O recente caso da criança de 11 anos proibida por uma juíza de fazer um aborto legal, após um abuso, não é exceção. Embora as meninas de até 14 anos sejam a maioria entre o total de vítimas de estupro registradas oficialmente no País, poucas têm acesso à interrupção legal da gravidez. Especialistas atribuem a situação a uma série de burocracias.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mais recente, com dados de 2020, mostra que os menores de idade de até 13 anos são 60,6% (cerca de 36,6 mil) da vítimas de estupros. Do total, 28,9% têm de 10 a 13 anos, 20,5% de 5 a 9 anos e 11,3% de 0 a 4 anos. Na maioria dos casos, 86,9%, a vítima é do gênero feminino. Mas a coordenadora institucional do Fórum de Segurança, Juliana Martins destaca que os números são ainda maiores na realidade, pois há alta subnotificação de crimes sexuais. “É muito permeado por vergonha, questões sociais, ainda há um tabu em torno desse tema.”
Segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS, foram realizados 24 abortos por razões médicas em meninas de até 14 anos de janeiro a abril. Em 2021, foram 132. Como comparação, o número total do ano (incluindo mulheres a partir de 15 anos e adultas) é de 2.042. Em 2020, foram 88 procedimentos na faixa etária de até 14 anos.
Embora a Lei 12.015 considere como “estupro de vulnerável” qualquer conjunção carnal com menores de 14 anos, a maioria das meninas não tem acesso ao aborto legal. O Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos aponta que 17.579 meninas dessa faixa tiveram filhos em 2020, por exemplo. No ano anterior, foram 19.333 recém-nascidos nesse perfil.
A pesquisadora Emanuelle Góes aponta que há uma série de barreiras que explicam a dificuldade de acesso, desde a restrição de espaços que realizam o procedimento a algumas capitais e cidades de maior porte (o que exige deslocamento e custos) até o acolhimento insuficiente dessas vítimas pelas autoridades.
Ligada ao Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fiocruz Bahia, ela ainda destaca que as meninas costumam demorar mais do que as mulheres para identificar e reportar esse tipo de gestação, diante dos estigmas, da falta de informação e do autor do crime majoritariamente ser uma pessoa conhecida ou parte da família. “A gente tem essa grande discrepância entre as que conseguem acessar o serviço de aborto legal e as que acabam vivendo a gravidez na infância e adolescência. Isso mostra como várias políticas públicas não estão sendo efetivas para interromper os ciclos de violência.”
De acordo com o Código Penal, o acesso ao aborto legal é previsto “se não há outro meio de salvar a vida da gestante” e no “caso de gravidez resultante de estupro”. Desde 2012, há uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental do Supremo Tribunal Federal que permite o procedimento em casos de fetos com anencefalia.
A gestação também é um risco à saúde das meninas, segundo especialistas. De acordo com os dados mais recentes do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do SUS, por exemplo, 1.549 meninas de até 14 anos morreram em 2020 por causas relacionadas à gravidez. “Os abortos realizados no primeiro trimestre são 14 vezes mais seguros que um parto”, argumenta a pesquisadora Marina Jacobs, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFSC, no qual pesquisou o tema.
Na pesquisa, identificou que hospitais costumam estabelecer uma idade gestacional máxima, com base em uma nota técnica emitida em 2012 pelo Ministério da Saúde, que indica que “não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional”. A advogada Marina Ganzarolli argumenta, contudo, que a nota técnica não tem valor legal.
“São dificuldades revestidas de abuso de autoridade e de burocracia desnecessária, porque a lei não cria esses procedimentos, é bastante clara. Até porque existe risco iminente na demora na realização desse procedimento (interrupção da gestação), em especial quando falamos de gravidezes de crianças e adolescentes, que têm riscos e danos à saúde física e psicológica”, diz a especialista, presidente do movimento Me Too Brasil.
A juíza Joana Ribeiro Zimmer, que impediu o aborto em Tijucas (SC) e usou a limitação por semanas, foi promovida e transferida de cidade – o processo é anterior ao caso. A criança chegou ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com 22 semanas de gestação. A equipe médica rejeitou o aborto.
Houve judicialização do caso e a juíza mandou a menina para um abrigo, impedindo que fosse submetida ao procedimento. O caso foi revelado pelos sites Portal Catarinas e The Intercept Brasil. As reportagens mostraram trechos da audiência com a criança, em que a magistrada fala para a menina seguir com a gestação.