, Cartel do Golfo, Cartel de Juarez, Los Zetas, Miguel Trevino Morales, Omar Trevino Morales e La Familia Michoacana (LFM);
- Colômbia: Clan del Golfo (CDG) e Dairo Antonio Usuga David;
Casa Branca comunicou Planalto horas antes de anúncio oficial
Horas antes do anúncio, o governo dos EUA comunicou a decisão administrativa ao Palácio do Planalto, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e à Polícia Federal. O Estadão apurou junto a fontes diplomáticas que, embora os governos tenham conhecimento da identidade de líderes da facção e de empresas que fazem parte da rede de lavagem de dinheiro do tráfico de cocaína, eles não entraram na lista ainda por causa de critérios burocráticos estabelecidos pelo governo dos EUA.
A decisão é tomada pelo Tesouro, a partir de discussões internas sigilosas que envolvem mais de uma agência governamental americana. A inclusão de pessoas e empresas é considerada um avanço futuro por autoridades envolvidas. No momento, porém, ainda não há previsão de quando poderia ocorrer, tampouco a sanção de outras organizações criminosas brasileiras.
Como as operações financeiras são dissimuladas, o real congelamento desses ativos depende de futuras colaborações entre órgãos de investigação e repressão ao narcotráfico, troca de informações e da busca ativa que os bancos que operam nos EUA ficam obrigados a fazer.
A lista é publicada pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC, na sigla em inglês), uma unidade do Departamento de Tesouro. Antes do PCC, dois alvos da lista no que tinham atividades no Brasil eram ligadas ao financiamento da organização terrorista Al Qaeda.
Uma década de monitoramento
Há quase dez anos o Drug Enforcement Administration (DEA), departamento federal antidrogas americano, monitora a atuação de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder supremo do PCC. O alerta foi aceso diante de suspeitas de contatos de produtores de coca ligados ao PCC com os carteis mexicanos.
Em 2020, os americanos participaram da mobilização internacional que resultou na prisão de Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, em Moçambique. Fuminho é apontado como personagem central do acesso do PCC a armas e drogas obtidas com vizinhos sulamericanos. Agentes da DEA já tinham tentado prender Fuminho em 2014, quando o chefão foi localizado nos Estados Unidos por meio de escutas. Na oportunidade, ele conseguiu escapar e fugiu para o Panamá.
Sua rede de contatos se estendeu à Europa e aos Estados Unidos. Na Itália, por exemplo, é aliado da 'Ndrangheta, a máfia calabresa, com quem negociou remessas de cocaína. Em 2016, um veleiro enviado da Bahia por Fuminho foi apreendido pela Diretoria Antimáfia da Itália ao se aproximar de Gioia Tauro, o gigantesco porto de contêineres da Calábria, no sul da Itália. Arrastava 500 quilos de cocaína em uma rede embaixo do casco.
Bolívia vira santuário de cartel ligado ao PCC
O Estadão mostrou em outubro que a dificuldade de atuação da Polícia Federal (PF) no país vizinho e a localização geográfica central na América do Sul transformaram a Bolívia no santuário do Narcosul, como os investigadores chamam o cartel que reúne representantes da cúpula do PCC e associados no tráfico internacional de drogas.
Eles investem em joias, clínicas médicas, restaurantes, fazendas e passeiam em segurança com as famílias na região de Santa Cruz de La Sierra, centro do poder do grupo e rota de passagem da droga que, vinda do Peru e da Colômbia, se junta à cocaína propriamente boliviana.
Dali, os “narcos” brasileiros se locomovem em aviões e helicópteros para passar férias nas praias do Nordeste, onde fecham negócios com as ndrine, as famílias que integram a ’Ndrangheta, a máfia da Calábria. Mais poderosa das organizações criminosas da Itália, ela fica com 40% de toda a droga que o PCC negocia na Europa.
Esse é o imposto para que os carregamentos de cocaína da América do Sul possam circular pelo continente. Ali, o quilo da droga, adquirido em Santa Cruz de La Sierra por US$ 1 mil, alcança até US$ 35 mil.
Cúpula presa em unidades federais de segurança máxima
Apesar de estarem presos, os maiores líderes da facção continuaram atuando nas três últimas décadas, período no qual conseguiram expandir a atuação criminosa da organização. Até o meio deste ano, 60 detentos já tinham sido transferidos de São Paulo para o sistema federal, cujas unidades são consideradas de segurança máxima. A quantidade de transferências cresceu desde 2019, quando o número estava em 22.
A polícia e o Ministério Público tem solicitado essa medida como forma de combater o contínuo crescimento do PCC, que seguiu lucrando mesmo com lideranças presas, como Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. O chefe da facção está detido na Penitenciária Federal de Brasília após ser transferido de São Paulo em fevereiro de 2019.