EUA querem mais esforço do Brasil no combate à exploração sexual


Kari Johnstone, integrante do governo americano, diz que o País avançou na identificação de vítimas do tráfico trabalhista, mas não tanto no lado do tráfico sexual

Por Vinícius Valfré
Foto: Embaixada dos EUA
Entrevista comKari JohnstoneVice-diretora e diretora interina do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos

BRASÍLIA - Os Estados Unidos reconhecem avanços do Brasil no combate ao tráfico de pessoas para trabalho forçado, mas recomendam mais esforços para combater o crime de tráfico humano para fins de exploração sexual.

Kari Johnstone, vice-diretora e diretora interina do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos

O tema fez parte de conversas entre autoridades brasileiras e Kari Johnstone, vice-diretora e diretora interina do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos, na última semana, em Brasília.

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Em sua primeira visita ao Brasil, Kari Johnstone apontou preocupação com aumento do tráfico de pessoas transgênero – indivíduos que nasceram com determinado sexo biológico e não se identificam com os seus corpos – e reforçou o interesse do governo americano em ampliar parcerias.

Dos cerca de US$ 240 milhões que o escritório gerencia com programas de assistência externa para enfrentamento ao tráfico de pessoas, US$ 20 milhões estão investidos no Brasil.

Anualmente, os Estados Unidos divulgam um relatório global sobre o empenho dos países em acabar com o tráfico de pessoas. O último documento, de julho, aponta “esforços limitados” do governo brasileiro para combater o tráfico sexual e identificar vítimas desse crime em populações vulneráveis, como entre crianças e LGBTQIA+.

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Desde 2015 o Brasil não muda de posição no ranking do governo americano e permanece no “grupo 2″, onde estão os países que não tem padrões que “atendam totalmente ao mínimo” para a eliminação do tráfico, “mas estão fazendo mudanças significativas para isso”.

Leia a entrevista:

Quais eram os objetivos da senhora nessa primeira visita ao Brasil?

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Temos uma parceria de longa data com o Brasil na questão do tráfico de pessoas, que é um desafio compartilhado entre nossos governos. Estamos trabalhando com parceiros brasileiros do governo com universidades, sociedade civil e outros especialistas para ajudar nossos governos e sociedades a entender a natureza e o escopo do problema do tráfico humano. Não é um problema apenas nos Estados Unidos e no Brasil, mas em quase todos os países

Também buscou conversar com representantes do futuro governo brasileiro?

As reuniões se concentraram nos funcionários que são os especialistas técnicos, em grande parte. Obviamente, alguns deles também estão nos níveis políticos, mas estamos realmente focando nos objetivos compartilhados de longo prazo. E esta é uma prioridade que perdura nos Estados Unidos, de um governo para o outro, tanto nas administrações democratas quanto republicanas.

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"Temos uma parceria de longa data com o Brasil na questão do tráfico de pessoas, que é um desafio compartilhado entre nossos governos", diz Kari Johnstone. Foto: Embaixada dos EUA/Divulgação

O relatório global do governo dos EUA, de 2021, destacava que a pandemia impactou indivíduos já vítimas de opressão. E quanto ao cenário mais recente? Ainda há efeitos tardios da pandemia?

Absolutamente. Todos os nossos governos, organizações internacionais, sociedade civil e especialistas em tráfico ainda observam as consequências de longo prazo da pandemia de covid-19. Ela tornou muitos indivíduos ainda mais vulneráveis ao tráfico por causa dos impactos econômicos com fim de empregos e fechamento de empresas. E também estamos vendo cada vez mais que a mudança climática está levando mais pessoas a se mudarem e com isso aumentarem sua vulnerabilidade ao tráfico também. Das tendências específicas que vimos relacionadas à pandemia, provavelmente a mais pronunciada é o aumento do recrutamento online de vítimas do tráfico. E o tráfico ocorre online, não só a exploração.

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Conforme os parâmetros de classificação dos Estados Unidos, o Brasil está na mesma posição desde 2015 (”nível 2″, dos três possíveis). Por que o País não avança?

No nosso relatório há níveis. No nível 1, significa que o governo, no último período do relatório, que é do início de abril até o final de março, atendeu ao que é chamado de padrões mínimos. Eles estão descritos na lei dos EUA, a lei que exige que façamos este relatório anual, e são muito consistentes com os compromissos internacionais compartilhados que ambos assumimos sob o protocolo de tráfico de pessoas da ONU. O nível 2 significa que um governo está fazendo esforços significativos para atender a esses padrões mínimos, mas não ainda atendeu a esses padrões mínimos. Esses padrões cruzam alguns princípios do combate ao tráfico de pessoas: repressão dos traficantes, proteção das vítimas e prevenção do crime. O Brasil está no nível 2 nos últimos anos, o que significa que está fazendo esforços significativos. Uma das coisas inovadoras que o Brasil fez e que divulgamos no relatório e em conversas com outros governos são as “listas sujas” de empresas que praticam trabalho forçado.

Hoje, o Brasil tem uma atuação contra o trabalho escravo que pode ser considerada relevante? E quanto ao tráfico de pessoas para fins sexuais?

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O Brasil deu muita ênfase ao trabalho escravo e ao trabalho forçado, mais do que muitos governos, incluindo os Estados Unidos. Uma das áreas em que recomendamos que o governo brasileiro aumente seus esforços é na área do tráfico sexual. Vimos que não houve tantos processos criminais, condenações por tráfico sexual ou identificação de vítimas de tráfico sexual. O governo aumentou muito a identificação de vítimas do tráfico trabalhista, mas não tanto no lado do tráfico sexual. Recomendamos que sejam feitos mais esforços na identificação proativa das vítimas, mas também na garantia de serviços abrangentes e consistentes para essas vítimas do tráfico. Essas são duas áreas que discutimos com funcionários do governo nos últimos dias.

O relatório é muito duro. Chega a afirmar que o governo do Brasil “não cumpre plenamente os padrões mínimos para a eliminação do tráfico”.

É um texto padrão para os países que estão no nível 2. Não é uma declaração especificamente sobre os esforços do Brasil. Pode parecer duro, mas essa é a expressão geral. Claro, adoraríamos se mais governos, incluindo o Brasil, aumentassem seus esforços e atendessem a todos os padrões mínimos e chegassem ao primeiro nível.

Pelas conversas, a senhora notou disposição e possibilidade de que as recomendações sejam atendidas?

Claramente há muito interesse e disposição em aprofundar nossa parceria e aumentar os esforços, não só porque estamos tendo essas conversas. Valorizamos muito a parceria porque achamos que temos muito a aprender uns com os outros.

No relatório de 2022, divulgado em julho, o Brasil aparece no mesmo “grupo 2″ que países como Qatar, Cazaquistão e Honduras. Como a senhora poderia me explicar esse fato, com base na metodologia?

Isso é algo que nem sempre é entendido claramente sobre a metodologia. Não estamos comparando países entre si. Estamos especificamente comparando os esforços de um governo com seu próprio esforço. Estamos olhando para a trajetória de esforços. Às vezes pode haver uma queda em uma área, seja de acusação ou de proteção, por exemplo, mas geralmente estamos procurando ver se os sistemas são fortes, se eles têm forte vontade política e estão alcançando resultados tangíveis. Analisamos números de condenações em processos. Essa é uma questão que também discutimos com autoridades brasileiras, que condenações finais para casos de tráfico humano não são tantas. Por exemplo, o governo informou que não houve condenações definitivas por qualquer forma de tráfico humano no ano passado. Então, vimos que o governo do Brasil fez alguns esforços, mas não necessariamente os resultados tangíveis aumentaram de maneira geral. Então é por isso que estou aqui também.

O perfil das vítimas de tráfico humano no Brasil tem mudado ao longo dos anos?

Sabemos que as pessoas transgênero são visadas. São uma porção muito grande das vítimas de tráfico sexual pelo menos entre os que são identificados no Brasil. Não é um fenômeno novo, mas crescente. Mas não temos conhecimento de diferenças significativas em termos de perfil das vítimas. Quase qualquer um pode ser vítima de tráfico. Muitas pessoas acreditam que são aqueles com menos educação formal. Mas também sabemos que algumas pessoas acabam se tornando vítimas do tráfico de pessoas porque aceitaram uma oferta de emprego que acharam ótima e, no final das contas, são exploradas, mesmo com alta educação. Portanto, o perfil realmente pode ser quase qualquer um. Mas vimos que os indivíduos transgêneros são uma das categorias sobre as quais temos visto um alerta crescente no Brasil.

O governo brasileiro reportou ter iniciado 285 investigações em 2021 e 206 em 2020. Esse crescimento, para a senhora, é algo positivo ou negativo?

Em nossa perspectiva, isso é uma coisa boa. Sabemos que o crime de tráfico de pessoas é um crime oculto e que há muito mais casos em todos os lugares, seja nos Estados Unidos ou no Brasil. Ter aumentado as investigações e processos significa que o governo está aumentando seus esforços, porque esses são crimes que temos que procurar proativamente. Vítimas de crimes como assalto vão à delegacia. Mas uma vítima de tráfico geralmente não consegue, ou não quer, ou tem vergonha. Muitas vezes seus traficantes mentem para elas e dizem que se denunciarem serão deportadas ou presas.

Quais são as suas preocupações com relação às pessoas que fugiram da Ucrânia?

Praticamente todos os especialistas internacionais em tráfico imediatamente levantaram preocupações sobre a incrível vulnerabilidade daqueles que fogem da Ucrânia, tanto ucranianos quanto nacionais de países terceiros. Sabemos que cerca de 90% dos que fugiram da Ucrânia eram mulheres e crianças altamente vulneráveis. Nós ficávamos pensando: temos que registrar essas pessoas que estão oferecendo moradia ou transporte e garantir que elas não caiam nas mãos de traficantes em locais críticos de fronteira. Estamos realizando o cadastramento. Foram identificados alguns criminosos sexuais conhecidos.

BRASÍLIA - Os Estados Unidos reconhecem avanços do Brasil no combate ao tráfico de pessoas para trabalho forçado, mas recomendam mais esforços para combater o crime de tráfico humano para fins de exploração sexual.

Kari Johnstone, vice-diretora e diretora interina do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos

O tema fez parte de conversas entre autoridades brasileiras e Kari Johnstone, vice-diretora e diretora interina do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos, na última semana, em Brasília.

Em sua primeira visita ao Brasil, Kari Johnstone apontou preocupação com aumento do tráfico de pessoas transgênero – indivíduos que nasceram com determinado sexo biológico e não se identificam com os seus corpos – e reforçou o interesse do governo americano em ampliar parcerias.

Dos cerca de US$ 240 milhões que o escritório gerencia com programas de assistência externa para enfrentamento ao tráfico de pessoas, US$ 20 milhões estão investidos no Brasil.

Anualmente, os Estados Unidos divulgam um relatório global sobre o empenho dos países em acabar com o tráfico de pessoas. O último documento, de julho, aponta “esforços limitados” do governo brasileiro para combater o tráfico sexual e identificar vítimas desse crime em populações vulneráveis, como entre crianças e LGBTQIA+.

Desde 2015 o Brasil não muda de posição no ranking do governo americano e permanece no “grupo 2″, onde estão os países que não tem padrões que “atendam totalmente ao mínimo” para a eliminação do tráfico, “mas estão fazendo mudanças significativas para isso”.

Leia a entrevista:

Quais eram os objetivos da senhora nessa primeira visita ao Brasil?

Temos uma parceria de longa data com o Brasil na questão do tráfico de pessoas, que é um desafio compartilhado entre nossos governos. Estamos trabalhando com parceiros brasileiros do governo com universidades, sociedade civil e outros especialistas para ajudar nossos governos e sociedades a entender a natureza e o escopo do problema do tráfico humano. Não é um problema apenas nos Estados Unidos e no Brasil, mas em quase todos os países

Também buscou conversar com representantes do futuro governo brasileiro?

As reuniões se concentraram nos funcionários que são os especialistas técnicos, em grande parte. Obviamente, alguns deles também estão nos níveis políticos, mas estamos realmente focando nos objetivos compartilhados de longo prazo. E esta é uma prioridade que perdura nos Estados Unidos, de um governo para o outro, tanto nas administrações democratas quanto republicanas.

"Temos uma parceria de longa data com o Brasil na questão do tráfico de pessoas, que é um desafio compartilhado entre nossos governos", diz Kari Johnstone. Foto: Embaixada dos EUA/Divulgação

O relatório global do governo dos EUA, de 2021, destacava que a pandemia impactou indivíduos já vítimas de opressão. E quanto ao cenário mais recente? Ainda há efeitos tardios da pandemia?

Absolutamente. Todos os nossos governos, organizações internacionais, sociedade civil e especialistas em tráfico ainda observam as consequências de longo prazo da pandemia de covid-19. Ela tornou muitos indivíduos ainda mais vulneráveis ao tráfico por causa dos impactos econômicos com fim de empregos e fechamento de empresas. E também estamos vendo cada vez mais que a mudança climática está levando mais pessoas a se mudarem e com isso aumentarem sua vulnerabilidade ao tráfico também. Das tendências específicas que vimos relacionadas à pandemia, provavelmente a mais pronunciada é o aumento do recrutamento online de vítimas do tráfico. E o tráfico ocorre online, não só a exploração.

Conforme os parâmetros de classificação dos Estados Unidos, o Brasil está na mesma posição desde 2015 (”nível 2″, dos três possíveis). Por que o País não avança?

No nosso relatório há níveis. No nível 1, significa que o governo, no último período do relatório, que é do início de abril até o final de março, atendeu ao que é chamado de padrões mínimos. Eles estão descritos na lei dos EUA, a lei que exige que façamos este relatório anual, e são muito consistentes com os compromissos internacionais compartilhados que ambos assumimos sob o protocolo de tráfico de pessoas da ONU. O nível 2 significa que um governo está fazendo esforços significativos para atender a esses padrões mínimos, mas não ainda atendeu a esses padrões mínimos. Esses padrões cruzam alguns princípios do combate ao tráfico de pessoas: repressão dos traficantes, proteção das vítimas e prevenção do crime. O Brasil está no nível 2 nos últimos anos, o que significa que está fazendo esforços significativos. Uma das coisas inovadoras que o Brasil fez e que divulgamos no relatório e em conversas com outros governos são as “listas sujas” de empresas que praticam trabalho forçado.

Hoje, o Brasil tem uma atuação contra o trabalho escravo que pode ser considerada relevante? E quanto ao tráfico de pessoas para fins sexuais?

O Brasil deu muita ênfase ao trabalho escravo e ao trabalho forçado, mais do que muitos governos, incluindo os Estados Unidos. Uma das áreas em que recomendamos que o governo brasileiro aumente seus esforços é na área do tráfico sexual. Vimos que não houve tantos processos criminais, condenações por tráfico sexual ou identificação de vítimas de tráfico sexual. O governo aumentou muito a identificação de vítimas do tráfico trabalhista, mas não tanto no lado do tráfico sexual. Recomendamos que sejam feitos mais esforços na identificação proativa das vítimas, mas também na garantia de serviços abrangentes e consistentes para essas vítimas do tráfico. Essas são duas áreas que discutimos com funcionários do governo nos últimos dias.

O relatório é muito duro. Chega a afirmar que o governo do Brasil “não cumpre plenamente os padrões mínimos para a eliminação do tráfico”.

É um texto padrão para os países que estão no nível 2. Não é uma declaração especificamente sobre os esforços do Brasil. Pode parecer duro, mas essa é a expressão geral. Claro, adoraríamos se mais governos, incluindo o Brasil, aumentassem seus esforços e atendessem a todos os padrões mínimos e chegassem ao primeiro nível.

Pelas conversas, a senhora notou disposição e possibilidade de que as recomendações sejam atendidas?

Claramente há muito interesse e disposição em aprofundar nossa parceria e aumentar os esforços, não só porque estamos tendo essas conversas. Valorizamos muito a parceria porque achamos que temos muito a aprender uns com os outros.

No relatório de 2022, divulgado em julho, o Brasil aparece no mesmo “grupo 2″ que países como Qatar, Cazaquistão e Honduras. Como a senhora poderia me explicar esse fato, com base na metodologia?

Isso é algo que nem sempre é entendido claramente sobre a metodologia. Não estamos comparando países entre si. Estamos especificamente comparando os esforços de um governo com seu próprio esforço. Estamos olhando para a trajetória de esforços. Às vezes pode haver uma queda em uma área, seja de acusação ou de proteção, por exemplo, mas geralmente estamos procurando ver se os sistemas são fortes, se eles têm forte vontade política e estão alcançando resultados tangíveis. Analisamos números de condenações em processos. Essa é uma questão que também discutimos com autoridades brasileiras, que condenações finais para casos de tráfico humano não são tantas. Por exemplo, o governo informou que não houve condenações definitivas por qualquer forma de tráfico humano no ano passado. Então, vimos que o governo do Brasil fez alguns esforços, mas não necessariamente os resultados tangíveis aumentaram de maneira geral. Então é por isso que estou aqui também.

O perfil das vítimas de tráfico humano no Brasil tem mudado ao longo dos anos?

Sabemos que as pessoas transgênero são visadas. São uma porção muito grande das vítimas de tráfico sexual pelo menos entre os que são identificados no Brasil. Não é um fenômeno novo, mas crescente. Mas não temos conhecimento de diferenças significativas em termos de perfil das vítimas. Quase qualquer um pode ser vítima de tráfico. Muitas pessoas acreditam que são aqueles com menos educação formal. Mas também sabemos que algumas pessoas acabam se tornando vítimas do tráfico de pessoas porque aceitaram uma oferta de emprego que acharam ótima e, no final das contas, são exploradas, mesmo com alta educação. Portanto, o perfil realmente pode ser quase qualquer um. Mas vimos que os indivíduos transgêneros são uma das categorias sobre as quais temos visto um alerta crescente no Brasil.

O governo brasileiro reportou ter iniciado 285 investigações em 2021 e 206 em 2020. Esse crescimento, para a senhora, é algo positivo ou negativo?

Em nossa perspectiva, isso é uma coisa boa. Sabemos que o crime de tráfico de pessoas é um crime oculto e que há muito mais casos em todos os lugares, seja nos Estados Unidos ou no Brasil. Ter aumentado as investigações e processos significa que o governo está aumentando seus esforços, porque esses são crimes que temos que procurar proativamente. Vítimas de crimes como assalto vão à delegacia. Mas uma vítima de tráfico geralmente não consegue, ou não quer, ou tem vergonha. Muitas vezes seus traficantes mentem para elas e dizem que se denunciarem serão deportadas ou presas.

Quais são as suas preocupações com relação às pessoas que fugiram da Ucrânia?

Praticamente todos os especialistas internacionais em tráfico imediatamente levantaram preocupações sobre a incrível vulnerabilidade daqueles que fogem da Ucrânia, tanto ucranianos quanto nacionais de países terceiros. Sabemos que cerca de 90% dos que fugiram da Ucrânia eram mulheres e crianças altamente vulneráveis. Nós ficávamos pensando: temos que registrar essas pessoas que estão oferecendo moradia ou transporte e garantir que elas não caiam nas mãos de traficantes em locais críticos de fronteira. Estamos realizando o cadastramento. Foram identificados alguns criminosos sexuais conhecidos.

BRASÍLIA - Os Estados Unidos reconhecem avanços do Brasil no combate ao tráfico de pessoas para trabalho forçado, mas recomendam mais esforços para combater o crime de tráfico humano para fins de exploração sexual.

Kari Johnstone, vice-diretora e diretora interina do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos

O tema fez parte de conversas entre autoridades brasileiras e Kari Johnstone, vice-diretora e diretora interina do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas dos Estados Unidos, na última semana, em Brasília.

Em sua primeira visita ao Brasil, Kari Johnstone apontou preocupação com aumento do tráfico de pessoas transgênero – indivíduos que nasceram com determinado sexo biológico e não se identificam com os seus corpos – e reforçou o interesse do governo americano em ampliar parcerias.

Dos cerca de US$ 240 milhões que o escritório gerencia com programas de assistência externa para enfrentamento ao tráfico de pessoas, US$ 20 milhões estão investidos no Brasil.

Anualmente, os Estados Unidos divulgam um relatório global sobre o empenho dos países em acabar com o tráfico de pessoas. O último documento, de julho, aponta “esforços limitados” do governo brasileiro para combater o tráfico sexual e identificar vítimas desse crime em populações vulneráveis, como entre crianças e LGBTQIA+.

Desde 2015 o Brasil não muda de posição no ranking do governo americano e permanece no “grupo 2″, onde estão os países que não tem padrões que “atendam totalmente ao mínimo” para a eliminação do tráfico, “mas estão fazendo mudanças significativas para isso”.

Leia a entrevista:

Quais eram os objetivos da senhora nessa primeira visita ao Brasil?

Temos uma parceria de longa data com o Brasil na questão do tráfico de pessoas, que é um desafio compartilhado entre nossos governos. Estamos trabalhando com parceiros brasileiros do governo com universidades, sociedade civil e outros especialistas para ajudar nossos governos e sociedades a entender a natureza e o escopo do problema do tráfico humano. Não é um problema apenas nos Estados Unidos e no Brasil, mas em quase todos os países

Também buscou conversar com representantes do futuro governo brasileiro?

As reuniões se concentraram nos funcionários que são os especialistas técnicos, em grande parte. Obviamente, alguns deles também estão nos níveis políticos, mas estamos realmente focando nos objetivos compartilhados de longo prazo. E esta é uma prioridade que perdura nos Estados Unidos, de um governo para o outro, tanto nas administrações democratas quanto republicanas.

"Temos uma parceria de longa data com o Brasil na questão do tráfico de pessoas, que é um desafio compartilhado entre nossos governos", diz Kari Johnstone. Foto: Embaixada dos EUA/Divulgação

O relatório global do governo dos EUA, de 2021, destacava que a pandemia impactou indivíduos já vítimas de opressão. E quanto ao cenário mais recente? Ainda há efeitos tardios da pandemia?

Absolutamente. Todos os nossos governos, organizações internacionais, sociedade civil e especialistas em tráfico ainda observam as consequências de longo prazo da pandemia de covid-19. Ela tornou muitos indivíduos ainda mais vulneráveis ao tráfico por causa dos impactos econômicos com fim de empregos e fechamento de empresas. E também estamos vendo cada vez mais que a mudança climática está levando mais pessoas a se mudarem e com isso aumentarem sua vulnerabilidade ao tráfico também. Das tendências específicas que vimos relacionadas à pandemia, provavelmente a mais pronunciada é o aumento do recrutamento online de vítimas do tráfico. E o tráfico ocorre online, não só a exploração.

Conforme os parâmetros de classificação dos Estados Unidos, o Brasil está na mesma posição desde 2015 (”nível 2″, dos três possíveis). Por que o País não avança?

No nosso relatório há níveis. No nível 1, significa que o governo, no último período do relatório, que é do início de abril até o final de março, atendeu ao que é chamado de padrões mínimos. Eles estão descritos na lei dos EUA, a lei que exige que façamos este relatório anual, e são muito consistentes com os compromissos internacionais compartilhados que ambos assumimos sob o protocolo de tráfico de pessoas da ONU. O nível 2 significa que um governo está fazendo esforços significativos para atender a esses padrões mínimos, mas não ainda atendeu a esses padrões mínimos. Esses padrões cruzam alguns princípios do combate ao tráfico de pessoas: repressão dos traficantes, proteção das vítimas e prevenção do crime. O Brasil está no nível 2 nos últimos anos, o que significa que está fazendo esforços significativos. Uma das coisas inovadoras que o Brasil fez e que divulgamos no relatório e em conversas com outros governos são as “listas sujas” de empresas que praticam trabalho forçado.

Hoje, o Brasil tem uma atuação contra o trabalho escravo que pode ser considerada relevante? E quanto ao tráfico de pessoas para fins sexuais?

O Brasil deu muita ênfase ao trabalho escravo e ao trabalho forçado, mais do que muitos governos, incluindo os Estados Unidos. Uma das áreas em que recomendamos que o governo brasileiro aumente seus esforços é na área do tráfico sexual. Vimos que não houve tantos processos criminais, condenações por tráfico sexual ou identificação de vítimas de tráfico sexual. O governo aumentou muito a identificação de vítimas do tráfico trabalhista, mas não tanto no lado do tráfico sexual. Recomendamos que sejam feitos mais esforços na identificação proativa das vítimas, mas também na garantia de serviços abrangentes e consistentes para essas vítimas do tráfico. Essas são duas áreas que discutimos com funcionários do governo nos últimos dias.

O relatório é muito duro. Chega a afirmar que o governo do Brasil “não cumpre plenamente os padrões mínimos para a eliminação do tráfico”.

É um texto padrão para os países que estão no nível 2. Não é uma declaração especificamente sobre os esforços do Brasil. Pode parecer duro, mas essa é a expressão geral. Claro, adoraríamos se mais governos, incluindo o Brasil, aumentassem seus esforços e atendessem a todos os padrões mínimos e chegassem ao primeiro nível.

Pelas conversas, a senhora notou disposição e possibilidade de que as recomendações sejam atendidas?

Claramente há muito interesse e disposição em aprofundar nossa parceria e aumentar os esforços, não só porque estamos tendo essas conversas. Valorizamos muito a parceria porque achamos que temos muito a aprender uns com os outros.

No relatório de 2022, divulgado em julho, o Brasil aparece no mesmo “grupo 2″ que países como Qatar, Cazaquistão e Honduras. Como a senhora poderia me explicar esse fato, com base na metodologia?

Isso é algo que nem sempre é entendido claramente sobre a metodologia. Não estamos comparando países entre si. Estamos especificamente comparando os esforços de um governo com seu próprio esforço. Estamos olhando para a trajetória de esforços. Às vezes pode haver uma queda em uma área, seja de acusação ou de proteção, por exemplo, mas geralmente estamos procurando ver se os sistemas são fortes, se eles têm forte vontade política e estão alcançando resultados tangíveis. Analisamos números de condenações em processos. Essa é uma questão que também discutimos com autoridades brasileiras, que condenações finais para casos de tráfico humano não são tantas. Por exemplo, o governo informou que não houve condenações definitivas por qualquer forma de tráfico humano no ano passado. Então, vimos que o governo do Brasil fez alguns esforços, mas não necessariamente os resultados tangíveis aumentaram de maneira geral. Então é por isso que estou aqui também.

O perfil das vítimas de tráfico humano no Brasil tem mudado ao longo dos anos?

Sabemos que as pessoas transgênero são visadas. São uma porção muito grande das vítimas de tráfico sexual pelo menos entre os que são identificados no Brasil. Não é um fenômeno novo, mas crescente. Mas não temos conhecimento de diferenças significativas em termos de perfil das vítimas. Quase qualquer um pode ser vítima de tráfico. Muitas pessoas acreditam que são aqueles com menos educação formal. Mas também sabemos que algumas pessoas acabam se tornando vítimas do tráfico de pessoas porque aceitaram uma oferta de emprego que acharam ótima e, no final das contas, são exploradas, mesmo com alta educação. Portanto, o perfil realmente pode ser quase qualquer um. Mas vimos que os indivíduos transgêneros são uma das categorias sobre as quais temos visto um alerta crescente no Brasil.

O governo brasileiro reportou ter iniciado 285 investigações em 2021 e 206 em 2020. Esse crescimento, para a senhora, é algo positivo ou negativo?

Em nossa perspectiva, isso é uma coisa boa. Sabemos que o crime de tráfico de pessoas é um crime oculto e que há muito mais casos em todos os lugares, seja nos Estados Unidos ou no Brasil. Ter aumentado as investigações e processos significa que o governo está aumentando seus esforços, porque esses são crimes que temos que procurar proativamente. Vítimas de crimes como assalto vão à delegacia. Mas uma vítima de tráfico geralmente não consegue, ou não quer, ou tem vergonha. Muitas vezes seus traficantes mentem para elas e dizem que se denunciarem serão deportadas ou presas.

Quais são as suas preocupações com relação às pessoas que fugiram da Ucrânia?

Praticamente todos os especialistas internacionais em tráfico imediatamente levantaram preocupações sobre a incrível vulnerabilidade daqueles que fogem da Ucrânia, tanto ucranianos quanto nacionais de países terceiros. Sabemos que cerca de 90% dos que fugiram da Ucrânia eram mulheres e crianças altamente vulneráveis. Nós ficávamos pensando: temos que registrar essas pessoas que estão oferecendo moradia ou transporte e garantir que elas não caiam nas mãos de traficantes em locais críticos de fronteira. Estamos realizando o cadastramento. Foram identificados alguns criminosos sexuais conhecidos.

Entrevista por Vinícius Valfré

Repórter de investigação da sucursal de Brasília desde 2020 e dedicado à cobertura de temas ligados a política, democracia, segurança pública, bets, Brasil e Amazônia.

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